A surpreendente jornada de uma marinheira presa no mar em condições inesperadas tomou o mundo de assalto com o início da pandemia de COVID-19. Giulia Baccosi, uma jovem italiana de 31 anos, viu seus planos mudarem radicalmente na véspera de Ano Novo de 2019, quando uma decisão impensada a levou a uma aventura de 188 dias, muito além de qualquer expectativa inicial. Sua saga a bordo de um navio cargueiro é um testemunho da incerteza e da resiliência em face de uma crise global sem precedentes.
No crepúsculo de 2019, enquanto festejava com amigos, Giulia, então residente em Londres, encontrava-se em um dilema profissional. Recém-aceita para um emprego na Sicília, um sentimento de dúvida a invadia, levando-a a procurar um “sinal do Universo”. Esse sinal chegou por meio de uma mensagem de uma amiga, detalhando a necessidade urgente de um cozinheiro para uma escuna de 100 anos, o Avontuur, prestes a partir da Europa em direção à América Central. A embarcação carregava rum e azeite de oliva e sua viagem tinha uma previsão inicial de três meses.
Marinheira relata seis meses presa no mar por impulso em 2020
Tendo experiência prévia como cozinheira marítima, Baccosi abraçou a oportunidade com entusiasmo, decidindo adiar seus planos sicilianos e comprometer-se com o navio apenas até o México, dali planejava retornar à sua vida na Itália. Contudo, o destino tinha outros planos para ela e para toda a tripulação. Em janeiro, o Avontuur zarpou da Alemanha, cruzando as águas turbulentas do Mar do Norte. A responsabilidade de Giulia era alimentar 15 pessoas famintas e gerenciar os suprimentos, uma tarefa exigente para os próximos meses.
A primeira escala da viagem foi em Santa Cruz de Tenerife, nas Ilhas Canárias, onde a tripulação desembarcou após 36 dias no oceano, pronta para desfrutar da energia do famoso carnaval da cidade. O ambiente festivo contrastava com um boato intrigante sobre uma doença misteriosa que acometia alguns visitantes da ilha, levando-os a uma quarentena em um hotel. Esse alerta inicial, no entanto, foi rapidamente esquecido em meio aos preparativos para a continuidade da travessia.
Dias após deixar as Canárias, um evento inesperado marcou a jornada. A 45 milhas náuticas da Gran Canária, uma luz incomum no horizonte captou a atenção do vigia noturno. A rápida constatação de que não se tratava de um barco de pesca mobilizou a tripulação, que abaixou as velas e ligou o motor de emergência. A aproximação revelou uma pequena embarcação de madeira sobrecarregada, com 16 migrantes – 11 homens e 5 mulheres – em condições desoladoras, acenando em um apelo desesperado por socorro.
Os ocupantes do barco estavam à deriva há mais de dez dias, sem comida, água ou combustível. Eles tentavam completar uma das mais perigosas travessias do mundo, do oeste da África para as Ilhas Canárias, uma rota que anualmente tira a vida de milhares de pessoas em busca de esperança. Resgatados pela tripulação do Avontuur, os migrantes exaustos receberam alimento, água e assistência médica. A Guarda Costeira foi acionada para auxiliar na remoção das pessoas, visto que o Avontuur não tinha capacidade para mais passageiros. Giulia, em seu diário, destacou que a tripulação agiu movida por humanidade, sem se sentir heróis.
Retomando a rota rumo ao Caribe, dias depois do resgate, a tripulação foi convocada ao convés. Um e-mail do proprietário do navio revelou um cenário mundial alarmante: “O mundo que vocês conhecem não existe mais”. Portos, aeroportos, supermercados, lojas e fronteiras estavam se fechando rapidamente devido ao avanço da COVID-19. Um silêncio apreensivo pairou sobre o Avontuur enquanto todos tentavam compreender a magnitude da notícia e o impacto em seus entes queridos em terra firme.
A impossibilidade de se comunicar com familiares intensificou a ansiedade de Giulia, que temia pela segurança de seu namorado, mãe, avó e irmão. A única ligação com o mundo exterior era um e-mail diário via satélite, enviado para a sede na Alemanha, mas o sinal de telefone estava a, pelo menos, seis dias de distância. A confusão e o medo marcaram aquele momento, enquanto o cenário de fechamento de portos e fronteiras transformava a realidade que todos conheciam.
Sem certezas sobre a permissão de atracar, o Avontuur seguiu para o Caribe. Próximo a Guadalupe, Baccosi buscou ansiosamente por sinal de celular. Ao finalmente conseguir contato, as lágrimas escorreram enquanto ela conversava com o parceiro, sem saber o que o futuro lhes reservava. O que seria uma escala para descanso e reabastecimento – um raro alívio para a tripulação que convivia confinada a poucos metros uns dos outros por semanas – transformou-se em desilusão. Funcionários do porto, usando máscaras cirúrgicas, ordenaram que o Avontuur partisse rapidamente, sem que a tripulação pudesse desembarcar. Após três semanas no mar sem licença em terra e diante do noticiário alarmante, a ansiedade se instalou, principalmente sobre o próximo destino, Honduras, a quinze dias de distância.

Imagem: www1.folha.uol.com.br
As semanas seguintes foram um desafio constante. Impedida de desembarcar na maioria dos portos, a tripulação enfrentou a dura realidade de que seus planos originais de chegadas e partidas, incluindo o desembarque de Giulia no México, seriam inviabilizados até o retorno à Alemanha. A preocupação com o abastecimento alimentar cresceu, e Giulia se viu responsável por nutrir 15 pessoas em um espaço confinado, do tamanho de uma quadra de basquete, enquanto as tensões aumentavam.
Aflita com a situação e a distância dos seus entes queridos, Giulia esboçava mensagens em redes sociais, desejando que todos estivessem bem em terra. Para combater o tédio e a ansiedade do confinamento, a tripulação do Avontuur buscou criatividade e conexão. Artesanato, desenhos, música e até romances floresceram a bordo. Uma rede de carga foi instalada na popa para permitir banhos seguros no oceano. A natureza, em sua grandiosidade, ofereceu momentos de consolo com avistamentos de golfinhos, peixes-voadores e, em uma noite inesquecível, baleias minke em águas bioluminescentes, um espetáculo que Baccosi descreveu como “magnífico, maravilhoso e onírico”.
A situação logística se complicou ainda mais quando o Avontuur precisou manobrar para evitar um furacão, rumando para o norte em direção à Terra Nova, no Canadá. O inventário de Giulia revelou uma escassez preocupante de alimentos secos para a viagem de volta à Alemanha. Café, o “combustível do marinheiro”, precisou ser racionado, e o gás para cozinhar, a principal fonte de energia, estava se esgotando, sem nenhum plano B à vista. Com criatividade e resiliência, uma panela de cozimento lento foi improvisada usando uma caixa de madeira, espuma de construção e um tapete de ioga. O resultado surpreendeu: a equipe desfrutou de alguns dos melhores cozidos já preparados, transformando uma crise iminente em uma vitória culinária.
Em junho de 2020, depois de quase quatro meses e meio de incerteza, o Avontuur finalmente atracou em Horta, nos Açores, um arquipélago vulcânico exuberante a oeste de Portugal. Sendo cidadãos da União Europeia, a tripulação tinha a expectativa de desembarcar, mas antes precisaram passar por testes de COVID-19. Dias depois, o sinal tão aguardado chegou. Após 135 dias ininterruptos no mar, a permissão para pisar em terra firme foi concedida, e Giulia expressou o desejo de desfrutar de cada detalhe, desde flores e grama até um bar, chocolates e a simples liberdade de escolher o próprio caminho.
O ânimo se renovou, e a expectativa pelo trecho final da viagem, de volta à Europa, encheu a tripulação de esperança. Finalmente, no final de julho, após um total de 188 dias no oceano, o Avontuur aportou em Hamburgo, Alemanha. A tripulação, unida pelas mãos, comemorou o fim da jornada, enquanto os olhos de Baccosi se enchiam de lágrimas de emoção. Apesar da exaustão, ainda havia uma tarefa final: descarregar as 64 toneladas de café, cacau, óleo de oliva e rum trazidos do Caribe. Uma festa de retorno celebrou a odisséia, e a equipe vestiu camisetas com a frase que marcou o início de tudo: “O mundo que vocês conhecem não existe mais.”
Contudo, Giulia Baccosi sentiu que não era a mesma pessoa que partiu. A experiência transformou-a, levantando questões sobre como o “novo eu” se encaixaria na “velha vida”. Mesmo após tal provação, o chamado do mar permaneceu forte. Cinco anos depois daquele Réveillon impulsivo, Giulia está novamente a bordo, trabalhando como cozinheira perto do litoral da Groenlândia, ainda em busca de sinais do Universo para confirmar que está no caminho certo. A extraordinária viagem da marinheira presa no mar serve como um lembrete vívido da resiliência humana diante das reviravoltas da vida e da história.
Confira também: crédito imobiliário
A história de Giulia Baccosi e a tripulação do Avontuur, a marinheira presa no mar pela pandemia, destaca a adaptabilidade e o espírito humano diante de desafios imprevistos. Continue explorando nossas análises e notícias para descobrir mais relatos inspiradores e os impactos dos eventos globais na vida de pessoas ao redor do mundo.
Crédito da Imagem: Matthias Berg/Klima Segler
🔗 Links Úteis
Recursos externos recomendados