A atual discussão sobre a modalidade de concorrência para o gigantesco terminal de contêineres do Porto de Santos, em São Paulo, revela um interessante contraste com precedentes históricos. Apesar de sua área técnica ter recentemente manifestado objeção à condução de um leilão bilionário em duas etapas para este projeto, o Tribunal de Contas da União (TCU) já endossou repetidamente o modelo de leilões portuários em duas fases em certames anteriores. Essa postura tem sido objeto de intensa controvérsia, gerando disputas tanto entre as empresas participantes quanto no próprio aparato governamental, evidenciando as nuances e complexidades da regulamentação no setor portuário brasileiro.
A pauta, que envolve o maior leilão do segmento portuário já planejado no país para o terminal Tecon Santos 10, coloca em xeque a interpretação sobre como garantir a máxima concorrência e evitar a monopolização do mercado. Enquanto o Ministério de Portos e Aeroportos defende enfaticamente a licitação escalonada, buscando um maior equilíbrio competitivo a longo prazo, outras esferas governamentais, como o Ministério da Fazenda, apontam para a vantagem de um certame em fase única para proporcionar maior concorrência inicial. O papel do TCU, como órgão de controle externo, é crucial para definir o caminho a ser seguido, baseando-se em avaliações técnicas e estratégias regulatórias.
TCU já recomendou leilões portuários em duas fases
Em pelo menos duas ocasiões recentes, a corte de contas validou a proposição formulada pela Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), aprovando o esquema de licitação em duas etapas, com uma restrição particular para a participação de operadores que já possuíam atuação nos terminais existentes na fase inicial. Esse formato visa promover a entrada de novos players e assegurar uma distribuição mais equitativa da participação de mercado. Para informações mais detalhadas sobre as competências do Tribunal de Contas da União em processos licitatórios e fiscalização, você pode consultar o portal oficial do TCU.
Leilão do terminal MAC13 em Maceió como exemplo
Em 2022, ao analisar o procedimento de arrendamento do terminal de contêineres MAC13, localizado no porto de Maceió, em Alagoas, o plenário do TCU acolheu o parecer técnico emitido pela SeinfraPortoFerrovia, sua unidade especializada em infraestrutura portuária e ferroviária. Este parecer foi inequívoco em recomendar a realização do leilão em duas fases. A principal justificativa era a priorização da entrada de operadores que fossem independentes e que não apresentassem verticalização em suas operações, ou seja, que não estivessem atrelados a grandes grupos que já dominassem diversas etapas da cadeia logística. A avaliação técnica, àquela época, considerou que tal modelo contribuía substancialmente para “mitigar os riscos de concentração vertical” no setor.
A fundamentação para essa abordagem residia na convicção de que, ao conceder preferência a novos entrantes no mercado, a autoridade pública estaria garantindo um ambiente de competição mais amplo e justo ao longo de toda a vigência do contrato. O objetivo era ir além de uma mera disputa inicial de preços, buscando assegurar que a competitividade fosse mantida por décadas, resultando em benefícios consistentes para os usuários dos serviços portuários e para a economia como um todo. Essa visão contrasta com a concentração de poder que poderia advir de um leilão sem fases, onde grandes conglomerados poderiam prevalecer devido à sua capacidade financeira e estrutura consolidada.
Privatização do Porto de Itajaí também teve o mesmo racional
O mesmo raciocínio orientou a análise de outro importante processo em 2023: a desestatização do porto de Itajaí, em Santa Catarina. Neste cenário, a equipe técnica do Tribunal de Contas da União manifestou discordância em relação à Empresa de Planejamento e Logística (EPL), que argumentava em favor de uma disputa única e irrestrita, sob o pressuposto da isonomia entre os participantes. O TCU, por outro lado, priorizou a eficácia concorrencial a longo prazo.
Em seu relatório detalhado sobre o caso, a área técnica do TCU afirmou que um processo licitatório dividido em duas etapas criaria uma “oportunidade de melhoria substancial do mercado concorrencial, cujos efeitos perdurarão por décadas”. Argumentou ainda que, caso fosse adotado o leilão em fase única e completamente aberta a todos os licitantes, haveria o potencial de se “colocar em risco o bom funcionamento do setor durante toda vigência da concessão”. A perspectiva dos técnicos era clara: a forma como o leilão seria estruturado teria repercussões profundas na estrutura de mercado e na competitividade do setor portuário por um período considerável.
Para fundamentar essa análise, os técnicos do tribunal realizaram um cálculo do impacto no “índice de concentração de mercado”, conhecido internacionalmente como HHI (Herfindahl-Hirschman Index), uma ferramenta empregada para avaliar monopólios e a distribuição de mercado. A conclusão foi que, caso um novo participante viesse a vencer a disputa em Itajaí por meio do modelo em duas fases, esse índice decresceria, aproximando a concentração de mercado do limite de 20% definido pela legislação brasileira e do patamar de 40% estabelecido pela Comissão Europeia para a caracterização de concentração relevante. Essa análise quantitativa reforçou a tese de que a prioridade não era somente aumentar a arrecadação imediata através dos lances de outorga, mas, fundamentalmente, salvaguardar a competição no longo prazo.
Precedente em Santos com regra de restrição
Anteriormente a esses dois episódios, em 2019, o Tribunal de Contas da União também já havia examinado os leilões de terminais destinados a granéis líquidos (STS13 e STS13A) no Porto de Santos, durante um período de expansão da capacidade para combustíveis no complexo. Embora não tenha recomendado formalmente a divisão do leilão em duas fases naquele contexto, o tribunal impôs uma regra restritiva de grande impacto.
A determinação do TCU estabelecia que “empresas ou grupos econômicos com participação de mercado relevante só poderão ser declaradas vencedoras na hipótese de não haver outro licitante que tenha apresentado proposta válida”. Em resposta, o governo federal reconheceu prontamente “o risco de haver concentração excessiva neste segmento” e procedeu aos ajustes necessários no edital de licitação. Na prática, essa medida garantiu que grandes conglomerados só pudessem vencer o certame na ausência de competidores de menor porte, uma estratégia que, de fato, preservava a concorrência sem a necessidade de fragmentar o leilão em fases distintas.
Busca constante pela concorrência no setor portuário
Os diferentes casos examinados demonstram uma constante no posicionamento do Tribunal de Contas da União: a adoção de variados mecanismos e estratégias para proteger e promover a concorrência no setor portuário nacional. Em todas as análises empreendidas pelo órgão, a principal preocupação sempre girou em torno de evitar que os processos licitatórios servissem para fortalecer ainda mais a posição de empresas já dominantes no mercado. O foco estava em criar condições para que novos operadores tivessem oportunidades reais de ingressar no setor, garantindo dinamismo, inovação e tarifas justas para a movimentação de cargas.

Imagem: www1.folha.uol.com.br
Virada de parecer no Tecon Santos 10
Contrariando os precedentes citados, no final de agosto, a área técnica do TCU divulgou um parecer manifestando-se contra as restrições no leilão do Tecon Santos 10, e, nesse caso específico, recomendou que a licitação fosse realizada em fase única, permitindo a participação aberta de todos os concorrentes. Essa mudança de abordagem sublinha a complexidade e a adaptabilidade das análises técnicas do órgão de controle, que consideram as particularidades de cada certame.
Na última sexta-feira, 26 de setembro, encerrou-se o prazo estabelecido pelo ministro da corte Antonio Anastasia. Ele havia solicitado ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e ao Ministério de Portos e Aeroportos (MPor) que apresentassem argumentos técnicos adicionais em defesa da realização do leilão em duas etapas para o Tecon Santos 10. A expectativa agora é de que um novo parecer seja submetido ao ministro Anastasia, possibilitando a conclusão de seu voto e o posterior encaminhamento ao plenário da corte para deliberação final. Conforme anunciado pelo ministro do MPor, Silvio Costa Filho, o megaterminal de contêineres tem sua previsão de leilão para a segunda quinzena de dezembro.
Divergências governamentais sobre o modelo
O Ministério de Portos e Aeroportos já enviou sua manifestação oficial ao Tribunal de Contas da União, onde expressa uma defesa vigorosa do modelo de leilão em duas etapas para o Tecon Santos 10, considerando-o o maior empreendimento portuário da história do país. Esta visão, contudo, difere daquela defendida pelo Ministério da Fazenda.
No final do mês passado, o Ministério da Fazenda encaminhou uma recomendação à corte para que o certame fosse conduzido em fase única, sem imposição de restrições aos participantes. A justificativa para essa proposta é que tal formato tende a proporcionar “maior concorrência” inicial. O documento técnico que embasou a recomendação foi elaborado pela Subsecretaria de Acompanhamento Econômico e Regulação (Seae), pertencente à Secretaria de Reformas Econômicas, sinalizando uma divergência estratégica significativa entre importantes órgãos do governo.
A modelagem de licitação definida pela Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) prevê que, inicialmente, apenas empresas que não possuem operações preexistentes no Porto de Santos teriam permissão para apresentar propostas. Somente no caso de não haver interessados nesta primeira fase, uma segunda etapa seria então aberta, permitindo também a participação de companhias que já estão instaladas no local.
Segundo o Ministério de Portos e Aeroportos, esse modelo não deveria ser interpretado como uma limitação à disputa no certame, mas sim como uma medida de política pública estrategicamente direcionada para atender ao interesse coletivo. A pasta argumenta que “ao fomentar a concorrência ao longo de todo o ciclo contratual, o poder concedente busca assegurar menores tarifas aos usuários, maior qualidade na prestação dos serviços e retorno mais amplo e duradouro ao país”, reforçando a perspectiva de benefícios a longo prazo para o sistema portuário e a economia brasileira.
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A análise das decisões do Tribunal de Contas da União ao longo dos anos sobre leilões portuários evidencia uma preocupação contínua com a garantia da concorrência, embora os mecanismos adotados para tal fim possam variar conforme o contexto e as características de cada terminal. A controvérsia em torno do leilão do Tecon Santos 10 representa mais um capítulo nessa discussão, com repercussões significativas para o futuro do setor. Para acompanhar outras análises aprofundadas sobre política e economia, continue navegando em nossa editoria de Economia.
Crédito da imagem: Eduardo Knapp -20.nov.24/Folhapress
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