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Frei Betto Detalha A Essência de Luis Fernando Verissimo como Chronicista e Retratista do Brasil Profundo

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O renomado escritor e dominicano Frei Betto ofereceu uma perspicaz retrospectiva sobre a vida e a obra de Luis Fernando Verissimo, caracterizando-o como o artista singular capaz de capturar e projetar a identidade brasileira em suas múltiplas facetas. Esta avaliação detalhada se desenrola a partir de vivências pessoais e encontros significativos, tecendo um panorama da figura multifacetada que Verissimo representou no cenário cultural do país. Através de um relato permeado por memórias e observações aguçadas, Frei Betto ilustra a profundidade e a peculiaridade do legado de um dos mais importantes intelectuais e humoristas do Brasil.

A primeira vez que Frei Betto esteve diante de Luis Fernando Verissimo foi um momento emblemático. Em 1974, recém-liberto da prisão, Betto dirigiu-se à residência dos pais de Luis Fernando, Mafalda e Érico Veríssimo, no sereno e arborizado bairro Petrópolis, em Porto Alegre. A visita tinha um propósito específico e tocante: expressar sua gratidão a Érico Veríssimo pelas diversas caixas repletas de obras literárias que o romancista havia encaminhado, a pedido de Betto, para a biblioteca da penitenciária de Presidente Venceslau, no interior de São Paulo. Foi nesse ambiente familiar, permeado pela literatura e pela recém-conquistada liberdade, que a conexão com o jovem Luis Fernando teve seu primeiro vislumbre.

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Durante o período de sua detenção, imposta pelo regime da ditadura, Frei Betto permaneceu isolado em uma ala de presos comuns por quase dois anos. Foi nesse contexto de restrição que a literatura de Érico Veríssimo adquiriu um papel vital. O anseio de Betto por reler a monumental obra “O Tempo e o Vento” levou a uma situação inusitada. O exemplar almejado encontrava-se em posse de Pedro, um colega de confinamento que compartilhava as proximidades da cela de Betto. Insistentemente, por várias semanas, Betto tentou que Pedro finalizasse a leitura para que pudesse, então, ter acesso ao livro tão desejado.

Contudo, a razão da demora de Pedro era, por si só, um testamento da força narrativa da trilogia. Certo dia, Pedro revelou a Betto que protelava a devolução da obra não por desleixo, mas por uma profunda admiração que o impulsionava a comprar volumosos cadernos. Seu objetivo era meticulosamente copiar, à mão, cada volume da aclamada série de Érico Veríssimo. Este gesto, permeado por uma paixão incomum pela literatura, tocou profundamente Frei Betto. A narrativa deste acontecimento peculiar foi então transposta para uma carta que Betto redigiu e enviou a Érico Veríssimo, expressando o impacto da devoção de um leitor recluso à sua obra. A resposta não tardou a chegar: semanas após o envio da carta, a penitenciária recebeu novas caixas de livros, agora contendo não apenas títulos do próprio Érico, mas também de outros autores, um presente que reverberou a generosidade e a influência literária dos Veríssimo.

Após esse contato inicial e o período de privação, Frei Betto passou a encontrar Luis Fernando e sua esposa, Lúcia, com certa regularidade. Esses encontros ocorriam em uma variedade de cenários: ora em concorrimentos literários por diversas partes do Brasil, que os reuniam pela paixão às letras; ora no próprio lar dos Veríssimo, em Porto Alegre, ambiente que emanava criatividade e efervescência intelectual. Além disso, as viagens para outras capitais os uniam. Especificamente, o casal Verissimo e Frei Betto compartilhavam hospedagem no apartamento de Leda Alves e Hermilo Borba Filho, na capital pernambucana, Recife. Nesse recanto, as conversas fluíam naturalmente, com a inspiradora vista da praia de Boa Viagem servindo como pano de fundo para os diálogos. Era como se as palavras ali proferidas já carregassem consigo um intrínseco “direito autoral”, sugerindo uma maleabilidade para transmutarem-se em peças teatrais, contos curtos, crônicas instigantes, anedotas típicas de botequim ou até mesmo em elaborados discursos de formatura, dada a riqueza e a agudeza de cada interação.

Um dos momentos que Frei Betto mais evoca a essência de Luis Fernando Verissimo ocorreu durante um fim de tarde, quando a discussão enveredou pela política da época. Provocado sobre os rumos do país, Verissimo proferiu uma frase de uma simplicidade avassaladora, cuja perspicácia ainda hoje, segundo Betto, ressoa como uma síntese incontestável da problemática brasileira. Ele afirmou: “O problema não é que estamos mal governados. O problema é que estamos bem governados por quem não devia governar.” A particularidade dessa declaração não se limitava apenas ao seu conteúdo mordaz, mas também à forma como foi entregue. Verissimo articulou essas palavras enquanto mexia seu café, com uma naturalidade tão grande que parecia estar discorrendo sobre um tema tão banal quanto as condições climáticas. E, após a breve e incisiva colocação, em um instante de lucidez penetrante, ele silenciou, deixando o impacto de suas palavras ressoar sem a necessidade de maiores elaborações.

Em qualquer ambiente onde estivesse presente, Luis Fernando Verissimo possuía a notável particularidade de estar simultaneamente participando e, de alguma forma, mimetizando um personagem de si mesmo. Era como se sua própria subjetividade se desdobrasse em uma persona, uma espécie de observador discreto e introspectivo, alheio aos burburinhos exteriores. Sua postura de recolhimento no silêncio, profundamente entretido com seus próprios pensamentos e a dimensão íntima de seu ser, lembrava a introspecção e a quietude de um monge budista, imerso em profunda contemplação. A peculiaridade de sua presença era tão marcante que, nas palavras de Frei Betto, era como se sua figura tivesse sido concebida pela imaginação de Henfil, suas palavras tivessem sido forjadas pela pluma afiada de Millôr Fernandes e sua imagem gráfica retratada pelo traço inconfundível de Chico Caruso, evocando uma mescla de humor, intelecto e iconografia visual em sua mera existência.

Nas noites de lançamento de seus livros na vibrante cidade do Rio de Janeiro, em especial no aconchegante Esch Café, situado no boêmio bairro do Leblon, Luis Fernando Verissimo se fazia invariavelmente presente. Ele chegava àqueles eventos acompanhado de seus colegas e amigos de longa data, os igualmente geniais Chico Caruso e Jaguar, figuras emblemáticas do humor e da arte brasileira. Na animada roda de amigos que se formava em torno de Verissimo, sua presença, ainda que marcante, evocava a figura de um passageiro clandestino a bordo de um navio que, ao ser inadvertidamente descoberto pela tripulação, não era expelido ou censurado, mas, pelo contrário, recebia um convite inesperado e honroso para assumir a batuta e reger a orquestra que animava a viagem. Verissimo demonstrava uma inclinação notável para escutar, absorvendo as nuances das conversas e as opiniões alheias muito mais do que se pronunciar. Entretanto, quando decidia quebrar o silêncio e articular uma observação, a manifestação vinha na forma de uma frase sucinta, por vezes cortante, mas invariavelmente tão precisa e perfeitamente formulada que soava como o produto de séculos de meditação e de um ensaio cuidadoso para atingir a essência de sua expressão.

Ainda que frequentemente convidado a conduzir palestras e conferências sobre os mais diversos temas, Verissimo tinha uma predileção notória por desviar-se da formalidade de um discurso tradicionalmente expositivo. Em vez de discorrer exaustivamente sobre o assunto em pauta, ele preferia inverter a dinâmica, concedendo ao público o protagonismo e a iniciativa de inquirir, de questionar e de dialogar diretamente com ele. Essa metodologia, ao estimular um caráter profundamente dialógico e interativo, imprimia uma vivacidade ímpar a cada um de seus eventos, transformando meras apresentações em autênticos intercâmbios de ideias. A interação se tornava ainda mais memorável e inesperada quando, em um clímax particular de alguns desses encontros, Verissimo decidia que era o momento de cessar o fluxo de palavras. Então, com um gesto calculado, ele retirava de sua caixa o saxofone e, sem aviso prévio, presenteava a todos com um show improvisado de jazz, adicionando uma dimensão musical e surpreendente que apenas sublinhava sua natureza artística multifacetada e sua habilidade de conectar-se com as pessoas de maneiras que transcendiam a mera verbalização.

A escrita de Luis Fernando Verissimo possuía uma peculiaridade descrita por Frei Betto como a de “quem bebe café sem açúcar”. Essa metáfora evocava a imagem de um gole rápido, de uma bebida quente e, ocasionalmente, amarga, mas sempre pertinentemente direta e impactante. Seu humor político, em particular, desviava-se de quaisquer parâmetros proselitistas, evitando alinhamentos superficiais ou engajamentos puramente ideológicos. Em vez disso, caracterizava-se por sua acidez implacável e por um poder contundente de crítica, manifestando-se tanto nos textos quanto nas charges. Essa expressão, banhada por uma inteligência aguda e perspicaz, era capaz de esmiuçar a realidade com um bisturi afiado, sem nunca cair na obviedade ou na mera provocação gratuita, elevando-o a um patamar de um observador perspicaz das nuances do poder e da sociedade. Sua habilidade de comunicar verdades complexas com tamanha concisão e pungência tornava sua obra inesquecível e atemporal.

Frei Betto Detalha A Essência de Luis Fernando Verissimo como Chronicista e Retratista do Brasil Profundo - Imagem do artigo original

Imagem: www1.folha.uol.com.br

Luis Fernando Verissimo se revelava muito mais do que um mero cronista de fatos corriqueiros ou de aspectos restritos ao panorama nacional brasileiro. Ele se dedicava a “radiografar” a intrínseca condição humana em sua totalidade. Os personagens icônicos que emergiam de sua fértil imaginação eram, em si, espelhos fiéis e representações arquetípicas. De figuras como Ed Mort, o detetive particular trapalhão cujas desventuras serviam para expor as comédias da ineficácia e da boa intenção desastrosa, ao “Analista de Bagé”, com seu olhar agudo e irreverente sobre a psicologia e as neuroses regionais. Da “Velhinha de Taubaté”, cuja ingenuidade beirava o absurdo, mas revelava as credulidades latentes, às “Cobras”, seres cínicos e astutos que metaforizavam as ironias do convívio social, e a “Família Brasil”, microcosmo das dinâmicas sociais e culturais. Sem esquecer de “Dora Avante”, que desnudava as complexidades femininas em tempos de mudanças. Todos esses seres de papel e tinta eram criações que não apenas expressavam, mas espelhavam nossas facetas mais recônditas, as mais ocultas de nossa psique, aquelas que eram simultaneamente ridículas em sua banalidade e profundamente verdadeiras em sua autenticidade.

A riqueza da produção de Verissimo consolidava-o como um “gênio da banalidade”, uma qualificação que Frei Betto não hesita em considerar um elogio superlativo. Esta designação se dirigia a um artista que transcendeu as definições convencionais, pois tocava, com maestria incomparável, muito mais do que os hipotéticos sete instrumentos tradicionais da criatividade. Ele foi, em sua essência, um polímata da expressão humana, navegando com fluidez e brilhantismo em múltiplos mares criativos: atuou como um escritor prolifico, um humorista de observação ímpar, um cartunista com um traço singular, um tradutor perspicaz, um roteirista que construía narrativas visuais, um dramaturgo que compreendia a dinâmica dos palcos e um romancista que forjava universos. Sua vasta experiência abarcou ainda o campo da publicidade, onde aplicava sua sagacidade na criação de mensagens impactantes, e a desafiadora função de revisor de jornal, atividade que exige precisão e rigor com a palavra, confirmando a versatilidade inquestionável de seu talento.

Dentro de suas inúmeras habilidades, Luis Fernando Verissimo dominava a arte da dissimulação mais convincente. Sua capacidade de transformar o corriqueiro em algo grandioso era extraordinária. Ao descrever, por exemplo, a pequena e trivial discussão entre um casal pelo controle remoto da televisão, Verissimo elevava o conflito doméstico a tal ponto que a narrativa soava como se ele estivesse recontando a monumental Guerra de Troia, com todos os seus dramas, heróis e perdas. Da mesma forma, sua caneta era capaz de dar vida e cores a eventos mundanos. Ele podia discorrer sobre um jantar insosso, destituído de sabor e graça, com a mesma minúcia, grandiosidade e devoção artística com que alguém descreveria os traços e os afrescos que ornamentam o teto da Capela Sistina, emprestando significância ao que parecia desprovido dela. E o resultado mais notável de toda essa orquestração narrativa era a reação inevitável do público: Verissimo fazia rir. E não se tratava de um riso superficial ou passageiro, mas um riso genuíno, aquele que brota da alma, que leva o indivíduo a rir de si mesmo, a reconhecer-se nas entrelinhas e a gargalhar tão intensamente que, por vezes, a própria razão do riso parecia perder-se em meio à pura catarse. Em plena ditadura, num universo onde o riso podia ser uma forma sutil de resistência, a opção estética do riso verissimiano era, de fato, um imperativo vital, uma forma de sobreviver à dureza da realidade imposta.

Para Verissimo, a matéria-prima para sua produção não dependia da ocorrência de grandes eventos ou de feitos extraordinários. A genialidade de sua observação encontrava inspiração em episódios prosaicos da vida cotidiana. Bastava-lhe um espirro inoportuno em meio a um silêncio eloquente, o tédio e a imprevisibilidade de um engarrafamento prolongado na cidade grande, ou mesmo o achado de um pedaço de queijo inadvertidamente esquecido na geladeira por dias, e, magicamente, a cena transformava-se em uma crônica com um sabor todo especial. A genialidade intrínseca a Luis Fernando residia em sua acuidade em perceber que o dia a dia não era meramente um encadeamento de rotinas, mas sim um vasto palco onde todos os indivíduos atuavam, muitas vezes de forma improvisada, sem ensaios prévios. E, nesse palco da existência, o riso se manifestava como o aplauso mais espontâneo e involuntário, nascido da genuína e, por vezes, dolorosa, mas libertadora, autoconsciência de quem reconhece a própria trapalhada, a própria imperfeição e o caráter cômico inerente à condição humana.

É compreensível, portanto, que nos concorrências de lançamentos de livros de Luis Fernando Verissimo, talvez o desejo mais intrínseco e irrealizável de seus leitores fosse, em vez do usual e desejado autógrafo em suas obras, o anseio por um presente singular: a cobiçada “receita da felicidade em pílulas”. Essa aspiração brotava de uma intuição coletiva e profunda. No fundo, todos os que o liam ou o encontravam suspeitavam, com uma dose de admiração e carinho, que o artista guardava discretamente em seu bolso, como um tesouro pessoal, a fórmula descomplicada e milagrosa que ensinava a rir das adversidades e das tragédias que nos espreitavam antes que estas mesmas desgraças pudessem rir de nós. Era uma esperança por uma espécie de antídoto humorístico contra as agruras da existência.

Seria um equívoco reduzir a complexidade de Luis Fernando Verissimo à imagem de um mero comediante portador de um manual de erudição. Sua genialidade transcendia o cômico óbvio. Verissimo carregava em si a distinção de uma “melancolia elegante”, característica que adorna apenas os humoristas mais autênticos e profundos. Ele detinha, como poucos, a clareza e a sagacidade de compreender que a ironia, longe de ser apenas uma ferramenta retórica, é, na verdade, uma irmã íntima da tristeza. Nesse contexto, o riso, em sua manifestação mais sutil, por vezes funcionava como uma forma oblíqua e delicada de comunicar que certas situações da vida não mereciam o pranto, mas sim o reconhecimento de sua absurda dramaticidade através da leveza do escárnio. O verdadeiro segredo por trás de seu estilo inimitável era a capacidade de rir e de fazer os outros rirem com uma poesia intrínseca à sua narrativa, de zombar das contradições humanas com uma delicadeza quase etérea, e de arremessar críticas afiadas – pedras – com uma mão graciosamente enluvada, preservando a elegância mesmo na pungência de sua crítica.

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Frei Betto conclui suas reflexões expressando um arrependimento carregado de afeição: “E pensar que o encontrei tantas vezes e nunca lhe perguntei como conseguia manter tamanha leveza naquele corpanzil.” Essa inquietação sobre a origem de uma serenidade tão notável em uma figura fisicamente imponente talvez contivesse uma resposta, simples e profunda, que perpassava toda a obra e a persona de Luis Fernando Verissimo: a vida, em sua essência e complexidade, só ganha verdadeiramente graça se a pessoa for capaz de aprender a rir de si mesma com a mesma seriedade e profundidade com que lida com os aspectos mais sombrios da existência, reconhecendo que, sem humor, a vida se esvazia de significado.

Com informações de Folha de S.Paulo

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