O voto de Luís Roberto Barroso pela descriminalização do aborto, formalizado nas vésperas de sua aposentadoria, repercutiu como um acontecimento inesperado entre os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Embora a postura favorável do magistrado em relação ao tema fosse amplamente conhecida, existiam indicações de que ele deixaria o colegiado sem manifestar sua posição sobre a ação em questão.
O anúncio da decisão de Barroso pegou diversos de seus pares de surpresa, muitos dos quais souberam do movimento através da imprensa na tarde da sexta-feira, 17 de outubro de 2025. O fato ocorreu logo após ele ter solicitado uma sessão virtual extraordinária ao então presidente da Corte, Edson Fachin, para registrar sua manifestação. Esse gesto, às vésperas de sua saída oficial da Corte, em 18 de outubro, dia de sua aposentadoria antecipada, causou um evidente desconforto no âmbito do tribunal.
Voto de Barroso sobre aborto surpreende STF e gera desconforto
O ministro havia mantido em aberto até o último momento se proferiria seu voto na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442. Esta ação judicial visa retirar a penalidade para a interrupção voluntária da gestação realizada até a 12ª semana. Barroso finalizou sua ponderação e definiu que votaria apenas na noite da quinta-feira, 16 de outubro. Contudo, ele não se limitou a isso; o ministro também concedeu duas decisões liminares em processos cuja relatoria havia herdado de Fachin, após este assumir a presidência da Corte no início de outubro. Nestas decisões adicionais, foi determinado que enfermeiros e técnicos de enfermagem podem oferecer assistência em procedimentos de aborto nos cenários legalmente previstos, sem que por isso sejam passíveis de punição.
A legislação vigente, especificada no artigo 128 do Código Penal, restringe a execução de abortos a médicos, mencionando unicamente essa categoria profissional nas situações em que o procedimento não é considerado punível. A decisão liminar de Barroso contrariou a posição do Conselho Federal de Medicina (CFM), que historicamente se opõe à liberalização para outros profissionais de saúde.
Adicionalmente, Barroso suspendeu processos administrativos e penais, bem como outras decisões judiciais em casos relacionados à assistência de não-médicos em abortos legais. Essas deliberações, por terem caráter liminar, tiveram validade e eficácia imediatas.
A Inesperada Aproximação com Gilmar Mendes
A decisão de votar foi comunicada a poucos colegas na manhã seguinte, incluindo o ministro Gilmar Mendes. Curiosamente, Barroso e Mendes compartilharam uma notória trajetória de desavenças ao longo de suas carreiras no Supremo, o incidente mais célebre tendo ocorrido em 2018, quando Barroso proferiu declarações contundentes sobre Mendes. No entanto, desde o governo de Jair Bolsonaro, observou-se uma reaproximação entre os dois, culminando no estreitamento de seus laços e na formação de uma relação aprimorada. Tal união se tornou notória a ponto de ambos planejarem uma “dobradinha” estratégica: Barroso pediria a inclusão de seu voto no plenário virtual sobre a descriminalização do aborto e, logo em seguida, Gilmar Mendes pediria destaque, interrompendo o julgamento. Este cenário se concretizou por volta das 20h30 daquela sexta-feira, confirmando o pacto.
Apesar da parceria, Gilmar Mendes manifestou divergência em relação à posição de Barroso em uma das outras ações herdadas de Fachin, especificamente aquela referente aos profissionais de enfermagem, que permaneceu em aberto para posterior confirmação. O ministro decano argumentou não haver urgência para uma decisão liminar no contexto apresentado. Após o voto de Barroso, outros quatro ministros — Cristiano Zanin, Flávio Dino, Kassio Nunes Marques e André Mendonça — votaram de maneira alinhada, porém, sem registrar um voto por escrito ou fundamentação detalhada. Essa omissão pode ser interpretada como uma forma de votação emergencial ou um recado sutil ao então ex-colega.
As deliberações de Barroso refletem um complexo panorama de tensões internas e reações variadas entre os membros da Corte, pontuando os desafios de consensos em temas sensíveis e de grande repercussão social e jurídica.
Legado Pessoal e Relevância Temática
Caso Luís Roberto Barroso tivesse optado por não votar, o ministro que assumisse sua cadeira herdaria não apenas a relatoria das duas ADPFs sobre as quais ele se manifestou na sexta-feira, mas também a prerrogativa de se posicionar no mérito da ação principal sobre a descriminalização. Atualmente, o advogado-geral da União, Jorge Messias, que é evangélico, é apontado como o nome mais provável para preencher a vaga. Especula-se, entre pessoas próximas ao ministro aposentado, que as possibilidades em sua sucessão figuraram como um dos cálculos na tomada de sua decisão final.

Imagem: www1.folha.uol.com.br
Entretanto, prevalece a avaliação de que fatores biográficos e ideológicos tiveram peso preponderante. O tema dos direitos reprodutivos, em particular, é de grande importância para Barroso, que considera essencial para a sociedade a descriminalização do aborto, e deseja contribuir para esse marco. Essa postura encontra ressonância em sua trajetória: Barroso foi advogado na ação que validou o procedimento em casos de anencefalia em 2012. Além disso, participou do julgamento de 2016, na Primeira Turma da corte, que estabeleceu que o aborto não seria crime se realizado até o terceiro mês de gestação.
A deliberação da Primeira Turma, contando com os votos de Barroso, Fachin e Rosa Weber, ocorreu em um caso específico e não teve repercussão geral. Contudo, animou movimentos feministas e ativistas a articularem a elaboração da ADPF 442, que foi formalmente apresentada em 8 de março de 2017. A ADPF 442 permaneceu no gabinete de Barroso desde setembro de 2023, quando a ministra Rosa Weber deixou o Supremo após votar a favor da descriminalização, baseando seu voto nos direitos reprodutivos e na autonomia das mulheres. A sexta-feira em questão foi marcada por um clima de tensão crescente em torno do voto do ministro. Rumores sobre a iminência de sua decisão incentivaram movimentos feministas a articular uma intensa campanha em redes sociais, com o objetivo de pressioná-lo a prosseguir com seu posicionamento. Desde 2023, havia uma expectativa de que Barroso pautasse o julgamento durante sua presidência. No entanto, o ministro vinha reiteradamente afirmando que o país não estaria devidamente preparado para debater o tema. Nos bastidores do STF, o entendimento prevalente era de que Barroso percebia a inexistência de votos suficientes para a descriminalização no tribunal, além de prever um clima político excessivamente tenso para retomar a análise do caso.
Quando Barroso formalizou o pedido a Fachin para agendar a sessão virtual extraordinária, a notícia foi recebida com euforia por parte das ativistas. Contudo, seguiu-se uma tensa espera de cinco horas até que o presidente da Corte desse seu aval. No despacho que finalmente determinou a abertura da sessão, Fachin ressaltou que, em sua visão, seria mais apropriado que o tema fosse discutido e deliberado em um plenário presencial.
O Futuro da ADPF 442 no STF
A tramitação da ADPF 442 enfrenta um futuro incerto, marcado por mudanças iminentes na composição da corte e diferentes posicionamentos dos ministros. Luiz Fux, Cármen Lúcia e Gilmar Mendes atingirão a idade de 75 anos no próximo ciclo presidencial e serão compulsoriamente aposentados. Os votos desses três ministros são considerados variáveis: Fux é visto como mais propenso a votar contra a ação, enquanto Cármen Lúcia e Gilmar Mendes geram incerteza quanto a suas futuras decisões. A interpretação da tendência de voto dos ministros é também objeto de discussões internas. Uma corrente de análise, por exemplo, sugere que Alexandre de Moraes poderia se manifestar a favor da descriminalização, principalmente devido a recentes decisões em ações relacionadas a restrições impostas pelos conselhos de medicina sobre o aborto legal. No entanto, esta leitura não é definitiva, conforme destacam alguns juristas consultados em um importante site especializado em Direito como o Migalhas.
Por sua vez, o ministro Fachin foi um dos votos favoráveis, ao lado de Barroso e Rosa Weber, na histórica decisão de 2016 que revogou prisões preventivas de indivíduos ligados a uma clínica clandestina de aborto em Duque de Caxias (RJ). Esse precedente é visto como significativo no debate sobre a matéria. Entretanto, como sucessor de Rosa Weber, Flávio Dino não possui o direito de votar no mérito da ação específica. Dino, assim como Cristiano Zanin, são católicos e poderiam apresentar objeções à descriminalização. André Mendonça e Kassio Nunes Marques são frequentemente categorizados como ministros de perfil conservador, linha que, na opinião de diversos analistas, também inclui Dias Toffoli, tornando a conformação de maioria para a ADPF 442 ainda mais complexa e incerta no futuro.
Confira também: crédito imobiliário
Em suma, o voto do ministro Luís Roberto Barroso pela descriminalização do aborto marca um momento de grande impacto e debate no cenário jurídico e político brasileiro, reverberando questões sobre legado, sucessão e direitos reprodutivos. Continue acompanhando nossa cobertura em nossa editoria de Política para não perder os desdobramentos deste e de outros temas cruciais do país.
Crédito da imagem: Pedro Ladeira – 24.set.25/Folhapress
🔗 Links Úteis
Recursos externos recomendados