Lampião e Padre Cícero: O Inesperado Encontro em 1926

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O histórico encontro entre Lampião e Padre Cícero, duas das mais icônicas e lendárias figuras do Nordeste brasileiro, ocorreu de forma surpreendente e discreta no Ceará, em março de 1926. Embora não existam registros fotográficos do momento exato, este evento em Juazeiro do Norte, no coração do Cariri cearense, é ricamente detalhado por relatos e documentos da época, revelando uma trama complexa de política, religião e banditismo no cenário conturbado do Brasil dos anos 1920.

A vinda dos cangaceiros liderados por Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, à cidade não foi fortuita. Ela fazia parte de um plano estratégico das autoridades governamentais, que buscavam o apoio do temido bando para combater um inimigo em comum: a Coluna Prestes. O contexto nacional e regional impulsionou essa aliança insólita, mostrando como figuras aparentemente opostas puderam convergir em um momento de crise.

Lampião e Padre Cícero: O Inesperado Encontro em 1926

O temor que pairava sobre o Ceará era a aproximação da Coluna Prestes, um movimento liderado por militares que atravessava o Brasil travando batalhas e se opondo fervorosamente ao governo federal do então presidente Artur Bernardes, exigindo sua renúncia. Diante dessa ameaça real, Bernardes autorizou as esferas regionais a organizar os chamados Batalhões Patrióticos, agrupamentos armados com a finalidade de defender a nação e confrontar a Coluna Prestes. No Cariri, a responsabilidade de mobilizar essas forças recaiu sobre o deputado Floro Bartolomeu, uma figura de grande proximidade e confiança de Padre Cícero. Foi Bartolomeu quem articulou o pedido de reforço ao bando de Lampião, com promessas de suprimentos militares, recompensas financeiras e, notavelmente, uma patente militar, conferindo-lhe o título de capitão — mesmo sem validade oficial, Lampião passou a se autodenominar assim dali em diante.

Em 4 de março de 1926, Lampião e seus homens chegaram a Juazeiro do Norte. Contudo, a tão esperada batalha nunca ocorreu, pois a Coluna Prestes desviou seu trajeto. A estadia de Lampião na cidade foi notável, rendendo sessões de fotografia, entrevistas concedidas a jornais da época e, o mais importante, pelo menos um encontro com Padre Cícero, a quem Lampião professava profunda devoção e admiração. A repercussão do encontro entre essas figuras já controversas na época foi vasta, com a imprensa noticiando, charges ilustrando e cordéis eternizando o momento na cultura popular.

Os Dias de Lampião no Ceará: De Bandoleiro a “Capitão”

No ano de 1926, Lampião já era internacionalmente conhecido pela crueldade de seus atos no cangaço, liderando seu próprio bando desde 1922. Ele incutia temor na população e desafiava as autoridades policiais por onde passava. Antes de chegar a Juazeiro do Norte, seu bando de aproximadamente 50 cangaceiros transitou por Barbalha na tarde do dia 4 de março. Curiosamente, a presença do grupo não gerou alarde significativo, conforme reportagens do jornal “O Ceará” da época, que mencionavam o bom comportamento dos bandoleiros na cidade. Após a breve passagem, Lampião, antes de partir para a cidade vizinha, certificou-se de que todas as mercadorias compradas por seus homens nas lojas e bodegas fossem pagas.

Na mesma noite, Lampião foi recepcionado por autoridades locais na fazenda do deputado Floro Bartolomeu em Juazeiro do Norte, embora o anfitrião estivesse ausente, buscando tratamento de saúde no Rio de Janeiro. A presença dos cangaceiros na cidade causou certo burburinho, mas sem confrontos. O jornalista e escritor Robério Santos, autor de “O Santo e o Cangaceiro”, descreve que, por volta das 22h, Lampião e seus 49 homens fizeram uma entrada “triunfante a cavalo” no centro de Juazeiro do Norte, onde uma recepção já havia sido organizada.

Lampião permaneceu hospedado até 7 de março em um sobrado do poeta João Mendes. Foi nesse local que recebeu a visita do “padim”. Robério Santos relata que Lampião “praticamente não dorme à noite, de tantas pessoas visitando. Inclusive, o próprio padre Cícero vai até lá e pede pro Lampião não cometer nada, não fazer nada”. Lampião, segundo o escritor, deu sua palavra e cumpriu, garantindo que não haveria nenhum crime na cidade. A ausência de qualquer transgressão por um grupo de 50 cangaceiros é jocosamente referida por Robério como um dos “milagres” de Padre Cícero. Santos contextualiza essa peculiaridade ao explicar a forte conexão do cangaço com os ritos católicos; Lampião, por exemplo, era um devoto fervoroso do Sagrado Coração de Jesus e usava um broche do Padre Cícero em suas vestes durante sua visita ao Cariri.

O encontro em si não foi fotografado, mas relatos de diversas pessoas presentes no sobrado da época sobreviveram até os dias atuais, mostrando que o momento não ocorreu em segredo. Robério Santos descreve a cena em que Lampião e seus homens “se abaixam, beijam sua mão, tiram o chapéu e têm aquela devoção”. O próprio sacerdote confirmou o encontro em entrevistas jornalísticas, afirmando ter aconselhado Lampião a abandonar a vida no cangaço, mudar-se para uma região onde não fosse conhecido e buscar um trabalho honesto. Quatro anos mais tarde, ao ser questionado sobre por que não havia ajudado a prender Lampião, Padre Cícero, de acordo com a historiadora Fátima Pinho, da Universidade Regional do Cariri (Urca), respondeu que tal ato seria uma “covardia”, dado que Lampião havia vindo a Juazeiro do Norte em missão de prestação de serviço à nação.

Visitas, Entrevistas e Fotografias em Juazeiro do Norte

Além do significativo encontro com Padre Cícero, os quatro dias de Lampião em Juazeiro do Norte foram repletos de cenas inusitadas. Ele enviou uma carta ao delegado local, informando à polícia que o bando estava na região em “missão de paz”. Para os moradores, prevalecia a crença de que a influência do Padre Cícero garantiria a conduta pacífica do cangaceiro. Durante esse período, as pessoas se reuniam em vigílias, ansiosas por ver o lendário bandoleiro na porta do sobrado. Robério Santos narra ter coletado depoimentos de pessoas que ainda hoje guardam as moedas que Lampião generosamente distribuía às crianças. No sobrado, ele também recebeu a imprensa local, concedendo entrevistas sob o olhar atento de seus comparsas. Três semanas após sua visita, o jornal “O Ceará” publicou algumas de suas respostas. Questionado sobre a ausência de crimes em terras cearenses, Lampião respondeu: “Sempre respeitei e continuo a respeitar o estado do Ceará porque aqui não tenho inimigos, nunca me fizeram mal e ainda porque é o estado do Padre Cícero”. Ele acrescentou ter “a maior veneração por este santo sacerdote, porque é o protetor dos humildes e dos infelizes e, sobretudo, porque há muitos anos protege as minhas irmãs que moram nessa cidade.”

Outro ponto marcante da visita foi o reencontro de Lampião com seus familiares que viviam em Juazeiro do Norte, incluindo primos, cunhados, irmãos e irmãs. Esses momentos foram eternizados em sessões de fotografias organizadas na cidade. As imagens foram capturadas por dois renomados fotógrafos da região: Pedro Maia, de Crato, e Lauro Cabral, de Barbalha. Como aponta Robério Santos, essas fotografias foram de grande importância e continuaram sendo utilizadas por anos em jornais e até mesmo em cartazes de recompensa pela captura de Lampião. O fotógrafo Pedro Maia foi convidado por Benjamin Abrahão, um libanês que se tornaria uma figura emblemática na documentação histórica do cangaço, e que, atraído pelas romarias de Juazeiro do Norte, havia se tornado secretário particular e confidente de Padre Cícero. Em 1935, após a morte do sacerdote, Abrahão conseguiu financiamento para filmar e fotografar o bando de Lampião no sertão nordestino, produzindo o acervo mais célebre do Rei do Cangaço, incluindo os primeiros registros com Maria Bonita, com quem Lampião se casou em 1930.

A Ameaça da Coluna Prestes e a Motivação Governamental

Embora o cangaço fosse um fenômeno complexo, visto por alguns como uma forma de resistência às injustiças sociais e à concentração de poder no sertão, o historiador André Rosa enfatiza que esses grupos, como o de Lampião, atuavam através do crime e de atos de crueldade. Paradoxalmente, o bando, até então perseguido pelas polícias nordestinas, encontrou um status temporário de legalidade por um arranjo com o governo, tudo por causa da ameaça da Coluna Prestes. Nos anos 1920, o Brasil ainda vivia sob a chamada política do café com leite, dominada por governantes de São Paulo e Minas Gerais, num contexto de elitismo político que marginalizava estados como os do Nordeste, muitas vezes controlados por “coronéis” de grande influência. Essa época também foi marcada por intensos tumultos e contestações à política nacional, como o tenentismo, movimento de revolta de oficiais jovens do Exército.

O movimento tenentista ganhou força sob o governo de Artur Bernardes (1922-1926), que passou 44 dos seus 48 meses de mandato em estado de sítio. A marcha da Coluna Prestes a partir de 1925, iniciada no Rio Grande do Sul e percorrendo 11 estados com cerca de 2 mil participantes, tornou-se um dos principais problemas para o presidente mineiro. Visando à participação das Forças Armadas no poder e pregando reformas sociais, a Coluna Prestes defendia o fim da política do café com leite e a moralização do sistema eleitoral. Em 1926, esperava-se que a coluna atingisse o Cariri cearense, justamente quando Lampião se preparava para se aliar ao governo. Contudo, ela mudou seu percurso e se dissolveu em 1927, recuando para a Bolívia.

O Papel de Padre Cícero no Chamado a Lampião

Não existem registros documentais da correspondência que formalmente convocou o bando de Lampião para os Batalhões Patrióticos em 1926, tornando incerto o papel exato de Padre Cícero no convite. Àquela altura, Padre Cícero estava em seu segundo mandato como prefeito de Juazeiro do Norte e detinha uma influência política e religiosa consolidada. Os “milagres de Juazeiro” de 1889 haviam lhe rendido uma legião de devotos fervorosos. Na imprensa, havia acusações de que Padre Cícero atuava como “coiteiro” (protetor) de cangaceiros desde a Sedição de Juazeiro em 1914, quando fiéis e aliados do sacerdote derrotaram as forças policiais do governador Franco Rabelo. Essa “Guerra Civil do Ceará”, como descrita pela historiadora Fátima Pinho, envolvia devotos de Padre Cícero e “cabras” dos coronéis que o apoiavam, gerando a associação entre o religioso e as “tropas de cangaceiros”.

Pinho detalha que, na tentativa de reagir à Coluna Prestes, o presidente Artur Bernardes consultou Padre Cícero para a formação de Batalhões Patrióticos no Cariri. Boatos indicavam que as forças de Prestes chegariam ao Ceará por Campos Sales, na fronteira com o Piauí. Contudo, Padre Cícero declinou o convite e sugeriu o nome de Floro Bartolomeu, então deputado federal com considerável influência política. Ao chegar em Juazeiro em 1926, Floro começou a organizar o Batalhão Patriótico e enviou um “bilhete para Lampião para que viesse ao Juazeiro e se integrasse às forças do Batalhão Patriótico. Em troca, ele teria a patente de coronel e receberia armas”, conta Pinho. Padre Cícero, no entanto, trocou correspondência oficial diretamente com Luís Carlos Prestes, apelando para que ele desistisse da empreitada e prometendo clemência por parte do presidente, pedido que não foi atendido. Robério Santos ressalta que, com a desistência de muitos recrutas comuns, recorrer aos bandoleiros de Lampião se tornou uma estratégia pragmática para o governo: “Os cangaceiros valiam por dez pessoas. Os cangaceiros conheciam a caatinga, eram bem preparados, bem armados”. A ideia de prometer uma patente a Lampião, com a intermediação do “padim”, visava capitalizar a influência religiosa e política do sacerdote.

A Falsa Patente de “Capitão Virgulino”

Quando Lampião chegou a Juazeiro do Norte, o deputado Floro Bartolomeu já estava no Rio de Janeiro por motivo de doença, onde faleceu em 8 de março daquele ano. Sem a presença de Bartolomeu, a promessa da patente de capitão para Virgulino Ferreira foi cumprida por Pedro de Albuquerque Uchoa, identificado como o único funcionário público federal presente na cidade. Ele assinou a patente, ainda que sem validade oficial, cumprindo parte da promessa feita no convite ao cangaceiro. Robério Santos afirma que um dos irmãos de Lampião relatou em entrevistas posteriores a presença de Padre Cícero durante o momento da assinatura e entrega da patente. O evento, conforme os relatos, teve um tom de solenidade, com Benjamin Abrahão e outras figuras da cidade atuando como testemunhas. No entanto, Albuquerque, sendo agrônomo, não possuía autoridade para conceder tal patente militar. Algumas versões históricas sugerem que Lampião foi enganado, mas Robério Santos e outros autores questionam essa perspectiva. O fato é que, após a visita a Juazeiro, Lampião passou a se identificar como “Capitão Virgulino” em suas correspondências e a incorporar o título à sua identidade, levando-o consigo até o fim da vida.

Do encontro com Padre Cícero e da sua passagem por Juazeiro, inúmeras representações surgiram no imaginário popular. Na literatura de cordel, floresceram narrativas cantadas em feiras e lares, algumas alegando que Lampião teria tido seu “corpo fechado” após receber a bênção do Padre. Os jornais da época também exploraram intensamente o episódio que uniu duas das personalidades mais debatidas do Nordeste. A imprensa, como analisado por Fátima Pinho, desempenhou um papel crucial na construção da lenda. Surgiram histórias não comprovadas de que Lampião teria visitado Juazeiro “disfarçado” várias vezes. As charges, por sua vez, retratavam frequentemente Padre Cícero como “coiteiro” de Lampião, associação que, inclusive, já existia de datas anteriores. Apesar dos conselhos de Padre Cícero para que abandonasse o cangaço, Lampião não alterou sua trajetória e continuou a liderar seu bando até ser morto pela polícia, junto a Maria Bonita e outros companheiros, em 1938, no sertão sergipano.

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O histórico encontro entre Lampião e Padre Cícero em 1926 permanece como um dos episódios mais intrigantes e debatidos da história brasileira, revelando a complexidade das alianças em tempos de instabilidade e a intersecção de figuras que transcenderam seus respectivos campos de atuação. Este evento em Juazeiro do Norte não apenas redefiniu momentaneamente a trajetória de Lampião, como também reforçou a mística e a influência de Padre Cícero, cujo papel nesse arranjo singular com o governo central é crucial para compreender o Brasil da Primeira República. Para aprofundar-se em análises históricas e entender as nuances do poder no país, convidamos você a explorar mais conteúdos em nossa editoria de Política.

Crédito da imagem: Acervo Museu da Fotografia do Cariri/Casa de Telma Saraiva

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