Mulheres do Amazonas enfrentam longas viagens para tratar câncer

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No Amazonas, mulheres enfrentam verdadeiras odisseias fluviais em sua jornada por tratamento contra o câncer, com viagens que podem durar até uma semana para chegar a Manaus. A aposentada Bersilda Moura da Costa, de 67 anos, é um exemplo pungente dessa realidade. Moradora de Benjamin Constant, na região do Alto Solimões, perto da fronteira com o Peru, ela precisa de até sete dias de barco, ou dois de lancha, para chegar à capital amazonense e tratar seu câncer do colo do útero, enfrentando altos custos, a dolorosa saudade de casa e um ano de ausência de seu lar para dar continuidade ao seu tratamento.

Essa rotina exaustiva é comum para inúmeras mulheres diagnosticadas com câncer no interior do estado. Elas se veem obrigadas a percorrer vastas distâncias e a se ausentar de seus municípios por meses, ou até anos, devido à imprescindibilidade de não interromperem o tratamento. O principal motivo reside na concentração do atendimento de alta complexidade em Manaus, na Fundação Centro de Controle de Oncologia do Amazonas (FCecon), a única unidade de referência pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para os 62 municípios amazonenses.

Mulheres do Amazonas enfrentam longas viagens para tratar câncer

Dados recentes ilustram a demanda feminina na capital: nos últimos dois anos, as mulheres representaram aproximadamente 64% dos atendimentos oncológicos. Esse percentual teve um incremento, alcançando quase 67% do total de prontuários abertos na unidade de referência entre janeiro e setembro de 2025. Na FCecon, os três tipos de câncer com maior incidência são o de colo do útero, o de mama e o intestinal.

A predominância fluvial do Amazonas implica que a maioria dos deslocamentos se dá pelos rios. Pacientes como Bersilda frequentemente chegam à capital já debilitadas, desprovidas de suporte familiar imediato ou de um local adequado para hospedagem, além de lidarem com dificuldades financeiras consideráveis. Essa dura realidade foi testemunhada pela ativista Dani Veiga, de 39 anos, que passou por um tratamento de câncer de mama no estado, resultando em dez cirurgias, incluindo a retirada do útero e das mamas. Ela sublinha a urgência de medidas que promovam o diagnóstico precoce e o rastreamento, citando que a falta dessas iniciativas contribui para que muitas pacientes atinjam Manaus em estágios críticos da doença.

Conforme apontado por especialistas, a demora no atendimento e no início do tratamento perpassa diversas etapas da rede de atenção à saúde. Na atenção primária, observam-se atrasos na liberação de resultados de exames. Na secundária, a realização de biópsias sofre postergação, e na atenção terciária, o início efetivo do tratamento é frequentemente adiado. Além das barreiras geográficas, Dani Veiga critica a escassez de políticas públicas focadas no acolhimento, na alimentação e no acompanhamento psicossocial dos pacientes durante todo o período do tratamento. O Governo do Amazonas, por sua vez, afirma que está direcionando esforços para a expansão e descentralização do diagnóstico precoce do câncer do colo do útero, o mais incidente no estado, além de investir na execução de procedimentos de média complexidade para o manejo de lesões pré-malignas e em campanhas de prevenção ao câncer de mama.

Marília Muniz, enfermeira oncológica da FCecon e presidente da Rede Feminina de Combate ao Câncer do Amazonas, reitera que o transporte é um dos principais obstáculos para as pacientes oncológicas do estado. Ela informa que alguns municípios subsidiam os custos para que as pacientes se desloquem do interior para Manaus por barco, lancha ou avião, mas essa prática não é universal. Muniz salienta que o desafio transcende a mera questão do transporte. “Não adianta apenas vir para Manaus, que é tão distante, se a paciente não tem onde ficar ou como se alimentar durante o tratamento”, argumenta, realçando a necessidade de um suporte mais abrangente.

A enfermeira sugere que a instalação de mais unidades de tratamento oncológico, distribuídas estrategicamente entre os municípios de maior porte do Amazonas, seria uma solução viável para mitigar o problema. Ela também propõe a intensificação do uso de lanchas rápidas. “Essas medidas poderiam reduzir drasticamente o tempo de viagem, que hoje pode chegar a duas semanas, e facilitar o acesso à atenção secundária e terciária sem sobrecarregar a capital”, destaca, enfatizando o potencial de tais inovações para transformar a experiência dos pacientes.

Ainda que a FCecon não mantenha um programa social próprio, o governo estadual aponta a colaboração com diversas ONGs, como a Liga Amazonense Contra o Câncer, a Rede Feminina de Combate ao Câncer e o Lar das Marias. Questionado sobre planos de descentralização do atendimento oncológico, a abertura de novos centros ou o estabelecimento de parcerias com hospitais municipais e do interior, o governo optou por não emitir uma resposta específica sobre essas propostas, evidenciando uma lacuna de informações a respeito de futuras ações.

O Lar das Marias, uma dessas organizações não governamentais parceiras, desempenha um papel fundamental ao oferecer acolhimento para mulheres que chegam a Manaus em busca de tratamento. A instituição dispõe de 25 dormitórios, com capacidade para 50 pacientes, que devem estar sempre acompanhadas por outras mulheres. No abrigo, elas recebem apoio psicossocial e nutricional, além de participarem de atividades de artesanato, cursos profissionalizantes e momentos de lazer. As mulheres podem residir no Lar das Marias durante todo o processo de tratamento, que abrange radioterapia, quimioterapia e cirurgias. A assistente social Glaucia Souza observa que a maioria das pacientes chega ao abrigo com o câncer em estágio avançado, reflexo das dificuldades de acesso a exames preventivos, da demora na entrega de resultados e da falta de uma cultura de acompanhamento médico contínuo. A instituição, de natureza sem fins lucrativos, opera com base em recursos de parceiros, na realização de eventos e na participação em editais governamentais. “É doloroso ver essas mulheres enfrentando tanto sofrimento, mas todos os dias a gente tenta garantir dignidade e cuidado durante o tratamento”, afirma Souza, emocionada pela causa.

Bersilda, por exemplo, é uma das pacientes acolhidas pelo Lar das Marias. Ela descobriu o câncer do colo do útero em 2023, após identificar sangramentos anormais ainda em Benjamin Constant. O diagnóstico revelou a doença em estágio 3, um nível avançado. Encaminhada a Manaus, ela iniciou seu tratamento na FCecon. A viagem de lancha para chegar à capital leva aproximadamente dois dias, mas o retorno, contra a correnteza do rio, pode se estender por até sete dias. Após obter sua carteirinha de idosa, Bersilda conseguiu um desconto significativo nas passagens, reduzindo o custo para cerca de R$ 500 ou R$ 600 por viagem. Atualmente, na fase de acompanhamento, Bersilda realiza revisões médicas a cada seis meses, permanecendo aproximadamente um mês em Manaus em cada uma dessas visitas.

Outro testemunho comovente é o da auxiliar administrativa Marilane Ferreira da Silva, de 45 anos, natural de Juruá. Ela enfrentou dois anos de tratamento para câncer de mama longe de seus filhos. O deslocamento até Manaus podia durar de três a sete dias de barco, inviabilizando qualquer acompanhamento do dia a dia de suas crianças, que ficaram sob os cuidados da filha mais velha. “Eu estava em Manaus fazendo tratamento e não participei da vida do meu filho. Fiquei dois anos longe. Chorava noite e dia”, relembra Marilane, sobre o impacto emocional da distância. Após o término do tratamento primário e de volta a Juruá, ela mantém os retornos médicos regulares para garantir que a doença não retorne.

A estrutura dos barcos utilizados para o transporte varia amplamente. Enquanto algumas embarcações oferecem acomodações mais confortáveis, como camas para aqueles que podem pagar mais, outras dispõem apenas de espaço para a instalação de redes. A alimentação durante a viagem também não é uma constante; algumas providenciam refeições como almoço e jantar, outras não. A desigualdade e o descaso, infelizmente, se estendem a detalhes tão básicos quanto o transporte dos enfermos.

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Este cenário sublinha a necessidade urgente de uma abordagem multifacetada para o câncer no Amazonas, que inclua a descentralização dos serviços oncológicos e o fortalecimento de programas de apoio às pacientes do interior. Para saber mais sobre os desafios na saúde pública brasileira e as políticas de combate ao câncer, o Instituto Nacional de Câncer oferece um panorama completo sobre o tema. Conhecer essas realidades é o primeiro passo para reivindicar soluções. Mantenha-se informado sobre essas importantes discussões em nossa editoria de Análises.

Crédito da imagem: Bruno Kelly/Folhapress

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