São Paulo se prepara para receber a edição da SP-Arte Rotas, um evento estratégico no calendário cultural da capital paulista que visa impulsionar um mercado de arte que, nos últimos tempos, demonstra sinais de retração. A feira, agendada para acontecer de quarta-feira a domingo, assume uma posição crucial ao anteceder a renomada 36ª Bienal de São Paulo por apenas uma semana. Uma das principais inovações desta edição é a flexibilização do nome, que remove a designação “brasileiras” para integrar um panorama mais amplo de artistas latino-americanos, expandindo seu escopo geográfico e diversidade criativa. Este alinhamento estratégico, somado à apresentação de obras que desafiam convenções e exploram temas como o erotismo, busca gerar dinamismo e despertar o interesse de colecionadores e entusiastas em um período de vendas historicamente baixas.
Entre os nomes em destaque na SP-Arte Rotas, que posteriormente marcarão presença na 36ª Bienal de São Paulo, o mais significativo evento de arte contemporânea do Brasil, encontra-se a artista Manauara Clandestina. Sua obra intitulada “Manan #4”, exibida no estande da galeria Mitre, é um exemplo notável dessa ponte entre os dois eventos. O trabalho de Clandestina consiste em uma série de fotografias polaroid que oferecem um vislumbre íntimo do cotidiano de travestis. As imagens retratam mulheres usando vestidos de festa cintilantes ou flagradas em momentos domésticos, evocando um estilo observacional que guarda similaridades com o modo como Andy Warhol documentava o universo das drag queens em Nova York, apresentando um álbum de vida dedicado à expressão e existência de um grupo frequentemente marginalizado.
A representação da Bienal na SP-Arte Rotas não se limita a Clandestina. A galeria Almeida & Dale, por exemplo, destaca artistas de peso como Heitor dos Prazeres, Lidia Lisbôa, Maxwell Alexandre e Rebeca Carapiá, cujas obras também transitarão para a exposição maior no Parque Ibirapuera. Dentre estas contribuições, Maxwell Alexandre apresenta uma pintura vibrante que retrata dois jovens com sungas do Flamengo, um elemento que remete a símbolos culturais populares brasileiros. Já Rebeca Carapiá exibe “Suspensão 2”, uma escultura notável confeccionada a partir de hastes de ferro dobradas. Estas hastes são cuidadosamente manipuladas para criar formas que se assemelham a uma caligrafia suspensa no ar, conferindo à peça uma delicadeza e complexidade visual significativas. A diversidade continua com Maria Auxiliadora, uma artista autodidata cujo talento foi globalmente reconhecido postumamente. Suas criações, que ganharam fama após seu falecimento, serão apresentadas pela Mendes Wood DM, reiterando a força de um legado artístico que transcende as fronteiras do tempo.
Além das galerias de maior porte, o evento confere visibilidade a casas menores, que também apresentarão artistas com presença garantida na Bienal. Esta estratégia de curadoria visa fortalecer a cena artística nacional, proporcionando palcos diversos para o talento brasileiro emergente e consolidado. Nomes como Marlene Almeida, Nádia Taquary, Genor Sales e Moisés Patrício são parte deste contingente, oferecendo perspectivas artísticas variadas ao público. A galeria Cerrado, por sua vez, traz o trabalho de Gervane de Paula, que em suas telas captura a paisagem do pantanal mato-grossense, ao mesmo tempo em que aborda a violência intrínseca ao agronegócio na região. As obras de Gervane de Paula propõem uma reflexão crítica sobre as tensões entre natureza, cultura e desenvolvimento econômico, características do cenário atual.
Fernanda Feitosa, a criadora e mente por trás da SP-Arte, destaca que o formato mais intimista da edição Rotas se configura como uma plataforma ideal para a introdução de novos talentos no mercado da arte. Em suas palavras, “As galerias menores e de médio porte, que trabalham com artistas jovens, ganham um protagonismo”, evidenciando o objetivo de fomentar o surgimento e a projeção de uma nova geração de artistas. Esta configuração particular do evento facilita uma aproximação mais direta entre galeristas, artistas e potenciais compradores, permitindo que obras e artistas menos estabelecidos conquistem seu espaço e visibilidade, essenciais para o desenvolvimento de suas carreiras no complexo ecossistema da arte contemporânea.
A expectativa de aquecimento do mercado se intensifica nos bastidores. Muitos curadores e colecionadores de alcance internacional, convidados especificamente para a SP-Arte Rotas, já planejam estender suas estadias em São Paulo. O objetivo é aproveitar a oportunidade para visitar o pavilhão projetado por Oscar Niemeyer, localizado no Parque Ibirapuera, e imergir na Bienal. Esta coincidência temporal entre os dois eventos culturais de grande magnitude é vista como um catalisador capaz de reverter a atual “época de vacas magras”, caracterizada por vendas reduzidas. Agentes do setor têm enfrentado noites de insônia diante do cenário desfavorável, e a colaboração entre as feiras surge como uma luz de esperança para dinamizar as transações e restaurar a confiança dos investidores no pujante mercado da arte brasileira.
O enfraquecimento do mercado da arte é multifacetado e encontra suas raízes em diversos fatores interligados. A instabilidade política global desempenha um papel significativo nesse cenário, gerando um ambiente de incerteza que naturalmente reflete no comportamento de compra dos colecionadores. Além disso, a situação foi agravada por medidas como o “tarifaço” imposto por Donald Trump, que adicionaram complexidade e custos a transações internacionais, resultando em uma maior hesitação por parte dos compradores em efetuar grandes investimentos. Existe também uma mudança geracional evidente no setor, conforme observado pelos galeristas: compradores mais experientes, que tradicionalmente movimentavam grandes somas, estão gradualmente se retirando da cena, e a nova guarda ainda não preencheu totalmente esse vácuo, contribuindo para a prudência nos gastos.
Para as galerias de arte, a fragilidade econômica atual representa um desafio considerável, culminando em uma série de preocupações. A necessidade de arcar com aluguéis elevados em pontos estratégicos, os custos de coquetéis de lançamento muitas vezes exorbitantes e as taxas de participação em feiras internacionais, invariavelmente cobradas em dólar, são fardos financeiros pesados. A abstenção desses eventos globais, por outro lado, acarreta o risco real de perder um artista talentoso para uma galeria concorrente que consiga custear a projeção internacional de seus representados. Esse dilema estratégico coloca as galerias em uma posição delicada, equilibrando a viabilidade econômica com a necessidade de manter e promover seus artistas no cenário mundial. Essa pressão se agrava para as instituições menores, que precisam gerenciar o fluxo de caixa com maestria para simplesmente “pagar as contas”, enquanto as maiores se veem atadas à comercialização de obras “extremamente comerciais” devido aos seus próprios altos custos mensais, conforme observa Matheus Yehudi, fundador da galeria Yehudi Hollander-Pappi, mais voltada para a arte experimental.

Imagem: www1.folha.uol.com.br
Uma questão crítica abordada pelos profissionais do mercado diz respeito à valoração das obras de arte. Mesmo quando a procura por uma peça diminui, um marchand, de forma estratégica, resiste a reduzir o preço, visando preservar a percepção de valor e o prestígio do artista. Entretanto, essa prática pode, paradoxalmente, complicar a consolidação de novos nomes no mercado, tornando mais desafiador para eles estabelecerem preços competitivos e acessíveis no início de suas carreiras. Gustavo Nóbrega, proprietário da galeria Superfície, alerta sobre os perigos da especulação excessiva no início da jornada de um artista. Ele adverte que uma “especulação muito alta no início da carreira” pode levar ao risco de não conseguir manter os valores inflacionados ao longo do tempo. Outro ponto é que o artista pode “mudar de fase e produzir com uma linguagem que não agrada determinados grupos de colecionadores”, minando a base de apoio inicial. Nóbrega categoriza essa prática como perigosa tanto para o artista quanto para a galeria, pois muitas vezes “as pessoas vendem promessas e fazem jogos de especulação, mas nem sempre é sustentável”, indicando a volatilidade e a falta de base real de muitos desses investimentos.
Nóbrega argumenta ainda que a crise do setor também está atrelada aos hábitos arraigados das próprias galerias. Para ele, uma problemática significativa do mercado reside na tendência de apresentar ao público apenas aquilo que os colecionadores já estão acostumados e dispostos a adquirir, negligenciando a introdução de novidades e propostas artísticas que desafiem o status quo. Ele lamenta que obras que sejam “mais difíceis, mais conceituais, mais políticas, muitas vezes é ignorado em prol da demanda de vendas e de coisas mais fáceis, açucaradas”, denotando uma preferência por produtos artísticos que ofereçam menor risco de aceitação e maior garantia de comercialização, em detrimento da inovação e da experimentação. Matheus Yehudi ecoa essa percepção, enfatizando que uma galeria deveria orientar-se primariamente pela história da arte, em vez de focar excessivamente nas flutuações e tendências momentâneas do mercado. Ele ilustra seu ponto ao ponderar: “Pode ser que você represente um artista que em dez anos não venda nada, mas que em 30 esteja no MoMa [o Museu de Arte Moderna de Nova York]”, sublinhando a importância de uma visão de longo prazo e um compromisso com o valor artístico intrínseco, que nem sempre se alinha com o imediatismo comercial.
A SP-Arte Rotas, ciente desses debates e das tendências artísticas, oferece uma vitrine para trabalhos que transitam entre o estabelecido e o experimental. A galeria Superfície, por exemplo, dedicará seu estande exclusivamente a Ana Amorim. Essa artista conceitual, cuja atividade artística se iniciou em 1988, possui uma trajetória notável por sua resistência: ela consistentemente se recusava a comercializar suas criações ou exibi-las em locais que cobravam entrada. Essa postura, antes de um sucesso mais amplo, demonstrava um compromisso profundo com seus princípios. Atualmente, Amorim celebra uma exposição de grande êxito em cartaz no prestigiado Museu de Arte Contemporânea da USP, demonstrando que o reconhecimento pode vir por caminhos distintos do comercial. Por sua vez, a galeria Yehudi Hollander-Pappi participará do evento com o artista Caio Carpinelli. O trabalho de Carpinelli será exibido na seção “Transe”, um espaço curado por Lucas Albuquerque, cujo foco é acolher obras de caráter não figurativo que procuram se desvincular do cânone mais tradicional da abstração moderna, explorando novas linguagens e expressões. Adicionalmente, a galeria Marcelo Guarnieri concederá um espaço exclusivo para a pintora e ceramista Helena Carvalhosa, enaltecendo o multifacetado talento da artista e a diversidade de mídias presentes na feira.
Nesta edição da SP-Arte Rotas, uma tendência marcante e incontornável é a acentuada guinada ao erotismo, temática que perpassa diversas galerias e obras. A Gomide & Co, por exemplo, destaca uma rica confluência artística ao apresentar obras de Teresinha Soares ao lado de criações de sua filha, Valeska. As telas de Teresinha, vibrantes em cores e carregadas de uma energia eletrizante, ficaram célebres por desafiar os tabus sexuais vigentes na década de 1960. Seus trabalhos pioneiros abordavam o desejo feminino e a masturbação com uma franqueza revolucionária para a época. Essas peças históricas dialogam com a instalação “Unhinged”, de Valeska, composta por cabeceiras de camas entrelaçadas, que convidam à reflexão sobre o uso ou desuso de suas estruturas e seus significados subjacentes, tocando em aspectos de intimidade e fragilidade nas relações. A galeria Flexa, sediada no Rio de Janeiro, abraça plenamente essa sexualidade intrínseca à arte ao expor um coletivo de artistas renomados, incluindo Adriana Varejão, Alvim Corrêa, Leonilson, Tomie Ohtake e Tunga, cujas obras já exploraram, de diferentes formas e com sensibilidades únicas, o corpo e o desejo em seus vastos repertórios. Em outra iniciativa, a Vermelho apresenta a série “A Sônia”, de Claudia Andujar, um conjunto impactante de fotografias onde um corpo feminino nu é minuciosamente “estudado” a partir de múltiplos ângulos e em diferentes tonalidades de cores, explorando a representação do corpo de maneira documental e artística. Embora o mercado de arte ainda não esteja em seu auge, as obras expostas sugerem um calor latente e uma provocação artística evidente, buscando estimular o diálogo e as emoções do público e dos compradores.
Para o público interessado em participar desta imersão artística, a SP-Arte Rotas estará aberta ao público de 28 a 31 de agosto, funcionando diariamente das 12h às 20h. O evento será realizado no espaço Arca, localizado na avenida Manuel Bandeira, número 360, em São Paulo. O valor de entrada é de R$ 100 por pessoa. Detalhes adicionais sobre o evento e a programação completa podem ser acessados diretamente no site oficial da SP-Arte Rotas. Este convite à arte oferece uma oportunidade ímpar para explorar novas estéticas e talvez, contribuir para reanimar o pulso do mercado artístico.
Com informações de Folha de S.Paulo
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