As fraudes em cartórios no Rio de Janeiro têm exposto vulnerabilidades significativas no sistema notarial do estado, resultando em sérios prejuízos financeiros e emocionais para cidadãos comuns. Recentemente, investigações revelaram um esquema complexo que envolve documentos forjados, reconhecimento de firmas inexistentes e desvio de patrimônios, apontando para falhas gerenciais e condutas negligentes por parte de algumas serventias. Objetos simples como papéis, selos e carimbos, nas mãos erradas, foram capazes de arruinar a vida de diversas vítimas, levantando um alerta sobre a segurança jurídica de atos corriqueiros.
A repercussão dos casos investigados pelo Fantástico mostra a extensão dos problemas, afetando bens variados, desde jazigos em cemitérios até valores de precatórios e patrimônios adquiridos em longas uniões. A indignação é uma constante entre os que sofreram com as manipulações, sentindo-se impotentes diante da perda. A situação levou as autoridades, como a Corregedoria do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, a aplicar punições e revisar procedimentos, buscando conter a proliferação de irregularidades que minam a confiança da população nos serviços cartorários.
Fraudes em Cartórios do Rio: Desvios e Documentos Falsos
Um dos relatos mais emblemáticos dessas irregularidades ocorreu no cemitério São João Batista, localizado na zona sul carioca, há duas décadas. Maria Ana Neves, publicitária, descobriu, para sua consternação, que a sepultura de sua família estava desocupada e os restos mortais de seus pais e irmã haviam sumido. A investigação subsequente revelou que o jazigo foi comercializado por R$ 60 mil por meio de uma procuração fraudulentamente obtida. A perícia da Polícia Civil confirmou que a assinatura no documento era falsa. O 16º Ofício de Notas foi a serventia responsável por reconhecer, erroneamente, a autenticidade da firma. Em decorrência do ocorrido, a tabeliã Olívia Motta Scisinio foi inicialmente suspensa por 30 dias pela Corregedoria do Tribunal de Justiça, pena que, após recurso, foi convertida em multa pecuniária. A Justiça, por sua vez, anulou a procuração falsificada, restabelecendo a posse do jazigo para Maria Ana Neves, embora o paradeiro dos restos mortais de sua família permaneça um mistério.
Outro caso chocante envolveu Alcebíades Paes Garcia, conhecido como Bid, assassinado em 2020. Surpreendentemente, sua assinatura teria sido reconhecida em cartório meses após seu falecimento. O 12º Ofício de Notas autenticou sua firma quatro vezes, e o 15º Ofício de Notas o fez em nove ocasiões depois de sua morte. Um desses documentos adulterados viabilizou a comercialização de uma moto aquática pertencente ao bicheiro. Foi o cartório marítimo que identificou a falsificação e acionou a polícia. Segundo o delegado Marcos Buss, a Polícia Civil busca determinar as circunstâncias, a motivação e os envolvidos nesses atos criminosos. Em resposta às falhas, os tabeliães Pedro Castilho, do 12º Ofício, e Fernanda Leitão, do 15º, foram suspensos pela Corregedoria, que enfatizou a negligência na administração de suas unidades. A punição de Pedro Castilho, contudo, foi suspensa por decisão liminar do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Paulo Camargo, consultor de compliance do 15º Ofício, reconheceu que, apesar dos protocolos de segurança, a instituição está suscetível a falhas humanas e à atuação criminosa, sublinhando que a autenticidade de uma assinatura é crucial para a validade dos negócios jurídicos na sociedade.
Em um desdobramento que ganhou visibilidade, Raquel Otila, que reside em Portugal, acionou as autoridades policiais para investigar uma suposta fraude. Ela nega ter assinado cinco documentos, incluindo quatro procurações e um contrato, após o término de seu casamento de 16 anos com o ex-senador Ney Suassuna. A empresária apresentou à Polícia Civil uma certificação da Polícia Federal, comprovando sua ausência do território brasileiro nas datas das alegadas assinaturas, entre maio de 2020 e novembro de 2021. Recentemente, o Ministério Público formalizou uma denúncia contra uma funcionária do cartório e Ney Suassuna por falsificação documental, mas a Justiça a recusou por ausência de provas; o MP tem a prerrogativa de recorrer da decisão. A apuração da Corregedoria Geral da Justiça, contudo, prossegue em relação à serventia envolvida. Ney Suassuna refutou as acusações em seu depoimento à polícia e declarou que irá processar Raquel Otila por denunciação caluniosa. A tabeliã Fernanda Leitão também enfrenta processo disciplinar por possível falha gerencial no 15º Ofício. Paulo Camargo, seu advogado, defende a inviabilidade de um tabelião supervisionar todos os atos dos funcionários ininterruptamente.
Uma idosa de 82 anos foi mais uma vítima das irregularidades. Durante o período pandêmico, ela recebeu um comunicado da Receita Federal indicando que havia caído na malha fina por não ter declarado um montante de um milhão de reais. A família, ao investigar, descobriu que o valor era referente a um precatório — uma ordem judicial para quitação de dívidas governamentais —, que jamais havia chegado à conta da beneficiária. O cerne do golpe foi uma procuração forjada que supostamente autorizava a advogada Laís Vale a sacar a quantia. A assinatura na procuração foi autenticada no 15º Ofício de Notas. Após a denúncia da família à polícia, Laís Vale foi alvo de investigação, tendo seu sigilo fiscal quebrado. Extratos bancários revelaram a transferência do valor para sua conta, seguida do repasse de mais de R$ 600 mil para outra conta no dia seguinte. Laís Vale alegou desconhecimento sobre a falsidade da procuração, atribuindo a solicitação de recebimento do dinheiro a Daniel Solis, que trabalhava no escritório responsável pelo processo, sob a crença de que seriam honorários dele. O depoimento de Laís foi agendado, enquanto Daniel Solis ainda não prestou esclarecimentos.
A legislação brasileira estabelece que os tabeliães são pessoalmente responsáveis pelos atos executados por seus substitutos e escreventes. Para essas infrações, a lei prevê quatro tipos de penalidades: repreensão, multa, suspensão que pode durar até 120 dias, e a perda definitiva da delegação, sendo esta a punição mais severa. Um exemplo dessa última sanção ocorreu com Gilberto Gonçalves Augusto, que respondia pelo 4º Ofício de Justiça de São Gonçalo e, posteriormente, assumiu outra unidade. Ele foi acusado de desviar recursos públicos que deveriam ser destinados ao fundo do Tribunal de Justiça. Sua pena de perda da delegação foi mantida pela Corregedoria nesta semana, embora ainda haja possibilidade de recurso.

Imagem: cartórios no Rio de Janeiro via g1.globo.com
Reforçando a necessidade de uma fiscalização rigorosa, a tabeliã Fernanda Leitão recebeu outra suspensão de 75 dias. Esta nova penalidade ocorreu após a polícia localizar selos de seu cartório em um estabelecimento suspeito de comercializar veículos furtados com documentação falsificada. A defesa da tabeliã informou que recorrerá de todas as punições divulgadas. Apesar das ocorrências, o 15º Ofício de Notas é reconhecido como um dos maiores cartórios do Brasil, com cerca de seis milhões de atos nos últimos cinco anos e um índice de questionamento inferior a 0,01%, segundo Paulo Camargo, que mencionou um reforço nos procedimentos de segurança, incluindo trocas de senha e autenticação de dois fatores. Em uma resposta direta aos recentes eventos e visando fortalecer a integridade dos atos notariais, a Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro publicou novas regulamentações. Agora, os cartórios serão obrigados a registrar fotografias ou coletar impressões digitais durante o processo de abertura de firma. Além disso, a prática de atos como escrituras, procurações públicas, atas notariais e testamentos deverá ser integralmente gravada em vídeo.
Para as vítimas dessas fraudulentas operações, a perspectiva de um encerramento justo ainda parece distante. A luta por reparação e o anseio pela verdade são evidentes. Raquel Otila e o filho da idosa afetada pelo golpe do precatório expressaram o desejo de que a justiça seja feita e a impunidade seja evitada a todo custo. Enquanto os processos tramitam, a confiança em mecanismos de segurança se torna fundamental, evidenciando o papel de entidades fiscalizadoras.
Em posicionamento oficial, a Corregedoria-Geral da Justiça do Rio de Janeiro reiterou seu empenho em promover a integridade e a clareza na supervisão, garantindo que todas as suspeitas de irregularidades e desvios de conduta são averiguadas com o máximo de seriedade, rigor técnico e agilidade. Por sua vez, o Colégio Notarial do Brasil, que abrange mais de oito mil tabelionatos no país, defendeu a implementação urgente de uma integração abrangente das bases de dados dos órgãos de identificação civil. Essa medida, conforme a entidade, robusteceria os mecanismos de verificação de identidade e aprimoraria a segurança jurídica na condução dos atos. A Ordem dos Advogados do Brasil no Rio de Janeiro (OAB-RJ) informou ter aberto um processo ético-disciplinar para examinar a conduta da advogada Laís Vale e assegurou que novos fatos relacionados a Daniel Solis serão igualmente apurados. No que diz respeito à comercialização irregular da sepultura, o escritório que representa a Santa Casa de Misericórdia, responsável pelo jazigo na ocasião da falsificação, não forneceu retorno sobre o caso.
Confira também: crédito imobiliário
Esses relatos evidenciam a necessidade de vigilância constante e modernização dos sistemas para coibir práticas ilícitas que atingem a credibilidade de instituições públicas essenciais. Para continuar acompanhando os desdobramentos sobre investigações criminais e análises sobre a segurança jurídica no país, siga explorando as matérias da nossa editoria de Cidades.
Crédito da imagem: Fantástico Cartórios do Rio




