A presença de universitários com deficiência nas instituições de ensino superior brasileiras apresentou um crescimento significativo na última década. No entanto, mesmo com o avanço notável, esse grupo ainda representa uma pequena parcela do total de estudantes matriculados em cursos de graduação no país, com menos de 1% do universo acadêmico. As políticas de inclusão, especialmente a Lei de Cotas, emergem como pilares fundamentais para essa expansão, tornando os vestibulares e a própria permanência universitária mais acessíveis.
De acordo com os dados mais recentes do Censo da Educação Superior, divulgado pelo Ministério da Educação (MEC), o número de matrículas de alunos que declararam alguma deficiência, transtornos globais do desenvolvimento ou altas habilidades/superdotação alcançou a marca de aproximadamente 95 mil em 2024. Este contingente corresponde a 0,9% do total de universitários. Comparativamente, em 2014, o volume era de 33 mil estudantes, o que representava apenas 0,4% da população graduanda, evidenciando um aumento de mais que o dobro em um período de dez anos.
Universitários com Deficiência Aumentam: Cotas Impulsionam Acesso
O levantamento aponta que os tipos de deficiência mais declarados pelos estudantes em 2024 foram a deficiência física, totalizando 29.126 matrículas; baixa visão, com 21.748; e transtorno do espectro autista, com 15.941. É importante salientar que um mesmo universitário pode registrar mais de uma condição, o que reflete a complexidade das demandas por acessibilidade e suporte específico no ambiente acadêmico.
O impulsionamento desse crescimento é creditado diretamente a uma série de políticas de inclusão implementadas no país. A reserva de vagas em processos seletivos e a oferta de atendimento especializado durante os vestibulares figuram como medidas cruciais. Um marco legislativo foi a inclusão de pessoas com deficiência na Lei de Cotas em 2016, uma medida que assegura vagas em universidades federais. Mais recentemente, em julho deste ano, uma nova lei estadual em São Paulo estabeleceu a reserva de vagas em universidades estaduais como USP, Unicamp e Unesp, além do ensino técnico, expandindo o alcance das cotas para instituições de ensino superior sob jurisdição estadual.
Experiência da Unicamp e os Reflexos das Novas Leis
A Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) é um exemplo prático dos efeitos dessas políticas. A instituição, que já havia aprovado uma medida semelhante em setembro de 2024, recebeu sua primeira turma de 22 alunos ingressantes pelo sistema de cotas para pessoas com deficiência este ano. Para Adriane Martim Soares Perissoli, coordenadora de Carreiras, Egressos e Vida Estudantil da Unicamp, a iniciativa não representou uma novidade, mas sim um poderoso impulso.
“A reserva de vagas não trouxe estudantes com deficiência pela primeira vez, mas fez com que a universidade se organizasse melhor e tornasse visível para todos a necessidade de acessibilidade”, destacou Perissoli. A declaração da coordenadora ressalta que as cotas desempenham um papel fundamental em catalisar mudanças estruturais e atitudinais necessárias para uma verdadeira inclusão.
Superando Desafios e Buscando Soluções na Vida Universitária
A realidade dos estudantes com deficiência é marcada tanto por conquistas quanto por desafios. Débora Ramalho, 33 anos, estudante de enfermagem na Unicamp e cadeirante, testemunhou as dificuldades de navegar por um campus universitário com infraestrutura antiga, projetada na década de 1970. Em seus primeiros dias, ela enfrentou a falta de espaço para a cadeira de rodas e a ausência de mesas adaptadas, chegando a assistir às aulas em locais inadequados dentro da sala. “A Unicamp é uma universidade excelente, mas muitos prédios são antigos, então precisam de reforma para receber pessoas com deficiência”, ponderou Débora, que concluirá sua graduação ao final de 2025.
Entretanto, adaptações progressivas vêm sendo implementadas. Débora mencionou o “Vamos”, um sistema de carrinho de golfe acionado por aplicativo, desenvolvido para facilitar o transporte dos alunos pelo campus. “Isso foi um grande ganho, que não tínhamos”, celebrou a universitária, que se beneficiou diretamente dessa melhoria de acessibilidade.
A percepção de Marília Bortoleto Pires de Carvalho, 32 anos, doutoranda em educação e surda, reforça a importância dessas medidas. Marília teve acesso a recursos como intérprete de Libras (Língua Brasileira de Sinais) e tempo ampliado durante seu processo seletivo, essenciais para sua inclusão. Ela enfaticamente considera as cotas como um instrumento de justiça social: “Não representam um privilégio, mas sim uma forma de reparação histórica e de acesso justo”, afirmou. Apesar do suporte institucional, a convivência diária ainda apresenta barreiras, como a interação com colegas que não dominam Libras e o receio de se aproximar.
Pedro Henrique Silva Carvalho, 28 anos, doutorando em fonoaudiologia com deficiência visual, compartilha uma experiência mista de apoio e obstáculos. Ele recebeu uma força-tarefa de acompanhamento, com professores especialistas, laboratórios de acessibilidade e materiais adaptados em braille. “Foi uma experiência muito boa, tanto com colegas quanto com professores. Fiz amigos que trago até hoje e aprendi muito sobre direitos e políticas públicas”, recordou Pedro Henrique. Contudo, ele aponta dificuldades persistentes, como pisos táteis mal posicionados, calçadas irregulares e desafios em disciplinas que demandam recursos visuais intensos. Pedro Henrique reiterou o papel determinante das cotas, frisando que “São fundamentais para começar a superar desigualdades. Pessoas com deficiência não teriam acesso à universidade sem essas políticas.”
Avanços na Acessibilidade e os Desafios Comportamentais
Para assegurar a equidade nos processos de seleção e durante o percurso acadêmico, os vestibulares da USP, Unesp, Unicamp e o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) disponibilizam diversos recursos. Entre eles, destacam-se o tempo estendido para a realização das provas, exames adaptados, intérpretes de Libras e ledores. No Enem deste ano, um número recorde de 116.541 alunos contará com atendimento especializado, representando um aumento de 77% em comparação com a edição anterior.
Dentro das universidades, cada estudante recebe um plano individual de acompanhamento. Este documento visa orientar os docentes sobre as adaptações necessárias, garantindo o acesso a programas de mentoria e apoio psicológico. Perissoli, da Unicamp, explica que a universidade encoraja os professores a estabelecer um diálogo construtivo com os alunos. “Não é mudar o conteúdo, mas criar estratégias para que ele, o aluno em questão, possa acompanhar as aulas”, esclarece.
A coordenadora também enfatiza que, além das barreiras de infraestrutura, os maiores obstáculos residem no comportamento. “As maiores barreiras ainda são atitudinais. Não é ‘mimimi’, é o direito dessas pessoas. Elas têm direito de ser diferentes”, pontuou Perissoli, defendendo a necessidade de uma mudança cultural e social mais profunda para que a inclusão se concretize plenamente.
IBGE e a Realidade da Educação para Pessoas com Deficiência
Para enfrentar esses desafios, coletivos como o Anticapacitista e grupos de mentoria entre pares têm ganhado relevância na Unicamp, impulsionando a pauta da inclusão. A crescente presença desses universitários com deficiência é um fator crucial para que as transformações necessárias continuem a acontecer. Segundo Pedro Henrique, para que o ambiente universitário se torne verdadeiramente inclusivo em todos os níveis, ainda são necessários investimentos significativos em mais políticas públicas para o ensino superior, a criação de núcleos de acessibilidade robustos nas universidades estaduais e a capacitação continuada de docentes e equipes administrativas.
A realidade da população com deficiência no Brasil, segundo dados do Censo Demográfico de 2022, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), demonstra a urgência dessas políticas. O país contabiliza 14,4 milhões de pessoas com deficiência. Dentre as pessoas com deficiência com 15 anos ou mais, que somam 13,6 milhões, 2,9 milhões eram analfabetas, elevando a taxa de analfabetismo desse grupo para 21,3%, um índice quatro vezes maior que o da população sem deficiência.
Ademais, os dados do IBGE revelam que 63,1% das pessoas com deficiência de 25 anos ou mais não possuíam instrução ou não haviam concluído o ensino fundamental, em contraste com 32,3% da população sem deficiência. Apenas 7,4% dessa parcela da população com deficiência havia completado o ensino superior, número consideravelmente menor que os 19,5% observados entre pessoas sem deficiência. Estes números reforçam a importância de fortalecer as políticas de acesso e permanência no ensino superior para universitários com deficiência, visando a superação das desigualdades históricas.
Confira também: artigo especial sobre leis e valortrabalhista
O aumento da presença de universitários com deficiência é um indicativo positivo do impacto das políticas de inclusão no ensino superior. No entanto, os desafios ainda são numerosos, abrangendo desde a infraestrutura até as barreiras atitudinais. É fundamental que haja um compromisso contínuo com a implementação e o aprimoramento dessas políticas, garantindo não apenas o acesso, mas também a permanência e o desenvolvimento pleno de todos os estudantes. Para mais análises sobre as políticas sociais e o cenário educacional no Brasil, continue explorando nossa editoria de Política e mantenha-se informado.
Crédito da imagem: Lucas Seixas/Folhapress
🔗 Links Úteis
Recursos externos recomendados