São Paulo se prepara para receber uma experiência teatral singular a partir do dia 29 de agosto: a montagem “Haddad e Borghi: Cantam o Teatro Livres em Cena”, que promete ir além dos formatos convencionais das artes cênicas. Após uma bem-sucedida temporada no Rio de Janeiro, a produção chega ao Sesc Consolação como a concretização de uma jornada de sete décadas de amizade e, simultaneamente, como um registro vivo da rica história do teatro brasileiro, contado através das vozes e vivências de dois de seus maiores ícones, Amir Haddad e Renato Borghi.
Pela primeira vez em suas extensas carreiras, Haddad e Borghi compartilham o palco na condição de protagonistas, não em uma peça de roteiro fixo e personagens definidos, mas em um formato inovador. O evento cênico tem como proposta celebrar as trajetórias individuais e o impacto conjunto desses grandes atores, que representam gerações e estilos diversos da atuação e da direção no Brasil.
Concepção Orgânica e Dinâmica em Cena
A origem da ideia para o espetáculo foi revelada por Renato Borghi, descrevendo-a como um acontecimento tão natural e fluído quanto a própria dinâmica apresentada em cena. Borghi conta que a proposta nasceu “em um dia de comilança”, durante um jantar na residência do diretor Eduardo Barata. Observando a interação entre os dois mestres, Barata expressou a intuição de que a conversa e a energia deles deveriam ser transpostas para o palco. O diretor confirmou a narrativa, complementando que a grande diferença na abordagem seria permitir que suas histórias de vida e carreira fossem contadas por eles mesmos, mas com uma estrutura cênica e teatralizada, distinguindo-a de uma simples palestra.
O público que for ao Sesc Consolação encontrará, assim, uma espécie de roda de conversa que transita entre lembranças pessoais, causos de bastidores e reflexões mais aprofundadas sobre o fazer teatral e os desafios da profissão. Este formato é enriquecido pela inclusão de canções e pela declamação de textos de autores consagrados da literatura brasileira, como Guimarães Rosa e Clarice Lispector, pontuando a narrativa com momentos de lirismo e profundidade cultural.
A direção de Eduardo Barata concebeu um roteiro que opera mais como um “mapa” do que como um “script rígido”. Barata explica que, embora exista uma ordem predefinida para o espetáculo, esta sequência foi desenvolvida após cerca de dez a doze encontros prévios de conversas extensas com os dois protagonistas. Durante essas sessões, as trocas foram minuciosamente exploradas e organizadas para guiar a estrutura da performance ao vivo. Em cena, os mestres são provocados e têm suas memórias estimuladas por quatro outros atores: Débora Duboc, Duda Barata, Élcio Nogueira e Máximo. Esses artistas atuam como elementos de apoio na encenação, funcionando como “anjos da guarda” que facilitam o fluxo da narrativa, oferecendo suportes para os contadores de histórias.
Diferenças que Complementam no Palco
A dinâmica observada entre Amir Haddad e Renato Borghi no palco reflete diretamente suas personalidades distintas, o que é percebido como um fator enriquecedor para o espetáculo. Eduardo Barata ressalta essas divergências: “Eles são muito diferentes”, afirma o diretor. Borghi é descrito como “muito organizado, disciplinado”, demonstrando um preparo minucioso para suas participações, estudando o roteiro e antecipando o que será abordado. Em contrapartida, Haddad é caracterizado como “anárquico” e representando o “não teatro”, agindo predominantemente “no momento”. Essa abordagem de Haddad, que valoriza a espontaneidade e a improvisação, se alinha a uma entrega que escapa de planejamentos rígidos, e em cena é evidente. A junção dessas características opostas, conforme apontado por Barata, confere uma imprevisibilidade vital ao espetáculo, garantindo que cada apresentação seja uma experiência renovada e única, nunca exatamente igual à anterior.
Retrospectiva Histórica: O Teatro Oficina e a Ditadura Militar
A montagem também se aprofunda em momentos cruciais da história do teatro nacional, revisitando, por exemplo, os primórdios do icônico Teatro Oficina. Renato Borghi recorda a fundação do grupo, contextualizando o papel de Haddad nos primeiros anos: “O Amir fundou o Teatro Oficina e dirigiu a primeira peça do Zé Celso”. Amir Haddad, por sua vez, adiciona um detalhe com humor, explicando como sua entrada na direção se deu de maneira inusitada: “Acabei me tornando diretor porque não havia lugar de ator para mim. Eles disseram: Então você dirige. Fui jogado na direção e nunca mais saí.” Essa guinada profissional marcou o início de uma prolífica carreira como encenador, consolidando sua trajetória no teatro brasileiro.
A narrativa não se exime de confrontar o período sombrio da ditadura militar, os anos de chumbo, que exercitou grande influência sobre o teatro brasileiro, moldando sua coragem, criatividade e capacidade de invenção frente à opressão. Renato Borghi, integrante do Teatro Oficina durante aquele período, sentiu na pele a repressão direta imposta pelo regime autoritário. Ele descreve a constante perseguição e vigilância que o grupo enfrentava: “Vivíamos sob a vigilância do Dops”, recordando um cenário de intimidação. Borghi relata episódios de violência, incluindo a invasão da histórica montagem “Roda Viva” e o espancamento de atores. Seu depoimento explicita a brutalidade e o assédio sofrido pelos grupos teatrais institucionalizados da época, que estavam sujeitos à censura prévia e a ataques frequentemente organizados e coordenados.
Em contraste à experiência de Borghi, Amir Haddad desenvolveu uma tática de resistência diferente, porém igualmente eficaz e engenhosa. Ao fundar o grupo Tá Na Rua, Haddad se posicionou de maneira a ser inapreensível para os mecanismos da máquina censória. “Quando eles chegavam, a gente já não estava mais lá”, explica Haddad, demonstrando a sagacidade de quem utilizou o espaço público como um escudo contra a censura. Sua estratégia, caracterizada pela fugacidade e pelo elemento surpresa, resultava em espetáculos sem um endereço físico fixo, transformando o teatro em um ato efêmero e “fantasma”, tornando inviável qualquer tentativa de cerceamento pelos meios tradicionais de controle do Estado. Ele afirmou que nunca enviou o texto para a censura e, consequentemente, “Nunca censuraram o espetáculo”. Em conjunto no palco, suas memórias complementares delineiam as diversas frentes de luta e as múltiplas estratégias de sobrevivência artística empregadas durante um dos momentos mais restritivos e perigosos da história recente do Brasil, evidenciando a pluralidade da resistência cultural.

Imagem: www1.folha.uol.com.br
Os Novos Obstáculos à Criação Artística: Censura do Patrocinador
Se as reminiscências da ditadura militar expõem uma censura explícita, frequentemente violenta e arbitrária, a peça “Haddad e Borghi: Cantam o Teatro Livres em Cena” igualmente se volta para o presente, lançando um olhar crítico sobre os impedimentos e as barreiras que a criação artística enfrenta na contemporaneidade. A discussão em cena se aprofunda nos desafios atuais, identificando uma nova forma de cerceamento da liberdade artística. Diferentemente da censura estatal direta do passado, o novo obstáculo se manifesta de uma maneira mais sutil, embora sua eficácia em limitar a produção cultural seja igualmente notável: trata-se da pressão econômica e do papel do patrocínio como um filtro determinante para as criações. O diretor Eduardo Barata articula essa mudança de paradigma: “Acho que hoje temos um tipo de preocupação similar, mas de outra forma: a censura do patrocinador.” Ele detalha como grandes empresas, ao condicionarem o financiamento a projetos culturais, acabam por priorizar espetáculos considerados inócuos ou que apresentem pouca criticidade. Barata os descreve como “leves, quase Cinderela para adulto”, o que reflete uma preferência por uma cultura mercantilista, voltada para o consumo massivo e que se desvia de propostas artísticas que poderiam ousar, questionar ou provocar reflexões mais profundas na sociedade. Dessa forma, o ímpeto criativo e a liberdade de expressão podem ser mitigados em prol da viabilidade financeira, um dilema central para muitos artistas hoje.
Neste cenário, a necessidade de assegurar a sobrevivência econômica do fazer artístico surge como a forma predominante da censura na modernidade, funcionando como um mecanismo regulador indireto do que pode ou não ser produzido e exibido. Barata traça um contraste relevante entre a realidade de diferentes polos culturais no Brasil, especificamente mencionando a capital paulista em comparação com o Rio de Janeiro. Ele pontua: “São Paulo é diferente porque tem o Sesc…”, aludindo à rede de unidades do Sesc, que em São Paulo, oferece um suporte institucional e espaços para a produção e exibição de projetos artísticos que mitigam, em certa medida, as pressões do mercado. Em contraposição, o diretor lamenta a escassez de infraestrutura similar no cenário carioca: “No Rio de Janeiro, não temos nada disso”, ressaltando a vulnerabilidade dos artistas e produtores culturais que operam sem redes de apoio robustas, tornando a busca por patrocínios ainda mais decisiva e, por vezes, limitadora.
A longevidade e a consistência das carreiras de Amir Haddad e Renato Borghi, que sobreviveram por sete décadas “sem uma instituição por trás, sem patrocínio, sem ter mudado a estética ou a linguagem” de seu trabalho, se manifestam, por si mesmas, como um grandioso e persistente ato de resistência cultural e existencial. Essa resiliência, desprovida de apoios fixos e recusando compromissos artísticos, faz com que o diretor Eduardo Barata conclua, com notável convicção, a relevância intrínseca do espetáculo: “Por isso, para mim, o espetáculo significa liberdade. Esses dois significam liberdade”. A liberdade à qual Barata se refere transcende as barreiras meramente políticas; ela engloba a autonomia plena para criar, para explorar sem as restrições impostas pelas amarras do mercado ou pela conveniência de agendas externas. A história de vida dos dois mestres é apresentada, assim, como um testemunho vivo e eloquente de que a arte tem a capacidade inata de se sustentar pela força intrínseca de sua mensagem e pela autenticidade de sua verdade, independentemente das adversidades.
Inspiração para as Novas Gerações e a Importância da Persistência
É precisamente essa dimensão de liberdade, aliada à persistência na resistência cultural e artística, que a montagem de “Haddad e Borghi: Cantam o Teatro Livres em Cena” propõe exaltar, oferecendo uma fonte de inspiração valiosa e um guia prático para as novas gerações de artistas e, de modo mais amplo, para o público. Os conselhos oferecidos pelos dois protagonistas em cena ressoam como um chamado à tenacidade e à autencidade. Renato Borghi oferece uma diretriz clara e direta para aqueles que buscam seguir seu próprio caminho, especialmente em um ambiente que pode ser desestimulante: “Tudo leva você a desistir. Não desista. Vá em frente. Batalhe”. Sua mensagem enfatiza a necessidade de uma luta contínua e da perseverança contra as adversidades inerentes à carreira artística.
Amir Haddad, por sua vez, complementa essa perspectiva com uma ênfase ainda maior na importância da vocação e da realização pessoal como pilares fundamentais para uma vida plena: “Fazer o que você tem vontade é a coisa mais importante da vida…”, ele declara. O encenador vai além, advertindo sobre as consequências de desviar-se do próprio desejo: “Se você fizer outra coisa, será infeliz pelo resto da vida”. Juntos, os conselhos formam um manifesto sobre a importância de buscar a própria verdade e lutar incansavelmente por ela, reconhecendo o teatro não apenas como uma profissão, mas como um caminho essencial para a existência.
Com essa profundidade de testemunhos e mensagens, “Haddad e Borghi: Cantam o Teatro Livres em Cena” configura-se como muito mais do que uma simples retrospectiva das carreiras dos dois artistas. É um testamento vivo e contundente que reafirma que o teatro, em sua essência mais pura, é, acima de qualquer coisa, uma questão de existência. Como define Eduardo Barata, eles “são referências e sempre quebraram padrões, nunca aceitaram o que era imposto”. Essa narrativa de resistência e paixão se manifesta agora no palco, aberta para a reflexão e para o deleite de todos, em São Paulo, no Sesc Consolação, a partir de 29 de agosto, com classificação livre e ingressos a partir de R$ 21,00 para credencial plena. O elenco que compõe essa jornada inesquecível inclui, além de Amir Haddad e Renato Borghi, Débora Duboc, Duda Barata, Élcio Nogueira Seixas e Máximo Cutrim, todos sob a direção de Eduardo Barata.
Com informações de Folha de S.Paulo
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