Na recente Cúpula Mundial de Saúde, sediada em Berlim, especialistas de diversas áreas defenderam um novo olhar sobre a violência armada como um problema de saúde pública. Durante o evento, diversas propostas inovadoras foram apresentadas para combater a escalada de mortes e ferimentos decorrentes de armas de fogo. Entre as sugestões levantadas, destacam-se a inclusão de conteúdos sobre o tema nos programas de estudo de cursos de medicina e a exigência de alertas explícitos nos produtos, semelhantes aos avisos presentes em rótulos de alimentos considerados prejudiciais à saúde, para informar sobre os riscos inerentes à posse de armas.
Apesar de seu impacto devastador — contabilizando a vida de mais de 600 pessoas diariamente ao redor do globo, sendo aproximadamente 125 vítimas fatais por dia somente no Brasil, além de um número incalculável de feridos —, a violência ocasionada por armas de fogo frequentemente não recebe a devida atenção como uma crise sanitária de proporções sérias. Essa carga de mortalidade e morbidade afeta desproporcionalmente populações jovens e masculinas, concentrando-se de forma acentuada em apenas seis países: Brasil, Colômbia, Índia, México, Estados Unidos e Venezuela, que juntos somam dois terços das mortes globais por armas de fogo.
Violência Armada: Urge Debate como Problema de Saúde Pública
Como resposta a este cenário alarmante, foi formalizado durante a cúpula o estabelecimento de uma comissão de grande relevância pela renomada revista The Lancet, focada no estudo da violência global relacionada a armas e sua intrínseca conexão com a saúde pública. Conforme explicou o professor Adnan Hyder, especialista em saúde global da Universidade George Washington (EUA) e presidente desta nova comissão, o objetivo primordial é aprofundar o entendimento sobre uma crise sanitária global que ainda permanece subestimada: a forma como as armas de fogo se constituem em um fator de risco e ameaça constante ao bem-estar e à saúde humana.
A comissão congrega uma diversidade de talentos e conhecimentos, reunindo especialistas internacionais provenientes de áreas cruciais como saúde pública, economia, direito, medicina, história e ciência política. Sua liderança é compartilhada, com a professora associada de ciência política da Universidade de São Paulo (USP), Lorena Barberia, atuando como co-presidenta. Esta união multidisciplinar visa uma abordagem holística para a complexidade da violência armada.
O extenso programa de investigação da comissão abrange uma série de metas fundamentais. Isso inclui a mensuração precisa da carga de mortalidade e morbidade, a avaliação dos impactos econômicos diretos e indiretos que essa forma de violência acarreta, e uma análise aprofundada da influência exercida pelas políticas internacionais sobre o armamento. Além disso, a iniciativa busca reunir evidências substanciais sobre intervenções bem-sucedidas capazes de atenuar as graves consequências das armas para a saúde humana.
Em sua fala, a professora Lorena Barberia ressaltou que os “custos indiretos”, muitas vezes ignorados na discussão, são igualmente significativos. Ela citou exemplos como a atuação de “forças militares invadindo uma comunidade” e o fechamento de “escolas e clínicas de saúde” como reflexos diretos da violência, gerando um impacto que ainda não está sendo devidamente quantificado. Barberia também salientou a urgência de debater, no contexto brasileiro, a inclusão de discussões sobre violência armada nos currículos de faculdades de medicina e outras disciplinas da saúde, ecoando um movimento já em andamento nos Estados Unidos. “Quanto tempo estamos dedicando para ensinar esses especialistas a detectar e ser capaz de antecipar a violência antes que ela ocorra? O que sabemos sobre quantas pessoas guardam armas em casa?”, questionou a pesquisadora.
Um estudo conduzido nos Estados Unidos, que trouxe à tona uma realidade preocupante, indicou que apenas 1% do conteúdo curricular nas escolas médicas norte-americanas aborda o complexo tema da violência por armas de fogo. Para médicos atuantes no Brasil, onde o problema da violência armada é de uma magnitude ainda maior e mais presente no cotidiano, este percentual é notavelmente ínfimo, contrastando fortemente com os desafios práticos que eles enfrentam na vida real. A inadequação desse enfoque curricular cria uma série de obstáculos significativos para a capacidade dos profissionais de saúde de lidar e tratar eficazmente os pacientes afetados por esse tipo de violência.
Michele Gonçalves, que ocupa o cargo de diretora de educação e pesquisa no Ministério da Justiça e Segurança Pública, enfatizou a imperatividade de integrar os esforços existentes em políticas públicas. Tal medida se mostra crucial dada a vasta dimensão da violência armada no Brasil. Segundo Gonçalves, a integração inclui o indispensável compartilhamento de dados entre diferentes esferas. Em um cenário onde “limites orçamentários” para investimentos são cada vez mais restritivos, a diretora defendeu que “precisamos avançar na identificação e mitigação de fatores de risco” para otimizar os recursos disponíveis e garantir uma atuação mais eficaz.
Nesse sentido, os agentes que integram o programa Estratégia de Saúde da Família (ESF), responsáveis por um acompanhamento diário e direto das famílias em regiões consideradas vulneráveis, poderiam se transformar em componentes estratégicos e fundamentais para a criação de um elo de dados entre os setores de segurança e saúde. A diretora exemplificou essa sinergia ao questionar: “Em casos que se tem violência doméstica, sabemos se há uma arma registrada naquela casa. Como podemos agir preventivamente?” A intersecção desses dados pode oferecer insights preciosos para ações preventivas.
Ainda para a professora Barberia, é fundamental que haja avisos claros sobre os perigos e riscos de se possuir uma arma, implementados da mesma forma que os alertas de saúde que atualmente acompanham produtos considerados prejudiciais à saúde. Ela argumenta veementemente: “Quando se compra um cigarro, há avisos sobre riscos à saúde que ele causa. A gente não vê isso em relação às armas. Deveria ser obrigatório”, defendendo a padronização de avisos preventivos. Um estudo recente da The Lancet destaca a importância de abordar essa crise global.
Entre as estratégias bem-sucedidas que já demonstraram eficácia no controle da posse de armas, Barberia destacou uma iniciativa política implementada na Argentina. Esta política tornava de conhecimento público a informação de que um indivíduo estava em processo de adquirir uma arma, com o propósito de permitir que membros da comunidade ou familiares pudessem expressar oposição, se fosse o caso. A medida buscava, em essência, abrir um canal de diálogo e cautela, visando a prevenção da violência armada.

Imagem: www1.folha.uol.com.br
“Eles notificavam a família e os membros da comunidade. Se a pessoa estava se divorciando, talvez não fosse o melhor momento para ter uma arma. Foi demonstrado que [a política] ajudou a evitar a violência”, afirmou a pesquisadora. Este exemplo ilustra como políticas que promovem o escrutínio comunitário e familiar podem ser ferramentas importantes para frear a posse inadequada de armamentos e, consequentemente, diminuir os riscos de episódios violentos. Esta abordagem da professora reflete uma busca por soluções proativas.
Para Barberia, a complexa questão da violência exige ser examinada sob uma perspectiva epidemiológica, tal como se faz atualmente com enfermidades como a Influenza ou a Covid-19. Esse modelo prevê a notificação de casos, permitindo que, por exemplo, determinadas regiões reportem aumentos de ocorrências de violência. Com base nesses dados, setores como educação, saúde e segurança pública poderiam elaborar e implementar estratégias de prevenção adaptadas às especificidades locais. As abordagens poderiam variar se a região em questão já possui um quadro de violência endêmica ou se está experienciando um aumento pontual de casos sem histórico anterior de intensidade, demonstrando a necessidade de análises mais aprofundadas.
Infelizmente, conforme lamenta a especialista, “Hoje não temos os dados para a prevenção, só temos quando o desfecho já aconteceu”, indicando uma lacuna crítica na coleta e análise de informações que poderiam embasar ações preventivas no Brasil. Apesar de o país ter dado alguns passos na identificação de múltiplos fatores de risco relacionados à violência, o progresso na implementação de medidas preventivas robustas ainda é insatisfatório.
Um estudo revelador, publicado no ano de 2019, trouxe à tona que mulheres expostas a formas diversas de violência – seja física, sexual ou mental – enfrentam um risco de mortalidade significativamente elevado, sendo esse risco oito vezes superior ao da população feminina em geral. A pesquisa, que utilizou dados preciosos fornecidos pelo Ministério da Saúde, examinou detalhadamente cerca de 800 mil notificações de violência contra mulheres, registradas pelos serviços de saúde. Além disso, analisou 16,5 mil óbitos associados diretamente a essas violências, abrangendo o período compreendido entre 2011 e 2016.
Os pesquisadores efetuaram um minucioso cruzamento dessas informações com os registros de morte presentes no Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM). Esta integração de dados possibilitou a construção de uma trajetória detalhada das mulheres que foram vítimas de agressões, revelando como essas violências culminaram em seus óbitos. Essa abordagem metodológica permitiu traçar um panorama claro das conexões entre a agressão sofrida e seu desfecho fatal, evidenciando a cronicidade da vulnerabilidade enfrentada por muitas.
“É a verdadeira crônica de uma morte anunciada. Temos a agressão, temos até o endereço da mulher e do agressor, sabemos que ela corre o risco de morrer, e no final da história, ela morre. Morte evitável, mas não estamos conseguindo atuar preventivamente”, lamentou a médica Fatima Marinho, que participou da autoria do impactante estudo. Sua observação sublinha a falha sistêmica em prevenir desfechos trágicos, mesmo quando há informações prévias que poderiam permitir uma intervenção efetiva e salvaguardar vidas.
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Em suma, o debate na Cúpula Mundial de Saúde destaca que a violência armada precisa ser abordada de maneira urgente e multidimensional, não apenas como uma questão de segurança, mas como um premente problema de saúde pública. As proposições, que variam desde a integração curricular em cursos de saúde até a implementação de avisos em armas e a adoção de estratégias epidemiológicas, reforçam a necessidade de ações preventivas mais coordenadas e baseadas em dados. Para continuar acompanhando as discussões mais importantes sobre política e os impactos na sociedade, acesse a editoria Cidades em nosso site e fique por dentro das últimas notícias.
Crédito da imagem: Divulgação Polícia Federal
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