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Zadie Smith Afirma que Escrever é Roubo e Autores São Crianças

A renomada autora Zadie Smith provocou debates no mundo literário ao declarar que “escrever livros é um roubo contínuo e autores são todos crianças”. A afirmação, que precede o lançamento de seu novo romance, “A Fraude”, pela Companhia das Letras, oferece um vislumbre das reflexões maduras de uma das vozes mais importantes da literatura contemporânea. […]

A renomada autora Zadie Smith provocou debates no mundo literário ao declarar que “escrever livros é um roubo contínuo e autores são todos crianças”. A afirmação, que precede o lançamento de seu novo romance, “A Fraude”, pela Companhia das Letras, oferece um vislumbre das reflexões maduras de uma das vozes mais importantes da literatura contemporânea. Longe de ser um desabafo isolado, a escritora britânica, com 49 anos, tece um panorama sobre sua jornada criativa e o custo emocional que a ficção pode impor.

Durante uma entrevista por vídeo, ostentando um estilo despojado com seu black power e um casaco esportivo da Nike, Smith expressou uma perspectiva surpreendente: não se importa em nunca mais escrever uma obra grandiosa. A sinceridade na fala de uma figura que transformou o mundo em ficção ambiciosa desde muito jovem ressoa como um testemunho da experiência, contrastando com o fervor inicial de sua carreira. A britânica detalha que, com o amadurecimento, a ideia de ferir outras pessoas através de sua arte tornou-se dolorosa demais, priorizando agora suas relações humanas acima de qualquer projeto literário.

O percurso de Smith, marcado por um sucesso precoce e estrondoso, permite-lhe uma autorreflexão singular sobre o processo criativo. Para a escritora, a ambição destrutiva da juventude, embora considerada essencial, evolui para uma busca por equanimidade. Sua trajetória é pontuada por obras que redefiniram o fôlego da literatura inglesa.

Zadie Smith Afirma que Escrever é Roubo e Autores São Crianças

Essa percepção a leva a considerar sua atual fase profissional, na qual “não há nenhum livro que eu queira escrever que seja mais importante que a minha relação com outros seres humanos.”

Zadie Smith foi alçada ao estrelato literário com seu romance de estreia, “Dentes Brancos”, lançado no ano 2000. À época com apenas 24 anos, a autora viu sua obra vender mais de 1 milhão de cópias, consagrando-a como um talento singular. O livro, um volume intricado e caudaloso, explorava a vida das famílias de Archie Jones e Samad Iqbal, dois veteranos de guerra, por várias décadas. Sua linguagem se destacou pela frescura e dinamismo, ancorada na coloquialidade e na rica tapeçaria da cultura imigrante no Reino Unido. Posteriormente, romances como “Sobre a Beleza” e “Ritmo Louco” mantiveram o mesmo escopo e ousadia, sempre empregando uma retórica profundamente contemporânea.

Com “A Fraude”, Zadie Smith envereda pelo seu primeiro romance histórico, introduzindo personagens reais e um enredo ambientado na Inglaterra vitoriana. O livro, recém-lançado no Brasil pela Companhia das Letras com tradução de Camila von Holdefer, centra-se no julgamento de um homem afável que insiste ser Roger Tichborne, um nobre dado como desaparecido. Apesar das evidências que refutam sua identidade, o homem consegue angariar uma vasta legião de admiradores graças ao seu carisma e a uma postura claramente antissistema.

Ao longo das quase 600 páginas de “A Fraude”, a trama ganha complexidade com a inserção de um aliado de Tichborne, o senhor Bogle, um ex-escravizado com raízes jamaicanas, espelhando a ancestralidade da própria autora. A narrativa de Smith progressivamente esclarece que a verdade é fluida, e todos os personagens utilizam máscaras, dissimulam e inventam histórias. A questão central que emerge é: quem possui a permissão para dissimular, e quem, em contrapartida, é perseguido e penalizado por suas verdades e inverdades? A complexidade desses temas enriquece a profundidade do romance.

Um dos eixos temáticos cruciais desenvolvidos no romance “A Fraude” investiga a maneira pela qual escritores se apropriam de experiências alheias para a construção de suas obras e de suas próprias personas literárias. É nesse contexto que Zadie Smith retoma sua declaração polêmica, afirmando não conseguir mais realizar essa apropriação de experiências da mesma forma que antes. A autora é contundente ao afirmar que “alguns roubam mal, outros como Charles Dickens roubavam bem, mas é isso que autores fazem.” Ela reitera a impossibilidade de existir uma versão dessa profissão que não se caracterize como um roubo contínuo, apesar de não ser um traço “agradável”.

A escritora elabora sobre as repercussões emocionais dessa prática. Embora não exista malícia intrínseca, ser objeto de uma descrição literária, ter a própria essência achatada e transformada em um mero personagem é, para ela, intolerável. Smith confessa sentir aversão pela versão de si mesma que é construída em artigos de jornal, o que lhe confere empatia pela irritação que outros possam sentir ao serem “usados” na ficção alheia. Essa percepção reforça a visão de que o ato de escrever é uma via de mão dupla, tanto de criação quanto de extração de vida alheia.

“A Fraude” é narrado pela perspectiva da governanta Eliza Touchet, companheira do escritor William Harrison Ainsworth, uma figura real do século XIX e amigo de Charles Dickens e William Thackeray – ambos presentes no enredo em tom de zombaria. Touchet chega a brincar que “o senhor Dickens”, apesar de sua reputação de generosidade, “veio a Manchester em primeiro lugar em busca de personagens.” A narrativa critica como as fantasias literárias persistiam, e “tudo já fora usado antes ou fora surrupiado da vida”, descrevendo romances como feitos de um “tecido desgastado e dessa verdade sequestrada”.

Essas discussões ecoam um período de reflexão e autocrítica para Zadie Smith. Ao ser questionada se ela ainda considera os clássicos do cânone britânico como fonte de inspiração ou meramente objetos a serem desconstruídos, a resposta foi reveladora. A autora revela não reler Dickens desde a infância, confessando que, embora ame os escritores britânicos, sempre acreditou que o maior talento da literatura de seu país reside na produção infantil, exemplificado por obras como “Alice no País das Maravilhas” e “Harry Potter”. Apesar de admirar Dickens, ela não o considera um autor para leitores adultos.

A preferência literária atual de Smith, que a considera “mais adulta”, reside em obras oriundas do Japão, Escandinávia, África Ocidental e América do Sul. Ela inclusive elogia a impossibilidade de “imaginar um Borges saindo do Reino Unido”, ressaltando a distinção cultural na abordagem da literatura. Para Smith, o termo “infantilidade” não carrega uma conotação ofensiva, mas sim uma observação objetiva sobre a imaturidade percebida em diversos aspectos da vida e da própria profissão literária.

Ainda na entrevista, questionada se ainda se percebia como uma criança de alguma forma, Zadie Smith confirmou sem rodeios. A escritora enfatiza que, ao ultrapassar os 40 anos, observa que grande parte dos indivíduos ao seu redor são “crianças de terno e chapéu”. Ela lamenta a percepção de que, apesar da idade, muitas interações não envolvem a maturidade esperada. Adicionalmente, ela conecta essa visão à natureza da profissão de escritor, caracterizada pelo isolamento, que dificulta o amadurecimento e a capacidade de lidar com o atrito social. Essa introspecção a leva a considerar muitos colegas escritores como “constrangedores”.

A entrevista com a autora durou trinta minutos, repletos de franqueza divertida e fora do comum. Smith se permitiu longos e contundentes discursos em suas respostas, divagando e emendando ideias antes de ceder a palavra com um rápido “Vai”. Questionada se sua nova postura – de não querer mais ferir as pessoas, abandonando o tempo da “escritora destrutiva” – afetaria sua literatura, a autora ponderou que isso “provavelmente vai me tornar uma escritora pior. Mas tudo bem. Eu já escrevi muito, sabe”, concluiu a autora de seis romances, duas coletâneas de contos e um livro de ensaios, que tem o privilégio de fazer essa escolha e deseja escrever por puro desejo, não por obrigação ou para publicar outro romance, colocando a vida à frente dos livros.

Detalhes sobre “A Fraude”: Lançamento em 30 de setembro. Preço: R$ 129,90 (576 páginas) ou R$ 44,90 (ebook). Autoria: Zadie Smith. Editora: Companhia das Letras. Tradução: Camila von Holdefer.

Confira também: artigo especial sobre leis e valortrabalhista

As reflexões de Zadie Smith convidam à reavaliação da própria essência da escrita e do papel do autor na sociedade contemporânea, um diálogo contínuo que enriquece o universo literário. Para aprofundar suas análises sobre temas culturais e literários, continue acompanhando nossa editoria de Análises, onde exploramos as tendências e os debates mais relevantes do cenário intelectual.

Crédito da imagem: Ben Bailey Smith / Divulgação; Gabriela Herman – 17.out.2016/The New York Times

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