A necessidade de um jornalismo de qualidade nunca foi tão premente, em um mundo onde a busca por clareza sobre eventos complexos – desde conflitos globais como a guerra em Gaza até decisões governamentais em saúde pública ou meras mudanças no transporte urbano – é constante. O público global tem um direito fundamental a informações fidedignas e em que possa depositar sua confiança.
Na era digital atual, somos constantemente bombardeados por informações nas redes sociais, muitas vezes apresentadas de forma convincente e impactante. No entanto, o questionamento sobre a veracidade dessas narrativas, especialmente as criadas por inteligência artificial (IA), tornou-se uma prática diária. Essa crescente dificuldade em distinguir o real do fabricado representa uma ameaça significativa.
Jornalismo de Qualidade: Desafios da IA e Futuro da Verdade
O impacto da inteligência artificial na formação da percepção da realidade é inegável, criando um risco latente de minar a credibilidade de qualquer fonte de informação. Essa desconfiança generalizada atua como um catalisador para teorias da conspiração, acentua a polarização social e fomenta o desengajamento cívico. Na essência, as próprias ferramentas projetadas para auxiliar na compreensão do mundo estão, ironicamente, erodindo a integridade do que se considera notícia.
Conforme destacado no Dia Mundial do Jornalismo, a população mundial é merecedora de fatos apurados. Profissionais do jornalismo e as organizações para as quais trabalham em todo o planeta assumem o compromisso de investigar, verificar e compartilhar essas informações. Contudo, as gigantes da tecnologia que desenvolvem os sistemas de IA amplamente utilizados falham em sua responsabilidade de garantir a verdade factual, um ponto crucial de tensão e preocupação para a indústria da comunicação.
Estudos Revelam Falhas Cruciais da IA em Conteúdo Noticioso
Pesquisas recentes corroboram as apreensões em relação à IA. Um estudo independente conduzido este ano pela BBC, por exemplo, revelou que cerca de metade das respostas geradas por IA a perguntas relacionadas a notícias frequentemente omitiam detalhes relevantes ou apresentavam imprecisões substanciais. Os assistentes de IA avaliados exibiram um padrão de confusão de fatos, criação de citações falsas ou erroneamente atribuídas, apresentação de dados fora de contexto e paráfrases de reportagens sem o devido crédito aos autores originais.
Poder-se-ia argumentar que a IA é uma ferramenta que otimiza tempo e tende a aprimorar-se, tornando seus erros aceitáveis. Contudo, a questão transcende meras receitas ou dicas de viagem. O que está em jogo é o próprio fundamento da democracia. Uma sociedade desprovida de um consenso sobre a verdade é incapaz de tomar decisões bem-informadas. Indivíduos que se apoiam em distorções do jornalismo genuíno e independente arriscam-se a se perder em um emaranhado de meias-verdades e manipulação intencional. Este cenário não é uma projeção abstrata: a internet já está saturada de falsificações digitais elaboradas com o objetivo de iludir, gerar tráfego e promover agendas específicas.
Vozes, identidades visuais e títulos criados por inteligência artificial estão contribuindo para a degradação do ecossistema informativo, frequentemente carecendo de procedência clara e de mecanismos de responsabilização. Simultaneamente, o labor essencial de jornalistas que atuam em prol do interesse público, especialmente em veículos locais, regionais e independentes, é explorado de forma não autorizada, reempacotado algoritimicamente e disseminado sem o devido reconhecimento ou remuneração.
A Sutil Degradação da Credibilidade Jornalística
Este fenômeno, por sua natureza, mostra-se ainda mais insidioso do que as *deepfakes* mais evidentes e chocantes, uma vez que suas imprecisões são mais sutis, verossímeis e, portanto, mais eficazes em enganar o público. Estamos observando uma sabotagem progressiva do jornalismo de qualidade que precisamos para sustentar a confiança. Este processo tem exaurido as já escassas reservas de credibilidade pública, um ativo inestimável em qualquer sociedade informada.

Imagem: economia.uol.com.br
Diante desse cenário desafiador, surge a pergunta: o que pode ser feito? A União Europeia de Radiodifusão (UER) e a WAN-IFRA, juntamente com um crescente grupo de outras organizações que representam milhares de jornalistas e redações em escala global, clamam por mudanças urgentes na maneira como os desenvolvedores de IA interagem com o setor de notícias e os criadores de conteúdo. É crucial que esses sistemas sejam desenvolvidos com uma perspectiva ética, valorizando o trabalho jornalístico.
É importante salientar que muitas das emissoras e editoras representadas utilizam a IA de maneira responsável, empregando-a para aprimorar o processo jornalístico sem comprometer a integridade editorial. Isso ocorre, por exemplo, na automação de traduções, na detecção de desinformação ou na personalização de conteúdo. Essas organizações estão plenamente cientes de que a implementação dessas ferramentas exige a adesão a princípios éticos, total transparência e uma gestão cautelosa para assegurar a permanência do jornalismo de qualidade.
Cinco Requisitos para Empresas de Tecnologia em IA
Em virtude disso, estão sendo apresentadas cinco exigências claras às empresas de tecnologia que desenvolvem IA. Tais requisitos são vistos não como medidas extremistas, mas como padrões sensatos e factíveis, que qualquer desenvolvedor ético de tecnologia deve adotar:
- Nenhum Conteúdo Sem Consentimento: Sistemas de IA não devem ser treinados utilizando conteúdo jornalístico sem a permissão expressa dos criadores. Tal conteúdo constitui propriedade intelectual, fruto de trabalho rigoroso e de um compromisso com a confiança pública. A extração não autorizada configura roubo e compromete ambos os pilares.
- Respeitar o Valor: A produção de jornalismo de qualidade demanda um investimento considerável, mas é vital para o bem-estar social. Ferramentas de IA que se beneficiam deste trabalho devem compensar seus criadores de forma justa e transparente.
- Transparência é Essencial: Quando o conteúdo gerado por IA se baseia em fontes noticiosas, estas devem ser invariavelmente citadas de forma clara e vinculadas à sua origem. Precisão e atribuição são indispensáveis, e o público tem o direito de saber a proveniência da informação e eventuais diferenças em relação ao original.
- Proteger a Diversidade: As ferramentas de IA devem atuar no sentido de ampliar e preservar um jornalismo plural, independente e voltado para o interesse público. Um ambiente informativo saudável e robusto exige a representação de uma vasta gama de vozes.
- Colaboração Recíproca: As empresas de IA são convidadas a estabelecer um diálogo construtivo e focado em soluções com a indústria jornalística. A união de esforços pode levar ao desenvolvimento de padrões para precisão, segurança e transparência. Isso só será possível se as companhias de tecnologia enxergarem os jornalistas como parceiros valiosos, e não como meros fornecedores gratuitos de dados a serem extraídos e monetizados.
Consideramos esta questão um desafio cívico que afeta cada indivíduo que depende de informações confiáveis para orientar suas decisões de vida, formar suas convicções ou exercer seu direito de voto. Lideranças do setor, como Vincent Peyregne, CEO da WAN-IFRA (uma associação global de jornais e editoras de notícias dedicada a proteger os direitos dos editores e jornalistas em todo o mundo), e Liz Corbin, diretora de notícias da UER, têm enfatizado a urgência.
Empresas de tecnologia frequentemente discorrem sobre a importância da confiança. No entanto, a confiança não se edifica apenas com palavras, mas com ações concretas. O apelo atual é direcionado aos líderes da revolução da inteligência artificial para que abordem essa problemática com a devida seriedade. Eles detêm o poder de moldar o futuro da informação, e a percepção é que as perigosas lacunas de suas ferramentas e suas potenciais consequências ainda não foram levadas a sério. Sem medidas corretivas urgentes, a IA não apenas distorcerá as notícias; ela aniquilará a capacidade do público de confiar em qualquer coisa e em qualquer pessoa, configurando um cenário desastroso para toda a sociedade, afetando diretamente a integridade do jornalismo de qualidade.
Confira também: artigo especial sobre leis e valortrabalhista
A presente reflexão é parte da campanha do Dia Mundial do Jornalismo, iniciativa do World Editors Forum, da Canadian Journalism Foundation (CJF) e do Project Kontinuum, que visa sublinhar a importância do jornalismo de qualidade para a coesão e o desenvolvimento social. Para continuar se aprofundando nos debates cruciais sobre o futuro da mídia e seu papel essencial na sociedade, explore outras análises e artigos em nossa editoria de análises.
Imagem: Divulgação
🔗 Links Úteis
Recursos externos recomendados