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Subnotificação Oculta Realidade da Intoxicação por Mercúrio entre Indígenas da Amazônia

Facebook Twitter Pinterest LinkedInHá décadas, os povos indígenas brasileiros enfrentam a realidade da intoxicação por mercúrio, um problema crônico intensificado pela atividade do garimpo de ouro, que tem sido um dos principais liberadores dessa toxina no ecossistema da Floresta Amazônica. Em maio, um passo significativo foi dado para endereçar essa questão de saúde pública. Pesquisadores … Ler mais

Há décadas, os povos indígenas brasileiros enfrentam a realidade da intoxicação por mercúrio, um problema crônico intensificado pela atividade do garimpo de ouro, que tem sido um dos principais liberadores dessa toxina no ecossistema da Floresta Amazônica. Em maio, um passo significativo foi dado para endereçar essa questão de saúde pública. Pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em colaboração com o Ministério da Saúde e o Ministério dos Povos Indígenas, lançaram um documento inédito que estabelece diretrizes específicas para o atendimento e manejo dos casos de contaminação por mercúrio nessas populações, reconhecendo a gravidade e a especificidade da situação.

Intitulado “Manual Técnico para o Atendimento de Indígenas Expostos ao Mercúrio no Brasil”, o guia apresenta dados epidemiológicos atualizados que revelam uma divergência substancial em relação aos registros oficiais. A análise, resultado da revisão de diversos estudos prévios, sugere uma significativa subnotificação dos casos quando comparados aos números do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), sistema governamental federal. Enquanto o Sinan contabilizou 267 casos de contaminação por mercúrio entre populações indígenas de todo o Brasil no período de 2012 a 2023, uma série de publicações científicas e estudos conduzidos no mesmo intervalo temporal indicam uma prevalência muito maior da intoxicação, sublinhando que a escala do problema é mais séria do que a oficialmente reportada.

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Para evidenciar a discrepância entre os dados oficiais e a realidade, um estudo conduzido em 2018 analisou mechas de cabelo de 239 indivíduos da etnia Yanomami, que residem em áreas dos estados do Amazonas e Roraima. Os resultados alarmantes mostraram que mais da metade desses indivíduos apresentava níveis de toxicidade classificados como moderados, variando entre 2,0 e 6,0 microgramas por grama (μg/g), ou até mesmo altos, superando 6,0 microgramas por grama. Aprofundando essa análise, foi constatado que membros da comunidade Pappiu, por exemplo, registraram uma média de 3,2 microgramas por grama de mercúrio em suas amostras. Ainda mais preocupante foi a média de 15,5 microgramas por grama encontrada nas amostras de cabelo dos moradores de Waikas-Aracaça, sinalizando uma exposição grave e generalizada.

Em um contexto similar, uma pesquisa realizada em 2021 focou na etnia Munduruku, localizada no Pará. Entre os 197 participantes, a concentração média de mercúrio nos fios de cabelo atingiu 7,7 microgramas por grama. As variações foram consideráveis, com a menor concentração identificada em 1,42 microgramas por grama e a máxima em impressionantes 23,9 microgramas por grama. É crucial sublinhar que esses valores se encontram significativamente acima dos limites de segurança estabelecidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Desde 2010, a OMS definiu que o valor seguro da toxina é de 0,23 microgramas por quilograma de peso corporal, o que se traduz em uma concentração máxima de 2,0 microgramas por grama de mercúrio no cabelo para ser considerado seguro. Essas comparações deixam clara a extensão da contaminação por mercúrio nas comunidades amazônicas.

A complexidade na identificação e no diagnóstico dos casos de intoxicação por mercúrio é um dos principais fatores para essa subnotificação, já que a doença não apresenta sintomas imediatos e exclusivos. A bióloga Ana Claudia Santiago de Vasconcellos, especialista em Saúde Pública e uma das coordenadoras do manual da Fiocruz, ressalta que o objetivo do guia é justamente preencher essa lacuna. Ela afirma: “Por isso, nossa ideia era construir um guia que os profissionais de saúde pudessem consultar para entender as particularidades do problema e aplicar diretrizes eficientes em seus atendimentos, para melhorar a qualidade dos cuidados com a população amazônica”. Esta ferramenta busca capacitar os profissionais a reconhecerem e tratarem a condição de maneira mais eficaz, adequando os cuidados à realidade das comunidades indígenas.

Impacto Histórico e Modo de Contaminação

O mercúrio se consolidou como um problema persistente na vasta região amazônica desde a década de 1970, período que marcou o intensificação da exploração de recursos naturais, particularmente o garimpo de ouro. Essa atividade mineral tem sido, historicamente, um dos principais vetores para a disseminação e liberação da toxina nos ecossistemas fluviais da floresta. Desde então, o mercúrio tem afetado diretamente e de forma profunda não apenas os povos indígenas, mas também as comunidades tradicionais ribeirinhas e quilombolas, cuja vida e subsistência estão intrinsecamente ligadas aos recursos naturais da bacia amazônica. A contaminação desses grupos ocorre predominantemente por via alimentar, especialmente através da ingestão frequente de pescados.

Os peixes que habitam os rios amazônicos acabam absorvendo e, subsequentemente, concentrando em seus organismos grandes quantidades de metilmercúrio. Esta é a forma orgânica e a mais tóxica do metal, sendo o principal elo na cadeia de contaminação para os seres humanos. O metilmercúrio não é liberado diretamente pelo garimpo; sua formação é um processo mais complexo. Ele surge a partir do mercúrio inorgânico – o mesmo metal utilizado pelos garimpeiros para, de maneira rudimentar, facilitar a separação do ouro de outros sedimentos – que, ao ser despejado nos rios, sofre uma transformação química. Micróbios presentes nos ecossistemas aquáticos são responsáveis por converter o mercúrio inorgânico em metilmercúrio, tornando-o biodisponível e apto a ser incorporado pela fauna aquática, e por consequência, pelos humanos.

Uma vez que o ser humano consome um peixe contaminado, parte da toxina também é adquirida. Conforme salientado por Ana Claudia Vasconcellos, um dos maiores desafios relacionados à contaminação por mercúrio reside em sua natureza “silenciosa”. Mesmo diante da sua potencial gravidade, os sintomas iniciais não são facilmente associados a uma intoxicação específica. Vasconcellos explica que a toxina, ao entrar no corpo humano em pequenas doses de forma contínua, possui um efeito cumulativo. Isso implica que seus impactos na saúde se manifestam gradualmente e de forma inespecífica ao longo do tempo, dificultando consideravelmente um diagnóstico precoce e preciso da intoxicação, permitindo que a condição avance sem ser percebida.

Sinais Clínicos e Barreiras no Reconhecimento

Em indivíduos adultos, a intoxicação por metilmercúrio pode apresentar um espectro de sintomas neurológicos e físicos. As manifestações iniciais e persistentes frequentemente incluem tremores involuntários, dores de cabeça constantes e intensas, dificuldade crônica para dormir, resultando em insônia, e notável falta de coordenação motora, que afeta a capacidade de realizar movimentos precisos. No entanto, o desafio crucial para o diagnóstico reside no fato de que esses sinais são comumente encontrados em uma vasta gama de outros quadros clínicos e patologias. Tal similaridade contribui para que a intoxicação por mercúrio raramente seja a primeira hipótese aventada pelos profissionais de saúde, prolongando a busca pelo reconhecimento da causa real dos problemas de saúde.

Além da sobreposição de sintomas, a interação do mercúrio com o organismo humano não é uniforme. A forma como a substância afeta cada indivíduo varia consideravelmente, adicionando outra camada de complexidade ao processo de diagnóstico. Fatores como a predisposição genética desempenham um papel relevante, tornando certas pessoas mais vulneráveis aos efeitos tóxicos do mercúrio, enquanto outras podem demonstrar maior resistência. A idade também surge como um fator determinante para a gravidade da intoxicação, como aponta o infectologista Manuel Mindlin Lafer, do Einstein Hospital Israelita: “A intoxicação pode ser particularmente prejudicial a crianças e fetos”. Esta observação ressalta a necessidade de atenção redobrada e abordagens específicas para esses grupos etários mais suscetíveis.

As consequências da exposição ao mercúrio em crianças e fetos podem ser devastadoras para o desenvolvimento e a saúde a longo prazo. Nestes grupos vulneráveis, a toxina tem o potencial de comprometer gravemente o sistema imunológico, enfraquecendo as defesas naturais do corpo contra doenças. Mais criticamente, pode levar a problemas neurológicos significativos, que se manifestam como malformações cerebrais e substanciais dificuldades no desenvolvimento neuropsicomotor, afetando habilidades cognitivas e motoras. Entre os impactos específicos, incluem-se casos de neuropatia periférica, que resultam em danos nos nervos e causam sintomas como fraqueza muscular, dormência e dor. Adicionalmente, déficits de concentração, problemas de memória e dificuldades no aprendizado são sequelas comuns e persistentes da intoxicação por mercúrio em crianças e naqueles expostos na fase fetal.

Em contraste, em adultos, embora os efeitos sejam diferentes dos observados em crianças, a intoxicação por mercúrio em fases mais avançadas pode levar a um conjunto de manifestações neurológicas e cardiovasculares. Dentre os sintomas comuns, incluem-se a perda progressiva da visão lateral, alterações na capacidade auditiva, o surgimento de dificuldades na coordenação motora fina e grossa, e uma diminuição generalizada da sensibilidade tátil e de outros sentidos. Além dos impactos neurológicos diretos, há uma preocupação crescente com a saúde cardiovascular, com evidências que apontam para um aumento substancial no risco de ocorrência de eventos como o infarto do miocárdio e o desenvolvimento ou agravamento da hipertensão arterial, elevando a morbidade e mortalidade nesse grupo.

Subnotificação Oculta Realidade da Intoxicação por Mercúrio entre Indígenas da Amazônia - Imagem do artigo original

Imagem: mercúrio afeta saúde de indígenas mun via www1.folha.uol.com.br

Estratégias para Tratamento e Medidas Preventivas

A inexistência de um tratamento definitivo é uma das maiores dificuldades no manejo de casos de contaminação por mercúrio crônicos. Atualmente, não há um medicamento que seja capaz de eliminar eficazmente o mercúrio já presente no corpo humano, o que significa que, para casos avançados ou de longa duração, uma cura completa não é uma opção. O Dr. Manuel Lafer esclarece que, diante dessa realidade, a abordagem terapêutica adotada é predominantemente sintomática. Segundo ele: “Dessa forma, os cuidados acabam sendo sintomáticos, ou seja, se a pessoa está apresentando problemas neurológicos, ela será encaminhada para um neurologista, e assim por diante”. O tratamento foca, portanto, no alívio e controle dos sintomas específicos que surgem em cada paciente, buscando melhorar sua qualidade de vida.

Para os quadros clínicos considerados menos severos, onde ainda não foram estabelecidas complicações graves, a estratégia de tratamento envolve uma intervenção direta na fonte da intoxicação. No contexto particular das comunidades indígenas da Amazônia, essa abordagem foca predominantemente no consumo de peixes, que frequentemente se configuram como o principal vetor para a ingestão da toxina. Embora essa medida não consiga reverter a presença do mercúrio já incorporado no organismo, ela é de extrema importância para interromper a entrada de novas quantidades do metal e, consequentemente, deter a progressão da contaminação, ajudando a frear o agravamento dos efeitos prejudiciais e prevenindo futuros danos à saúde.

Diante da centralidade do peixe na dieta e cultura de diversos grupos indígenas, a solução proposta pelo manual não consiste em erradicar o consumo de pescado, mas sim em promover escolhas alimentares mais seguras e conscientes. As diretrizes do manual da Fiocruz sugerem adaptações dietéticas que visam reduzir a ingestão de mercúrio. A recomendação específica é que as populações priorizem o consumo de peixes com hábitos herbívoros, como o pacu, o aracu e o tambaqui. Estas espécies, por estarem em uma posição trófica mais baixa, tendem a acumular menos mercúrio em seus tecidos, em contraste com as espécies carnívoras, tais quais o pirarucu, o tucunaré e a piranha, que concentram níveis mais elevados da toxina.

A razão para essa diferenciação na recomendação está ligada ao fenômeno conhecido como biomagnificação. Assim como ocorre nos seres humanos, peixes que se alimentam de outros organismos contaminados também absorvem parte das toxinas presentes no corpo de suas presas. Esse processo de acumulação resulta no aumento progressivo das concentrações de metilmercúrio à medida que se ascende na cadeia trófica. Consequentemente, as espécies carnívoras, que se encontram no topo dessa cadeia alimentar, tendem a apresentar as maiores quantidades de mercúrio em seus tecidos. A modificação da dieta para o consumo de peixes herbívoros é, portanto, uma estratégia baseada na ecologia para mitigar a exposição humana à toxina.

Nos casos de intoxicação por mercúrio que atingem um estágio de gravidade acentuada, a necessidade de cuidados médicos especializados se torna imperativa. Frequentemente, os pacientes são encaminhados a uma gama de especialistas, incluindo cardiologistas para problemas do coração, fisioterapeutas para reabilitação motora e neuropsicólogos para avaliação e suporte cognitivo. Contudo, na vasta e intrincada região amazônica, a distância significativa entre as comunidades indígenas e os centros urbanos que abrigam hospitais e clínicas com essa expertise especializada representa uma barreira logística colossal. Essa dificuldade de acesso a tratamentos complexos e multidisciplinares ressalta a crítica importância e urgência de se fortalecerem as estratégias de prevenção e de um diagnóstico o mais precoce possível.

Capacitação de Profissionais de Saúde e Desafios Regionais

A abordagem de pacientes nas comunidades indígenas exige mais do que conhecimento técnico; demanda uma sensibilidade cultural e, crucialmente, a construção de um vínculo de confiança entre as equipes de saúde e a população, incluindo suas lideranças. Manuel Lafer, que além de infectologista do Einstein, também atua no Ambulatório do Índio da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), enfatiza essa premissa. Segundo ele, é essencial que “os médicos devem ser introduzidos como parte do sistema de saúde deles, que já conta com maneiras próprias de identificar e tratar doenças”. Esta perspectiva reconhece e integra os sistemas de saúde e saberes já existentes nas culturas indígenas, promovendo uma parceria mais eficaz e respeitosa.

Foi exatamente por compreender essa complexidade e a necessidade de uma abordagem interdisciplinar que os pesquisadores da Fiocruz conceberam diretrizes que pudessem ser empregadas por uma variedade de profissionais de saúde e áreas afins. O manual é, assim, direcionado a médicos, enfermeiros, agentes de saúde indígenas e indigenistas. O objetivo central é capacitar essa equipe multifacetada para conduzir o atendimento primário de forma otimizada, levando em conta e respeitando as particularidades geográficas, culturais e sociais de cada local. A ideia é garantir que as comunidades recebam uma assistência qualificada, contextualizada e eficiente diante da questão da intoxicação por mercúrio, com equipes preparadas para enfrentar os desafios específicos da região.

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Para efetivar a aplicação das recomendações detalhadas no documento, os pesquisadores da Fiocruz planejam ir além da publicação do material. A estratégia inclui a promoção de extensos programas de capacitação e treinamento para as equipes de saúde que atuam diretamente nos territórios indígenas. A seleção dessas regiões para o treinamento será criteriosa, priorizando locais que apresentam a maior concentração de pessoas expostas ao mercúrio, como o Amapá e o Norte do Pará, onde o problema é mais endêmico. O médico do Einstein reitera a necessidade: “Não é comum encontrar casos de intoxicação por mercúrio fora da região Norte. Isso significa que a maioria dos profissionais da saúde não aprende a lidar com esse tipo de quadro clínico”. Assim, conclui ele, a disponibilização de “materiais como esse à disposição pode ser muito benéfico para aprimorar os cuidados dessas populações”, transformando o conhecimento em ações práticas e mais eficientes.

Fonte: Folha de S.Paulo

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