O renomado professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Wilson Gomes, conhecido por obras como “Crônica de uma Tragédia Anunciada”, traz à tona uma provocação instigante ao propor: não seria o momento de questionar o próprio pensamento crítico, especialmente sua vertente mais academicista? Sua análise aponta para a proliferação de um jargão na academia que, por vezes, prioriza a sinalização de pertencimento a grupos ideológicos em detrimento da efetiva investigação e explicação da realidade.
Gomes ilustra sua crítica com um exercício prático. Ele descreve um “jogo” hipotético onde, a partir de dados básicos como mês e dia de nascimento e inicial do nome, um “algoritmo crítico” gera títulos de projetos de pesquisa ou artigos. Exemplos fornecidos incluem: “Epistemologias interseccionais na resistência ao racismo estrutural” e “Corpos-territórios queer na resistência à necropolítica”, entre outros. Tais construções, ele sugere, podem ser produzidas em série, somando 1.728 variações, que se tornam virtualmente idênticas no que realmente importa para a pesquisa: objeto, metodologia, evidências e originalidade. O objetivo primário, nesses casos, é claramente demarcar uma posição de pertencimento a uma vertente específica, nomeadamente a esquerda progressista.
Wilson Gomes Questiona Academicismo do Pensamento Crítico
A formulação desse jargão é bastante previsível e segue uma receita específica. Começa-se com um “substantivo-selo de prestígio”, como “saberes” ou “epistemologias”. Em seguida, adiciona-se um “marcador identitário”, como “interseccionais” ou “decoloniais”. Prossegue-se com um conectivo estratégico, frequentemente “na resistência a/ao” ou sinônimos, que posiciona o autor como um sujeito engajado e “crítico”. Por fim, escolhe-se um “inimigo total” (e.g., “necropolítica”, “patriarcado”). O resultado é um título que, segundo Gomes, informa mais sobre a adesão ideológica do autor e seu desejo de “mudar a realidade” do que sobre o real escopo do estudo. A questão que Wilson Gomes levanta é sobre a autenticidade e o propósito desses discursos, quando comparados à capacidade de efetivamente esclarecer fenômenos complexos.
Em ambientes onde a hegemonia progressista é dominante, esses chavões acadêmicos não são encarados com leveza, mas sim como métricas de prestígio e validação. O efeito perverso desse cenário é que a valia de ideias e indivíduos passa a ser medida pela sua capacidade de emitir “sinalizações de virtude”, ofuscando a qualidade da explicação e análise dos fenômenos estudados. Enquanto a bolha acadêmica se enreda nesses discursos, o mundo exterior e seus problemas concretos – como emprego, a qualidade da educação, o acesso à saúde e a segurança pública – permanecem à margem, distantes da linguagem e das preocupações que parecem consumir a produção intelectual.
A fundamentação dessa linha de pensamento, frequentemente defendida como “pensamento crítico”, remonta à 11ª tese de Marx sobre Feuerbach: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo; o que importa é transformá-lo”. Essa máxima foi largamente interpretada ao longo do século 20 como um imperativo moral para que a atividade científica e intelectual se convertesse em militância. Nesse contexto, a interpretação e a explicação, que são os pilares do ethos científico, foram gradualmente depreciadas, sendo vistas como atividades menores, improdutivas ou até cúmplices de um sistema a ser combatido. O mérito de pesquisas, livros e cursos passou a ser avaliado não pela sua competência em elucidar a realidade, mas pela sua capacidade declarada de “transformar o mundo” de acordo com a agenda ideológica do grupo.
Essa primazia do ativismo sobre a análise não é recente e possui uma trajetória intelectual discernível. A distinção entre “teoria tradicional” e “teoria crítica”, por exemplo, foi crucial para instituir a predominância de um tipo de conhecimento que se autodefine por seus propósitos emancipatórios. De modo similar, a dicotomia entre “pesquisa administrativa” e “pesquisa crítica” consolidou um panorama moral dentro da academia. Explicações voltadas para a previsão, gestão ou para a formação de competências eram frequentemente estigmatizadas como coniventes com o “sistema”, enquanto explicações focadas em “desnaturalizar” as estruturas sociais ganhavam um capital simbólico significativamente maior.
As ramificações dessa perspectiva são notórias também na pedagogia. Em projetos educacionais ditos “críticos”, a instituição de ensino muitas vezes se transforma em um “laboratório de consciência”. Nesses ambientes, a prioridade máxima é “formar sujeitos críticos”, superando a importância do domínio de conteúdos substantivos, da maestria metodológica e da acumulação de conhecimento. Dessa forma, títulos, ementas de disciplinas e chamadas de projetos acadêmicos passam a ser valorizados mais pelo seu alinhamento moral com uma causa do que pela sua efetiva capacidade de fornecer compreensão sobre o funcionamento do mundo e suas dinâmicas intrínsecas. Essa mudança de foco é um dos pontos cruciais que Wilson Gomes convida a problematizar.

Imagem: www1.folha.uol.com.br
Entretanto, no mundo real e em sua complexidade prática, qualquer aspiração genuína de transformação exige um entendimento profundo e prévio dos elementos em jogo. É imperativo articular claramente o que está sendo analisado, quais são os mecanismos subjacentes, quais evidências sustentam a argumentação e sob quais condições uma determinada intervenção poderá ser eficaz. Sem essa base sólida de análise e compreensão, o que é rotulado como “pauta crítica” corre o sério risco de se desvirtuar, tornando-se indistinguível de uma mera militância, perdendo a objetividade e o rigor que deveriam nortear o trabalho intelectual.
A defesa de Wilson Gomes não é por uma neutralidade absoluta ou inatingível. Ao invés disso, é um apelo contundente pela honestidade intelectual. Professores, cientistas e outros trabalhadores da esfera intelectual, incluindo jornalistas, possuem uma responsabilidade primordial de evitar que suas inclinações ideológicas comprometam a qualidade e a integridade de seu trabalho. Essa ética se traduz em práticas rigorosas: diferenciar honestamente hipóteses de preferências pessoais, expor os métodos de pesquisa de forma transparente, aceitar e se adaptar à refutação de ideias, ajustar conclusões aos dados empíricos, declarar explicitamente conflitos de interesse e resistir vigorosamente à tentação de equiparar “ser útil à minha causa” com “ser verdadeiro”. Tais princípios são cruciais para assegurar a confiabilidade do conhecimento gerado. É essencial, para aprofundar essa discussão sobre integridade, analisar os critérios e processos de fomento à pesquisa no país. Para mais detalhes, confira o que o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) preconiza sobre esses assuntos em sua página sobre fomento.
Em uma era caracterizada pela hiperpolarização social e política, a busca incessante por essa integridade e rigor no trabalho intelectual não se configura como um detalhe acessório, mas como o próprio pilar que sustenta a confiança do público na produção de conhecimento. É inegável que não faltam pessoas com a intenção de modificar o mundo; contudo, o que se observa é uma crescente escassez de mão de obra dedicada honestamente a entender e a explicar esse mundo com a devida profundidade e clareza, elementos fundamentais para qualquer transformação verdadeiramente consciente e efetiva.
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Este artigo de Wilson Gomes instiga uma reflexão vital sobre os rumos da intelectualidade contemporânea e a importância do rigor na análise. Para continuar acompanhando debates aprofundados e análises críticas sobre diversos temas relevantes, visite nossa seção de Análises e mantenha-se informado sobre os principais pensadores do nosso tempo.
Crédito da imagem: Ariel Severino
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