O Supremo Tribunal Federal (STF) dará início, nesta terça-feira (2), a um dos mais aguardados julgamentos no cenário político-jurídico brasileiro: a análise do caso que envolve o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e os demais réus acusados de integrar o primeiro núcleo de uma alegada trama golpista. Este processo promete ser palco de debates intensos, focados principalmente em três controvérsias jurídicas fundamentais, conforme antecipam especialistas e profissionais do direito.
Advogados e professores consultados preveem que a sessão da Corte Máxima do país será marcada por discussões aprofundadas em torno da validade da delação premiada de Mauro Cid, da complexa questão da sobreposição de crimes no contexto das acusações e da precisa caracterização de uma tentativa de golpe de Estado. Essas questões centrais não apenas moldarão o veredito final para os envolvidos, mas também estabelecerão precedentes importantes para o entendimento e aplicação da lei no Brasil.
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O ex-presidente Jair Bolsonaro é réu no STF, enfrentando acusações robustas que incluem a tentativa de golpe de Estado, um delito de extrema gravidade em um sistema democrático. Adicionalmente, ele responde por dano qualificado, organização criminosa armada – um crime que implica a formação de um grupo com estrutura hierárquica e a utilização de armamento para a prática de ilícitos. A lista de acusações se estende a delitos como a deterioração de patrimônio tombado, que se refere à degradação de bens de valor histórico ou cultural protegidos por lei, e a tentativa de abolição violenta do Estado democrático de Direito, que implica o intento de derrubar as instituições democráticas por meios forçados ou ameaçadores.
A apreciação do caso ocorrerá na Primeira Turma do tribunal, um colegiado composto por cinco ministros, o que exige a concordância da maioria para qualquer deliberação. Até o momento, os indícios apontam que o ministro Luiz Fux pode assumir um posicionamento que se contraponha ao do ministro relator, Alexandre de Moraes, que tem sido o condutor da fase investigatória e preparatória do processo. A composição da turma e a perspectiva de votos divergentes sublinham a complexidade e a delicadeza dos temas em questão.
A Delação Premiada de Mauro Cid: Validade e Implicações Jurídicas
Um dos aspectos mais sensíveis e com potencial para gerar forte divergência é a validade e a utilização da delação premiada firmada por Mauro Cid, que também será julgado no âmbito deste processo. O militar, em seus primeiros depoimentos, é acusado de ter omitido informações cruciais e de ter alterado versões sobre o envolvimento de figuras-chave na alegada trama, como o ex-ministro Walter Braga Netto. Essas inconsistências levantaram sérias questões sobre a confiabilidade de seu testemunho e a legitimidade das provas dele derivadas, colocando a colaboração sob um escrutínio rigoroso do Poder Judiciário.
A análise da colaboração de Cid se concentrará em dois pilares centrais que definem a integridade de um acordo de delação premiada: a credibilidade de suas declarações e a voluntariedade com que estas foram prestadas. A credibilidade diz respeito à confiança que pode ser depositada na palavra do delator, avaliando a consistência interna de suas informações, a coesão de seus relatos ao longo do tempo e, fundamentalmente, a corroboração de suas revelações com outros elementos probatórios independentes, o que confere peso ao que foi dito. Já a voluntariedade refere-se à garantia de que as declarações foram feitas por iniciativa própria do delator, sem qualquer tipo de coação, pressão indevida, manipulação ou promessas que violem os preceitos legais, assegurando que o acordo foi firmado livremente e que suas manifestações são espontâneas, sem qualquer indução ilícita.
Este julgamento representará a primeira oportunidade para o colegiado do Supremo debruçar-se de maneira aprofundada e efetiva sobre a matéria da delação de Cid. Em uma etapa anterior do processo, quando a corte recebeu a denúncia contra os acusados e avaliava se havia elementos para instaurar a ação penal, pedidos das defesas para anular o acordo de colaboração foram rejeitados. No entanto, essa rejeição ocorreu sem uma análise minuciosa ou aprofundada das especificidades da colaboração ou de suas eventuais inconsistências, adiando o debate substancial sobre a validade para esta fase atual e decisiva do julgamento de mérito.
No meio tempo, informações divulgadas pela revista Veja revelaram que um perfil na rede social Instagram, supostamente atribuído a Mauro Cid, teria sido utilizado para comentar aspectos da delação premiada. Se essa revelação for confirmada nos autos do processo e interpretada pelos ministros como verídica, este fato poderia configurar uma violação expressa e grave da cláusula de sigilo imposta pelo acordo de colaboração. Além disso, os diálogos veiculados nesse perfil, a depender da interpretação judicial e do conteúdo específico, poderiam indicar uma possível falta de voluntariedade nas declarações de Cid, sugerindo que o acordo ou parte dele não foi realizado com a plena e livre manifestação de vontade, adicionando uma camada extra de complexidade e questionamento à idoneidade de seu depoimento e da totalidade das provas decorrentes.
A Folha, ao abordar essa questão, apontou que a constatação de uma falta de voluntariedade na colaboração do militar poderia ter consequências graves, potencialmente comprometendo a utilização das provas oriundas de sua delação e, por conseguinte, impactando o andamento e o desfecho de todo o processo judicial que se apoia nelas. Caso essa falha fundamental seja confirmada, grande parte do embasamento da acusação poderia ser fragilizada. Por outro lado, meras omissões em depoimentos ou quebras de sigilo do acordo, embora consideradas sérias irregularidades e passíveis de sanções, tenderiam a afetar mais diretamente a situação do próprio Mauro Cid, que arriscaria a perda dos benefícios que lhe foram concedidos pelo acordo de colaboração premiada, como a redução ou o perdão da pena, mas não necessariamente anularia toda a cadeia de provas gerada.
Maíra Salomi, que ocupa a vice-presidência da Comissão de Direito Penal do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp), enfatiza que este é, sem dúvida, um dos temas-chave do julgamento que se inicia. Ela ressalta que boa parte da estrutura acusatória da ação penal está fortemente calcada nos elementos trazidos pela delação, embora admita que existam outras fontes de prova independentes que também contribuem para o caso. Salomi prevê, com base em sua experiência e análise técnica, a possibilidade de surgirem votos divergentes entre os ministros do Supremo no que tange à rigidez e à interpretação do acordo, seja com a tese de sua nulidade – que buscaria invalidar completamente o ato de colaboração por vícios insanáveis – seja com a argumentação da descredibilidade dos depoimentos prestados por Cid, esvaziando significativamente seu valor probatório e, em última instância, questionando a justiça das sentenças fundamentadas exclusivamente ou preponderantemente nesses depoimentos.
A Questão da Sobreposição de Crimes e suas Implicações Penais no Julgamento
Outro ponto crucial que certamente catalisará extensa discussão no colegiado do STF é o enquadramento penal dos atos imputados aos réus, especificamente a delicada questão da sobreposição de crimes. Desde o início dos julgamentos relacionados aos eventos de 8 de janeiro, tem-se debatido, intensamente, sobre a correta tipificação dos atos. Uma das principais indagações é se o crime de tentativa de golpe de Estado, por sua própria natureza e alcance, já não subsumiria – ou seja, já não incluiria e absorveria – o delito de tentativa de abolição violenta do Estado democrático de Direito, ou vice-versa. Essa dúvida tem implicações diretas e significativas sobre como os réus serão sentenciados, afetando profundamente a contagem final e a extensão das penas que eventualmente lhes serão aplicadas.
A matéria em questão invoca conceitos cruciais do direito penal brasileiro, especialmente no que tange à distinção entre a consunção e o concurso material de crimes. O princípio da consunção, ou princípio da absorção, ocorre quando um crime de maior gravidade ou que possui um alcance mais amplo ou que é um desdobramento natural e progressivo, absorve um crime de menor potencial lesivo ou que representa uma fase anterior ou menos complexa do mesmo propósito criminoso. Em outras palavras, se um ato ilícito é um meio necessário para a prática de outro ato mais grave, ou se um crime é uma etapa progressiva de um objetivo criminal mais abrangente, o primeiro crime é “consumido” pelo segundo, e o agente é punido apenas pelo delito principal. A alternativa a isso é o concurso material de crimes, situação em que o réu é considerado responsável por dois ou mais crimes distintos e autônomos. Neste caso, as penas correspondentes a cada um dos crimes são somadas, resultando em uma punição significativamente mais elevada para o conjunto de infrações.
A relevância prática e as consequências dessa distinção são patentes nas escalas penais previstas para os delitos em análise, demonstrando a sensibilidade da decisão jurídica. Para o crime de tentativa de golpe de Estado, o Código Penal ou legislação específica estabelece uma pena de reclusão que varia de 4 a 12 anos. Em comparação, o crime de tentativa de abolição violenta do Estado democrático de Direito, por sua vez, prevê uma pena de reclusão que oscila entre 4 e 8 anos. Assim, a decisão judicial sobre a aplicação do princípio da consunção – que puniria apenas o crime mais grave – ou do concurso material – que somaria as penas de ambos os delitos – terá um impacto drástico e direto na extensão das condenações a serem aplicadas aos réus envolvidos neste julgamento histórico.

Imagem: www1.folha.uol.com.br
Alexandre Wunderlich, renomado professor de direito penal, atuante tanto na PUC-RS quanto no IDP, embora pessoalmente acredite na tese da consunção para este cenário específico – ou seja, que um crime absorveria o outro devido à sua intrínseca relação –, aponta que esta não é a posição majoritária atualmente no Supremo Tribunal Federal. Ele enfatiza, com base em sua análise do cenário jurídico da Corte, que, no âmbito da Primeira Turma, onde o processo de Jair Bolsonaro e dos demais réus será julgado, a tendência jurisprudencial predominante é de prevalência da tese do concurso material. Caso essa interpretação prevaleça, significa que os ministros deverão considerar a possibilidade de os réus serem responsabilizados por ambos os crimes de forma autônoma e cumulativa, com as penas de cada delito sendo somadas, o que acarretaria, naturalmente, uma punição final consideravelmente mais severa para os condenados.
Para Wunderlich, o ponto decisivo e fundamental para a elucidação do caso será a identificação e a comprovação robusta, no conjunto probatório, dos elementos característicos de “violência” e “grave ameaça”, que são componentes essenciais e exigidos pelos tipos penais que configuram os crimes de golpe e abolição do Estado democrático de Direito. Ele salienta que essa identificação não é superficial, mas dependerá de uma análise extremamente detalhada de todo o conjunto de provas apresentadas pela acusação e pelas defesas, bem como de uma avaliação individualizada e minuciosa da participação e do grau de envolvimento de cada réu na trama. A ausência ou a insuficiente comprovação desses elementos definidores – a violência e a grave ameaça – pode ser um fator determinante na delimitação da responsabilidade penal ou mesmo na descaracterização de parte das acusações. O professor detalha sua perspectiva explicando que, “Ele pensou, ele projetou, ele idealizou, mas ele cessou sua atividade e não concordou com a violência ou grave ameaça. Isso é um exame muito detalhado que, na minha opinião, é o que decide o caso,” evidenciando a necessidade premente de discernir com clareza entre a mera intenção ou o planejamento interno de um ato ilícito e a efetiva materialização de uma ação criminosa com emprego de violência ou grave ameaça contra as instituições.
Definição do Marco Temporal: Onde Começam os Crimes de Tentativa e Preparação?
Complementando a complexa análise dos desafios jurídicos que permeiam o julgamento, Antônio José Teixeira Martins, que é professor de direito penal em conceituadas instituições de ensino como a UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e a Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), acrescenta uma questão de central importância para o deslinde do caso: será fundamental fixar precisamente o momento em que esses crimes – especialmente aqueles que versam sobre a categoria de tentativa – começam a ser efetivamente praticados pelos agentes envolvidos. Esta é uma questão fulcral não apenas para delimitar a atuação da lei penal, mas para estabelecer o marco inicial da ação delitiva passível de punição, distinguindo-a de fases anteriores que, por vezes, não são alcançadas pela alçada e pela repressão da lei penal, permanecendo no campo da impunibilidade.
No arcabouço do direito penal, a prática de um crime é classicamente organizada em fases distintas, em um percurso que a doutrina denomina de iter criminis, ou “caminho do crime”. As etapas usualmente descritas incluem a cogitação, que corresponde à simples ideia, ao pensamento ou ao mero planejamento interno de cometer um crime, sem manifestação externa; a preparação, que envolve atos que visam criar as condições para a prática do delito, como a aquisição de instrumentos ou a reunião de informações, mas que ainda não representam o ataque direto e imediato ao bem jurídico protegido; a execução, que marca o início dos atos que diretamente lesionam ou colocam em perigo o bem jurídico; a consumação, que representa a efetiva concretização do crime, atingindo-se o resultado final visado pelo agente; e, por fim, o exaurimento, que é uma etapa eventual e posterior à consumação, onde o agente aufere vantagens ou prolonga os efeitos lesivos do crime. A regra geral no sistema jurídico brasileiro é que a punibilidade de um ato criminoso somente tem início a partir da fase de execução e se estende até a consumação. Aquilo que ocorre antes da execução – a cogitação e, na maioria dos casos, os atos puramente preparatórios – ou depois do exaurimento, normalmente não é objeto de sanção penal direta, dada a necessidade de uma concretização do perigo ou do dano ao bem jurídico.
Entretanto, Teixeira Martins ressalta que os crimes como golpe de Estado e abolição violenta do Estado democrático de Direito possuem uma particularidade intrínseca e essencial em sua tipificação: eles falam expressamente em “tentativa”. Isso significa que, nesses casos específicos, há um descolamento das categorias rígidas do iter criminis, em que apenas a consumação seria punível. A legislação, nestes casos, não busca punir apenas a consumação do golpe ou da abolição do Estado em si – afinal, se ocorressem de fato, o sistema legal vigente poderia ser destruído ou alterado irremediavelmente e a ordem institucional colapsada – mas sim o “perigo” que tais tentativas representam para a manutenção da democracia. A criminalização da tentativa, portanto, atua como uma barreira protetiva, buscando reprimir atos que visam desestabilizar ou destruir a ordem democrática antes mesmo que o objetivo final de sua consumação seja alcançado, servindo como uma medida de antecipação da tutela penal.
De acordo com o professor, os critérios empregados para classificar o que se considera uma “tentativa punível” e o que se limita a “atos preparatórios impuníveis” são intensamente debatidos na doutrina e na jurisprudência, gerando nuances e interpretações distintas. No entanto, o entendimento que geralmente prevalece e encontra maior acolhimento é a necessidade de conjugar elementos tanto objetivos quanto subjetivos para fazer essa distinção crucial e justa. Em termos práticos, isso significa que não basta apenas a intenção (elemento subjetivo, a mens rea do agente), mas é preciso haver uma ação concreta (elemento objetivo, a conduta externa) que vá além da mera cogitação ou da preparação inócua, demonstrando um real início de execução. Para que se configure uma tentativa punível, existe a exigência clara e irrefutável de um bem protegido – como o próprio Estado democrático de Direito ou o governo legítimo constitucionalmente – e é imperativo que haja uma ação do agente que, por sua natureza e alcance, coloque esse bem jurídico em um risco real e iminente. Se a manifestação da vontade criminosa se restringir a uma simples ideia, a um planejamento interno sem desdobramento em atos exteriores efetivos de ataque à ordem constituída, ela, por via de regra, não ultrapassará o limiar do que pode ser juridicamente caracterizado como “execução” de um crime, e, portanto, não será passível de punição nesse quesito, permanecendo no campo das cogitações.
A defesa do ex-presidente Jair Bolsonaro argumenta veementemente nesse sentido, tentando diferenciar as ações atribuídas ao seu cliente. Ela declara que o que o ex-presidente considerou foram alternativas legítimas no campo político, mas que nada transcendeu essa esfera de mera reflexão e busca por soluções legais, ainda que controversas. Os advogados defendem que “Evidente que o estudo, cogitação e o brainstorm de possíveis medidas legais, sob um viés analítico de sua viabilidade e submissão à lei, não pode ser tido como ato violento.” Esta declaração reforça a distinção crucial que a defesa tenta estabelecer entre o campo das ideias, discussões e planejamentos estritamente políticos e o campo das ações criminosas, buscando desqualificar a natureza dos atos atribuídos a Bolsonaro como mera especulação política, lícita e inofensiva do ponto de vista estrito do direito penal, longe de qualquer materialização violenta.
Diante desse cenário complexo e multifacetado, o principal objetivo da Procuradoria-Geral da República (PGR), desde a fase inicial de acusação e formalização da denúncia, foi e continua sendo o de demonstrar ao STF que os atos atribuídos ao ex-presidente e aos seus aliados efetivamente ultrapassaram a fronteira da mera cogitação política. Segundo a acusação, esses atos ingressaram no campo concreto da tentativa de golpe de Estado e da abolição violenta do Estado democrático de Direito, representando um perigo real às instituições. Caberá, portanto, aos ministros da Primeira Turma do STF a difícil, mas fundamental, tarefa de analisar com profundidade todo o conjunto probatório – incluindo depoimentos, documentos, mensagens e gravações –, ponderar os argumentos exaustivos das partes e as diversas interpretações dos especialistas para, ao final, definir se os elementos fáticos e jurídicos sustentam a acusação de tentativa de abolição ou golpe, diferenciando-a claramente do espectro da mera ideia ou da discussão de alternativas políticas que são inerentes ao jogo democrático.
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Esta análise demandará não apenas um exame rigoroso da cronologia e dos detalhes dos eventos que se sucederam, mas também uma interpretação jurídica extremamente criteriosa das intenções por trás das ações dos envolvidos, distinguindo de forma inequívoca o que é um direito legítimo à expressão e à divergência política, próprio de uma sociedade aberta, do que representa uma materialização, ainda que em fase de tentativa, de um plano para subverter e desmantelar a ordem constitucional e democrática do país. O veredito, que tem seu início em 2 de agosto de 2025, será, sem dúvida, um marco indelével na história jurídica e política do Brasil, delineando de forma clara e autoritária as balizas da legalidade e da criminalidade frente a movimentos que busquem contestar a institucionalidade democrática e republicana.
Com informações de Folha de S.Paulo
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