O acidente conhecido como escalpelamento, que ocorre quando cabelos e partes do corpo ficam presos em motores de barcos, continua sendo uma realidade trágica para as comunidades ribeirinhas da Amazônia, com sérias consequências que marcam a vida das vítimas. Especialmente no estado do Pará, centenas de indivíduos foram afetados por essa modalidade de lesão ao longo das últimas décadas.
A gravidade da situação se evidencia no cenário do Pará, onde em 2025 será sediada a Conferência da ONU sobre o Clima (COP30), destacando um paradoxo entre o progresso ambiental e as lutas cotidianas. Muitas mulheres, que constituem a grande maioria das vítimas, enfrentam não apenas as limitações físicas decorrentes das lesões, mas também um significativo descaso, por vezes, acompanhado pela injusta responsabilização delas pelos acidentes.
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Durante longos anos, a incidência de escalpelamento permaneceu em grande parte esquecida pelas autoridades e pela sociedade em geral. O suporte oferecido àqueles que sofreram tais acidentes dependia majoritariamente da iniciativa e da compaixão de médicos que organizavam mutirões voluntários para a realização de cirurgias reparadoras. A situação começou a mudar a partir de 2010, ano em que foi instituído o 28 de agosto como o Dia Nacional de Combate e Prevenção ao Escalpelamento. Desde então, ações voltadas ao enfrentamento do problema, como a intensificação da fiscalização para assegurar que os motores de barcos operem com as devidas proteções e coberturas, são apontadas como fatores cruciais para a redução do número de novos casos.
O estudo mais recente sobre o tema, conduzido pela Fundação Amazônia de Amparo a Estudos e Pesquisas (Fapespa) em janeiro de 2024, trouxe dados alarmantes. O levantamento contabilizou um total de 483 ocorrências de escalpelamento no estado do Pará no período entre 1960 e 2022. O ano de 2009 registrou o maior pico, com 22 casos notificados. A pesquisa também revelou um perfil preocupante das vítimas: impressionantes 98% são mulheres, e dentro desse grupo, 67% são crianças e adolescentes com idades entre 2 e 18 anos. Além do Pará, os estados do Amapá e do Amazonas também são atingidos pela problemática, embora em menor grau de incidência.
A realidade dos números pode ser ainda mais sombria, pois há uma percepção generalizada, conforme apontado por especialistas, de que as estatísticas são subnotificadas. A dificuldade em registrar adequadamente os casos reside no fato de que os registros não são obrigatórios, o que cria lacunas e subestima a real dimensão do problema nas comunidades ribeirinhas.
Os barcos constituem o principal meio de transporte em diversas localidades da Amazônia, tornando o risco inerente ao cotidiano de muitas famílias. A utilização intensiva dessas embarcações sem os equipamentos de segurança adequados nas hélices e motores contribui diretamente para a continuidade dos acidentes.
Os relatos das vítimas evidenciam o impacto profundo desses acidentes em suas vidas. Raíza Oliveira, hoje com 23 anos, é um testemunho vívido dessa realidade. Ela foi vítima de escalpelamento aos oito anos de idade. Em sua declaração à DW, ela expressou a irreversibilidade do acontecimento: “A partir do momento que sofremos o acidente, muda a nossa vida”. Residente de uma comunidade ribeirinha no interior do Pará, Raíza precisa se deslocar frequentemente, por vezes até duas vezes ao mês, para Belém, onde realiza seus tratamentos na Santa Casa de Misericórdia. Cada percurso de ida ou volta pode durar aproximadamente um dia, evidenciando as barreiras geográficas e logísticas enfrentadas pelas vítimas.
As vítimas de escalpelamento necessitam de um suporte multifacetado que vai muito além das cirurgias iniciais de reconstrução plástica. O processo de recuperação exige um extenso apoio psicológico e outros tipos de acompanhamento especializado, como o monitoramento de funções neurológicas e auditivas, frequentemente comprometidas devido à natureza violenta dos acidentes. O impacto físico é visível, mas as cicatrizes internas são igualmente profundas e demandam atenção contínua.
Flávia Lemos, professora de Psicologia Social da Universidade Federal do Pará (UFPA), enfatiza a complexidade da situação: “A retomada da autoestima é muito difícil, são sequelas por toda a vida.” A professora salienta que, embora existam esforços para acolher as vítimas, uma reconstrução completa da integridade física e psicológica é uma tarefa árdua. O impacto nas pessoas é vasto e significativo, afetando consideravelmente as esferas emocionais e sociais, perpetuando o sofrimento ao longo de suas vidas.
O Ciclo da Culpabilização e os Desafios Legais
Uma das queixas mais constantes e dolorosas expressas pelas vítimas e especialistas é a tendência à culpabilização das próprias pessoas afetadas pelos acidentes. Essa visão prevalece em algumas populações locais, que erroneamente atribuem a responsabilidade às jovens por supostamente não terem tomado os cuidados necessários com seus cabelos ou vestimentas. Conforme explicam especialistas, esse julgamento pejorativo tem o efeito nocivo de reduzir o ímpeto e a coragem dessas pessoas para reivindicarem seus direitos e buscarem reparações, perpetuando um ciclo de silêncio e vitimização.
Raíza Oliveira relata essa experiência: “Nós começamos mais tímidas, já que as pessoas falam que é nossa a responsabilidade pelo acidente.” Contudo, a jovem observa um cenário de mudança gradual. Ela percebe que a mobilização das vítimas tem melhorado nos últimos anos, impulsionada em grande parte pela articulação e troca de informações através de redes sociais. Esse ativismo digital tem fortalecido a causa e ampliado a voz das vítimas em prol de suas demandas e direitos. “O conhecimento sobre os acidentes melhorou, vemos isso como uma conscientização”, avalia Oliveira. No entanto, ela ressalta que, apesar do avanço, a culpabilização das vítimas ainda é presente, e há um preconceito velado com as mulheres ribeirinhas. A professora Flávia Lemos adiciona que a percepção de que o escalpelamento é causado por um cabelo longo e solto contribui significativamente para essa culpabilização, sugerindo um suposto desleixo por parte das envolvidas.
Em um movimento para tentar mitigar essas consequências, existe a atuação de organizações não governamentais que buscam levar saúde mental e suporte às comunidades ribeirinhas, onde o acesso a esses serviços é notoriamente precário e insuficiente para atender à demanda de pessoas traumatizadas por esses acidentes.

Imagem: www1.folha.uol.com.br
Acompanhamento e os Desafios de Acesso ao Tratamento
Raíza Oliveira e outras vítimas frequentam o Espaço Acolher, localizado na Santa Casa de Misericórdia de Belém. Esse núcleo se estabeleceu como uma referência estadual no atendimento a vítimas de escalpelamento, proporcionando não apenas os cuidados médicos iniciais, mas também o acompanhamento contínuo. O Espaço Acolher, criado em 2006, é uma iniciativa integrada ao Programa de Atendimento Integral às Vítimas de Escalpelamento (Paives), uma política pública do Pará com o objetivo de centralizar e padronizar o atendimento a essas vítimas, garantindo uma abordagem mais completa e humana.
Jureuda Guerra, psicóloga hospitalar que atende no Espaço Acolher, relembra uma fase mais precária da assistência. Entre as décadas de 1960 e o início dos anos 2000, não havia um protocolo de atendimento específico para os casos de escalpelamento. Como consequência direta dessa lacuna, muitas vítimas deixavam de realizar exames cruciais para o diagnóstico completo e tratamento, como ressonância magnética e tomografia craniana, o que comprometia seriamente o sucesso das intervenções. Atualmente, o processo de atendimento evoluiu, e, após o atendimento inicial nas unidades de saúde mais próximas às comunidades, há um encaminhamento padronizado para a Santa Casa de Belém.
Apesar dos avanços nos protocolos, o deslocamento permanece como um dos maiores desafios para a continuidade dos tratamentos. Em um estado vasto como o Pará, o tempo de viagem desde as zonas ribeirinhas até a capital pode facilmente alcançar dois dias. Essa longa jornada dificulta a assiduidade dos pacientes, conforme relatado por Guerra: “Tenho casos de crianças que não vêm há mais de três anos, e seguem perdendo as consultas”, ilustrando a persistente barreira geográfica.
A situação é ainda mais complicada pelo sistema do Tratamento Fora de Domicílio (TFD), que deveria ser o responsável por custear o deslocamento dos pacientes. Essa responsabilidade, que recai sobre os municípios, frequentemente não é cumprida. A psicóloga Jureuda Guerra aponta que muitas prefeituras não repassam os valores devidos às vítimas ou criam impedimentos burocráticos para as viagens à capital, impedindo que os pacientes tenham acesso aos cuidados essenciais.
Mesmo após a fase adulta, as pacientes de escalpelamento frequentemente precisam de acompanhantes para realizar os deslocamentos, adicionando mais uma camada de complexidade e custo às viagens. Durante o trajeto, a condição de saúde pode se agravar; as vítimas são suscetíveis a crises de encefaleia, que podem manifestar-se em desmaios ou outras situações de saúde graves, colocando em risco a vida dos pacientes. Diante desse cenário complexo, a psicóloga Guerra manifesta ceticismo sobre a viabilidade de realizar tratamentos mais próximos das regiões ribeirinhas. Ela argumenta que as unidades de saúde locais não dispõem da estrutura necessária nem da capacidade para oferecer o mesmo nível de atendimento especializado encontrado na capital, o que reitera a centralização do tratamento e os desafios de acesso.
O Voluntariado e a Luta por Políticas Públicas
Embora a ação voluntária tenha desempenhado um papel fundamental no apoio às vítimas de escalpelamento por décadas, surgem temores de que esse tipo de auxílio possa, de certa forma, ofuscar a necessidade premente de políticas públicas efetivas e abrangentes. Flávia Lemos expressa essa preocupação, avaliando que “Muitas vezes, o voluntariado possui uma perspectiva assistencialista, pontual e provisória”. As ações voluntárias comumente observadas incluem mutirões de cirurgia e campanhas de doação de cabelos para as vítimas, fornecendo suporte emergencial, mas sem solucionar a raiz estrutural do problema.
A percepção das vítimas, como Raíza Oliveira, reforça essa crítica. Ela relata: “As pessoas tentam impor na nossa cabeça que estão nos fazendo um favor”, o que destaca a natureza caridosa, mas não necessariamente de direito, com que muitas vezes o apoio é oferecido. Em contraste com essa visão, há esforços concentrados no âmbito legislativo para garantir o acesso universal a direitos. Atualmente, um projeto de lei tramita no Congresso Nacional com o objetivo de assegurar às vítimas de escalpelamento o acesso imediato e gratuito a cirurgias reparadoras e reconstrutivas para correção das lesões, além de acompanhamento social e psicológico continuado. Esta proposta visa transformar a assistência de caridade em um direito inalienável.
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A senadora Damares Alves emergiu como a principal porta-voz do tema no legislativo federal, apresentando três propostas com o intuito de oferecer reparação e amparo às vítimas. Contudo, o avanço dessa pauta em Brasília encontra resistências significativas. A senadora descreve à DW o tema como “estigmatizado”, muitas vezes tratado como “um problema isolado, de regiões remotas”. Ela aponta que essas mulheres, por conta de suas sequelas, frequentemente estão “escondidas, ou sendo escondidas da sociedade”. A senadora reforça sua dedicação: “É uma luta explicar a importância dessa pauta aqui no Congresso. Mas isso não me desanima. Não vou descansar enquanto todas elas forem alcançadas, e enquanto houver riscos de novos acidentes”. Entre as proposições da senadora, destaca-se um projeto para instituir uma pensão especial às vítimas. A justificativa é crucial: “Essas mulheres não conseguem trabalho, não conseguem uma renda, especialmente por causa da aparência. Algumas são até largadas pelos companheiros”, defende a senadora. A pensão seria uma medida essencial para “garantir a subsistência dessa mulher e dos filhos, para garantir tratamento e medicação para as dores que sentem”, oferecendo um mínimo de dignidade e apoio financeiro vital para quem foi tão severamente prejudicado.
Com informações de Folha de S.Paulo
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