No início do julgamento de figuras centrais na suposta trama golpista, o procurador-geral da República, Paulo Gonet, apresentou na terça-feira (2) sua sustentação oral com as acusações formais da Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e outros sete réus. Durante cerca de uma hora e dez minutos de explanação, Gonet detalhou os elementos que, segundo a acusação, comprovam a existência de um plano articulado para abolir o Estado Democrático de Direito e impedir a transição de poder no país.
A manifestação de Gonet ocorreu após a leitura do relatório processual pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes. O procurador enfatizou a importância do momento como um ponto em que a democracia brasileira assume sua defesa ativa contra uma tentativa de golpe apoiada em violência e ameaça.
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A Acusação da Procuradoria-Geral da República
Em seu pronunciamento perante a alta corte, Paulo Gonet sublinhou que nenhuma democracia se sustenta sem meios efetivos para se contrapor a atos voltados à sua desestruturação. Ele ressaltou a ineficácia de providências jurisdicionais contra a usurpação do poder pela força bruta, que aniquila a organização regular desejada pela cidadania.
No entanto, a defesa da ordem democrática encontra respaldo quando o ataque não se concretiza. Neste cenário, atua o Código Penal, especificamente nos capítulos dos crimes contra as instituições democráticas. Gonet citou o artigo 359-L, que pune a tentativa, com emprego de violência ou grave ameaça, de abolir o Estado democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos Poderes constitucionais. Mencionou também o artigo 359-M, que prevê pena para atos de tentativa de golpe de Estado, consistentes em depor por meio de violência ou grave ameaça o governo legitimamente constituído.
Para o procurador, punir a tentativa frustrada de ruptura da ordem democrática é um imperativo para a estabilização do regime. Serve como elemento dissuasório contra o ânimo por “aventuras golpistas” e demonstra a tenacidade da cidadania na defesa da vida pública, inspirada nos direitos fundamentais e na constância das escolhas de convivência política.
A Articulação do Plano Golpista e Suas Múltiplas Fases
As afrontas à Constituição democrática podem assumir diversas formas. Gonet explicou que golpes podem vir de fora ou serem engendrados pela perversão da própria estrutura de poder. O procurador afirmou que o inconformismo com o término regular do período de mandato é frequentemente um fator desencadeador de crises. Ele salientou a importância de não minimizar as tramas orquestradas e postas em prática por meio de atos coordenados, que conduzem à perturbação social e à restrição dos Poderes constitucionais.
Gonet destacou que os atos descritos na denúncia são “fenômenos de atentado com relevância criminal contra as instituições democráticas”, que não devem ser tratados como atos menores ou “devaneios utópicos”. As alegações finais da PGR permanecem “inabaladas”, e o objetivo do grupo denunciado era impedir a chegada ao poder do então presidente eleito pela oposição e promover a continuidade do mandato de Bolsonaro, “pouco importando os resultados apurados no sufrágio de 2022”.
A tentativa de golpe de Estado, segundo o procurador, se articula em fatos e eventos múltiplos, estendidos no tempo. Ao contrário de um golpe consumado, que é de imediata percepção, a tentativa de insurreição exige a inteligência de eventos que, vistos em conjunto, “destapam uma unidade na articulação de ações ordenadas ao propósito do arbítrio”.
A denúncia apresentada, portanto, não deve ser analisada como uma narrativa de fatos isolados, mas como um “relato de uma sequência significativa de ações voltadas para finalidade malsã”. Gonet ressaltou que a idoneidade dessas ações para ofender o bem jurídico tutelado se revela na composição geral dos eventos, entrelaçados pelo desígnio da quebra da normalidade democrática, onde “a ameaça da violência e a sua realidade se revelam nas etapas”.
Embora os fatos da denúncia nem sempre envolvessem os mesmos atores, todos convergiram para o objetivo comum de assegurar a permanência do então presidente da República, mesmo após a derrota eleitoral. O procurador negou que se tratassem de meros atos de cogitação, descrevendo-os como a “colocação em marcha de plano de operação antidemocrática”.
Não seria indispensável uma ordem assinada pelo presidente para se configurar a tentativa, já que isso levaria ao campo da consecução do golpe. A tentativa se revela, conforme Gonet, na prática de atos e ações dedicadas à ruptura das regras constitucionais com “apelo ao emprego da força bruta, real ou ameaçado”.
Fatos-Chave na Tentativa de Ruptura Democrática
Gonet apontou que a cadeia de fatos direcionados à ruptura democrática está provada. Isso inclui a conclamação pública do então presidente contra o uso das urnas eletrônicas e ameaças de que as eleições não ocorreriam ou seriam ativamente resistidas. Campanha de desinformação insistente foi maquiavelicamente direcionada ao processo eleitoral e aos magistrados envolvidos.
Houve, segundo a PGR, a “concatenação de expedientes para subtrair competências legítimas do Poder Judiciário, sobretudo do Tribunal Superior Eleitoral e do Supremo Tribunal Federal”, visando facilitar a usurpação do poder em etapa posterior, para a qual “até integrantes do gabinete do governo já estavam listados”.
O procurador relatou que Jair Bolsonaro, “comandante maior das Forças Armadas”, reuniu os mais altos militares das três forças para apresentar-lhes seus planos. Posteriormente, o ministro da Defesa também convocou os comandantes para revelar a estratégia a ser adotada. Gonet enfatizou que os comandantes não foram chamados para resistir ao grave ato, mas sim “para aderirem ao movimento golpista estruturado”. Nessas reuniões, foram expostas minutas de decretos com “providências estapafúrdias” que preveem anular eleições, impedir a posse do presidente eleito e assegurar a continuidade do mandato de Bolsonaro.
O comandante da Marinha teria assentido ao convite para intervir na sucessão executiva. Para Gonet, quando o presidente da República e o ministro da Defesa convocam a cúpula militar para apresentar documento de formalização de golpe, “o processo criminoso já está em curso”.
Atos de Violência e Convocação Social
Ainda segundo a acusação, uma “campanha ignóbil” foi determinada pelo então candidato à vice-presidência para “destruir o ânimo legalista” demonstrado pelos comandantes da Aeronáutica e do Exército ao se afastarem das “etapas decisivas do levante”. Essa campanha incluiu “pressão difamatória de grupos sociais” e cartas públicas de militares conjurando comportamento insurrecionista. Ganhou corpo com acampamentos, incentivados e parcialmente mantidos pelos réus, diante de instalações militares, principalmente em Brasília, clamando por “intervenção militar”.
Meses depois, o público, “seduzido pelo discurso de inconformismo”, teria passado à “ação física”. O “momento culminante da balbúrdia urdida” foi o 8 de janeiro de 2023, com a invasão dos prédios dos Três Poderes e a destruição do patrimônio público. Antes, no período da diplomação do novo presidente, já houve atos de violência como a invasão da sede da Polícia Federal em Brasília e o incendiamento de carros e ônibus. A “instauração do caos” era explicitamente considerada uma etapa necessária para atrair a adesão dos comandantes do Exército e da Aeronáutica.
Mecanismos de Inteligência e Sabotagem Institucional
O procurador detalhou que a organização criminosa também operava em setores de inteligência para monitorar populações e autoridades. Agentes da Polícia Rodoviária Federal, no segundo turno das eleições de 2022, mapearam localidades no Nordeste com expressiva votação para a oposição, visando criar barreiras artificiais para impedir o acesso de eleitores aos postos de votação. Esse foi um “momento do golpe posto em andamento em que a violência está presente”, já que “o uso do monopólio da força pelo Estado para fins de inibição dos direitos fundamentais dos cidadãos configura ato violento por si”.
Paralelamente, impunha-se a execução de um “sinistro plano de prisão e eliminação do ministro do Supremo Tribunal Federal que presidia o Tribunal Superior Eleitoral”, bem como dos candidatos eleitos à presidência e à vice-presidência da República. Esse plano, batizado de “Punhal Verde Amarelo” pelos próprios réus, foi “minuciosamente planejado” e discutido com o então candidato à vice-presidência sobre o financiamento necessário.
A existência e autoria do “Punhal Verde Amarelo” foram reconhecidas pelo general Mário Fernandes, que o teria elaborado como “mero exercício de imaginação”. O plano previu monitoramento físico do presidente do TSE e traslado de pessoal e armas para Brasília, com aproximação física do alvo, sendo não consumado “apenas porque não aconteceu o ato esperado naquele momento de formalização pública do golpe, por decreto do presidente da República”.
Gonet afirmou que os acusados não negam a realidade dos fatos, mas buscam “educorar-lhes os intuitos” ou tentam “dela se mostrar alheios”. As provas, baseadas em testemunhos e documentos, são suficientes para “afirmar a convicção segura das práticas repudiadas pela legislação penal”.
A ameaça de violência era “límpida” em discursos do ex-presidente e em “práticas de atos propiciadores da truculência real”. Discursos contra a legitimidade dos meios eletrônicos de votação, repetidos para “animar apoiadores de medidas insurrecionistas” num ambiente de “declínio de chances de êxito normal da candidatura do então presidente”, assumiram o feitio de “artifício de deslegitimação do processo eleitoral”.

Imagem: www1.folha.uol.com.br
A organização criminosa incitou e determinou o “desrespeito” ao resultado eleitoral, inclusive para agentes do governo, e realizou ataques diuturnos a órgãos como STF e TSE. A utilização da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) e da PRF para “estruturar mecanismos de contenção de opositores do governo e de eleitores do adversário” foram postas em andamento.
O apoio da organização a acampamentos em frente a quartéis, “onde se clamava abertamente por intervenção militar”, é parte do contexto de “atuação efetiva por atitude de ruptura com a democracia por meio da violência”. Paralisações forçadas de caminhoneiros, “atentados à bomba”, e a convulsão nas ruas de Brasília após a derrota nas eleições foram atos de violência “que se vinculam ao atentado posto em curso contra as instituições democráticas”.
O procurador ressaltou que “o apogeu violento desses atos previstos, admitidos e incentivados pela organização criminosa ocorreu no dia 8 de janeiro de 2023”, com a tomada das sedes dos Três Poderes e depredação generalizada, sob “gritos e urros incivis, mas com método e organização”.
Documentação e Evidências Irrefutáveis
Gonet pontuou que “organização e método permearam o processo criminoso”. Havia previsão de “medidas de intervenção inaceitáveis, condicionalmente, sobre o exercício das atividades do Poder Judiciário”, elaboração de “estrutura de poder a ser construída” e “acertos de prisões espúrias e substituição de titulares de cargos públicos”. Minutas de decretos e até um discurso para o ex-presidente após a consumação do golpe foram encontrados.
O golpe não se concretizou pela “fidelidade do Exército e da Aeronáutica”, não obstante “o desvirtuamento de alguns dos seus integrantes”. A denúncia revela, com “precisão e riqueza de detalhes”, a estruturação e atuação de uma organização criminosa entre 2021 e 2023, com o claro propósito de “promover a ruptura da ordem democrática no Brasil”. O grupo, “liderado pelo presidente Jair Bolsonaro e composto por figuras chaves do governo, das Forças Armadas e de órgãos de inteligência”, desenvolveu e implementou um “plano progressivo e sistemático”.
A acusação se baseou em provas materiais: “Os próprios integrantes da organização criminosa fizeram questão de documentar quase todas as fases da empreitada.” A “Operação 142” foi encontrada em uma pasta intitulada “Memórias Importantes”. Manuscritos, arquivos digitais, planilhas, discursos prontos e trocas de mensagem sobre o plano reforçaram as provas.
Testemunhas, como ex-comandantes do Exército e da Aeronáutica, confirmaram que minutas de “medidas de exceção” lhes foram apresentadas e que houve pressões, inclusive “ataques virtuais”, para que aderissem. Essas medidas incluíam a anulação de eleições, prisão de autoridades e intervenção em Tribunais Superiores.
Desde 2021, o grupo buscou instabilidade social por meio de “narrativa e propaganda”, visando legitimar as medidas de exceção através da “revolta popular”. A tentativa de cooptar as Forças Armadas falhou, levando o grupo a ver na instabilidade social uma “conjuntura útil” para seus propósitos, buscando arrastar o Exército. O 8 de janeiro, “se não terá sido objeto ou objetivo principal do grupo, passou a ser desejado e incentivado quando se tornou a derradeira opção disponível”. Mensagens eletrônicas confirmaram a orientação para os manifestantes se dirigirem ao Congresso e ao STF.
Acampamentos em frente a organizações militares foram incentivados. Mario Fernandes, chefe substituto da Secretaria-Geral da Presidência, esteve pessoalmente em acampamentos e manteve contato com lideranças populares, evidenciando o suporte moral e material. Mauro Cid, em depoimento, confirmou que Bolsonaro “deliberadamente estimulava a expectativa da população a fim de provocar situação que justificasse a intervenção das Forças Armadas”. Cid também ressaltou a participação de Braga Neto na incitação, que mantinha contato entre os acampados e o presidente.
A sofisticação tática no 8 de janeiro, com o uso estratégico de objetos e técnicas, indica a presença de “especialistas” e “militares com formação em forças especiais, os chamados ‘kids pretos'”, em “operações de guerra irregular”. A organização criminosa contribuiu até o último momento para a insurgência popular. Os integrantes tinham ciência da tática de “gerar desconfiança e animosidade contra as instituições democráticas”, contribuindo, em divisão de tarefas, para o “projeto autoritário de poder”.
Manuscritos e arquivos eletrônicos apreendidos revelaram o planejamento de “desacreditar reiteradamente o processo eletrônico de votação”. Agendas de Augusto Heleno e Alexandre Ramagem demonstraram a “estruturação de diversos ataques à confiabilidade das urnas eletrônicas”. A deslegitimação de ministros do STF e TSE buscava predispor a opinião pública para “ações excepcionais”.
Uma gravação de reunião ministerial de 5 de julho de 2022, promovida por Bolsonaro, mostrou ataques ao sistema eleitoral e exigências para que os ministros replicassem sua narrativa de vulnerabilidade das urnas. A pressão sobre os participantes se tornou explícita, “tornando-se explícita a unidade de desígnios do grupo”. Jair Bolsonaro teria interrompido Augusto Heleno quando este revelou o uso ilícito da ABIN. O presidente também convidou representantes diplomáticos em 18 de julho para reiterar alegações infundadas de fraude. A Polícia Rodoviária Federal, sob Silvinei Vasques, foi utilizada para obstruir o funcionamento do sistema eleitoral.
Anderson Torres, Marília Alencar e Fernando Oliveira tiveram atuação “significativa”. A ABIN e o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) atuaram como “instâncias de inteligência paralela” para espionar adversários. Documentos apreendidos com Ramagem e Heleno revelam a pauta de “adoção de providências formais de descumprimento de ordens judiciais que o Executivo considerasse manifestamente ilegais”.
Outro documento falso, que afirmava que Bolsonaro teria ganhado as eleições se apenas “urnas válidas” fossem consideradas, foi usado para subsidiar uma provocação ao TSE, posteriormente descartada. Esse “relatório deturpado” tornou-se instrumento de manipulação das bases populares. Na residência do General Braga Neto, foram debatidas “ações clandestinas” nomeadas “Copa 2022”, destinadas a “neutralizar” o ministro Alexandre de Moraes nos moldes do “Punhal Verde Amarelo”. Previa-se a morte por envenenamento do presidente e vice eleitos.
Registros de entrada no Palácio da Alvorada e conversas de WhatsApp reforçam as acusações. O comandante da Marinha assentiu ao projeto e dispôs-se a fornecer tropas. A participação do General Estevam Theophilo, comandante do Coter, foi esperada como líder militar. Essas condutas são, para o PGR, “expressão concreta da estratégia da diluição do Estado Democrático de Direito por meio da força bruta das Forças Armadas”.
A Teoria do “Auto-Golpe” e a Colaboração Premiada
Gonet abordou o argumento de que não haveria possibilidade lógica de golpe de Estado no curso do próprio mandato de Jair Bolsonaro. Ele afirmou que o sujeito ativo do delito pode ser qualquer pessoa, “inclusive o próprio chefe do Executivo”. O crime de golpe de Estado, previsto no artigo 359-M, visa proteger a “forma legítima de exercício do poder político”, e não a figura pessoal do governante. “O bem jurídico tutelado é a ordem democrática como expressão institucional da soberania popular.” O procurador explicou que “o auto-golpe nesse cenário é também golpe punível, consistindo em desvio funcional gravíssimo, já que se origina dentro das instituições e opera contra elas.”
Antes de finalizar, o procurador reforçou a validade do acordo de colaboração premiada de Mauro Cid. Embora a Polícia Federal tenha descoberto a maior parte dos fatos de forma independente, a colaboração de Cid “acrescentou-lhes profundidade”. Gonet desconsiderou negativas expressas por Cid nas alegações finais, “por paradoxal”, uma vez que o acordo de colaboração pressupõe o reconhecimento da prática dos delitos. O procurador lembrou que “não existe entre nós a figura da mera testemunha premiada”.
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A Procuradoria-Geral da República, diante do “conjunto dos fatos relatados na denúncia e suficientemente provados ao longo do feito”, que obedeceu ao devido processo legal, espera um “juízo de procedência da acusação deduzida”.
Com informações de Folha de S.Paulo
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