Falsas Confissões: Entenda Por Que Elas Ocorrem

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As falsas confissões representam um dilema complexo e preocupante no sistema de justiça criminal, frequentemente resultado de métodos de interrogatório que geram pressão excessiva sobre os suspeitos. A questão voltou ao centro do debate público com a recente inocentação de Francisco Mairlon Barros Aguiar, que passou quase 15 anos encarcerado por um triplo homicídio na 113 Sul. A condenação original, em 2010, teve como pilar uma confissão obtida sob notável pressão em sede policial, quando o jovem tinha 22 anos. A análise dos interrogatórios de Francisco Mairlon revelou um cenário de trocas frequentes de investigadores, menções explícitas às possíveis implicações da prisão, comentários sobre a situação familiar dos acusados e discussões aprofundadas sobre a gravidade das penas. Expressões intimidatórias, como “você sabe sim por que está aqui”, sublinhavam o tom de autoridade e a atmosfera de coerção, conforme destacou a advogada Lívia Moscatelli, mestre em direito penal pela Universidade de Coimbra.

De acordo com Dora Cavalcanti, advogada de Mairlon e fundadora do Innocence Project Brasil, abordagens coercitivas podem levar indivíduos a ceder e assumir crimes não cometidos. O desgaste psicológico gerado por exaustão, privação de sono e má alimentação, comum em interrogatórios prolongados, aumenta consideravelmente a probabilidade de uma falsa confissão. Este cenário alarmante levanta a seguinte questão:

Falsas Confissões: Entenda Por Que Elas Ocorrem

Após um crime ser denunciado, a Polícia Civil inicia a investigação com coleta de depoimentos, provas e dados para identificar o responsável. Métodos de coleta variam, e a condução de interrogatórios pode influenciar drasticamente o curso da investigação. Um modelo historicamente influente, embora controverso, é o interrogatório acusatório, popularizado em produções de Hollywood e conhecido como Método Reid, desenvolvido nos Estados Unidos por volta dos anos 1940. Este método é criticado por substituir a tortura física pela pressão psicológica, empregando manipulação de fatos, persuasão e coerção, conforme as advogadas Luiza Ferreira e Lívia Moscatelli. Tal abordagem pode precipitar erros judiciais graves, culminando em confissões indevidas, sobretudo em contextos envolvendo jovens, indivíduos com transtornos mentais ou sob influência de substâncias. A principal ressalva ao Método Reid é que ele prioriza a obtenção da confissão a qualquer custo, em detrimento da busca pela verdade, comprometendo a integridade da investigação e violando garantias constitucionais.

O Método Reid opera através de várias táticas específicas: confrontação direta e impositiva, com perguntas sugestivas e rápidas; ausência de acompanhamento por advogado; minimização das consequências da confissão, prometendo redução de pena ou libertação; apresentação de alternativas para o crime, oferecendo versões mais brandas; interrupção de negações; retenção ininterrupta da atenção do suspeito; e a manutenção do suspeito em confinamento solitário por longos períodos, sem acesso a sono, alimentação e hidratação. Uma vez obtida, a confissão é prontamente registrada por escrito para dificultar retratações. No recente julgamento de Francisco Mairlon no Superior Tribunal de Justiça (STJ), os ministros criticaram veementemente os interrogatórios incisivos praticados no Brasil. O ministro Rogério Schietti apontou que tais métodos permitem e até incentivam a polícia a usar artifícios, estratagemas, incentivos, chantagens e ameaças, o que aumenta o risco de condenações injustas.

As repercussões psicológicas para aqueles que vivenciam interrogatórios coercitivos podem ser devastadoras. A psicóloga forense Elisa Krüger observa que as consequências incluem quadros depressivos e ansiosos, variando conforme a estrutura psíquica do indivíduo, o motivo da falsa confissão, a natureza do crime, a reação social e a penalidade imposta. Krüger explica que a confissão é um produto de interações situacionais, moldado por vulnerabilidades do interrogado (idade, intelecto, saúde mental) e táticas do investigador (estresse, fadiga, sugestões, medo, vergonha). Ou seja, não se trata meramente de “verdade ou mentira”, mas de um complexo intercâmbio de fatores.

Em resposta aos questionamentos, o Ministério da Justiça esclareceu que não adota nem recomenda qualquer método específico de interrogatório, incluindo o Método Reid, deixando a formação policial a cargo de cada estado. No Distrito Federal, a Polícia Civil enfatizou que seu curso de “Entrevista e Interrogatório” integra conhecimentos de psicologia, comunicação, neurociência, criminologia, direito processual penal e direitos humanos, com foco na eliminação de qualquer coerção. A prática, no entanto, persiste como um problema sério.

Apesar dessas declarações, o cenário das falsas confissões e condenações equivocadas não é uma exceção no Brasil. Uma pesquisa de Michel Misse, realizada em 2010, revelou que, em 80% das investigações policiais em grandes centros urbanos como Brasília, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Recife e Belo Horizonte, a confissão era o principal direcionador para a descoberta da autoria. Luiza Ferreira, do Innocence Project, reitera que no Brasil a confissão é frequentemente tratada como “a rainha das provas”, tanto na investigação quanto na fase judicial, recebendo um peso desproporcional. Esse enfoque estimula autoridades policiais a seguir um caminho mais fácil na conclusão de investigações, priorizando depoimentos orais em detrimento de provas técnicas, que são, em muitos casos, “imbatíveis”.

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Imagem: g1.globo.com

O ministro do STJ, Rogério Schietti, critica que o sistema criminal brasileiro tem aceitado depoimentos como base suficiente para condenações, muitas vezes obtidos por “meios viciados”. Essa “verdadeira obsessão” pelas confissões, segundo o ministro, leva à utilização de expedientes que desvirtuam o conceito de civilidade e de devido processo legal. A basear uma condenação apenas na confissão policial, o sistema viola dois artigos do Código de Processo Penal: o Artigo 155, que impede que a decisão judicial seja baseada exclusivamente em elementos colhidos na investigação, e o Artigo 197, que estabelece que a confissão não é prova absoluta e deve ser verificada com outras provas. Além disso, fere o Artigo 5º da Constituição Federal, que garante o direito ao contraditório e à ampla defesa, assegurando que o acusado conheça as acusações, apresente sua versão e produza provas para sua defesa.

Em contrapartida, o Ministério Público do DF, que cogita recorrer da decisão do STJ no caso Mairlon, defende a validade dos depoimentos, alegando que a confissão de Francisco Mairlon foi integralmente registrada em áudio e vídeo, com a presença de um advogado regularmente inscrito na OAB, e que não foi constatada qualquer violação à integridade física ou psicológica do investigado. Enquanto no Brasil há uma lacuna de dados sobre a reversão de condenações baseadas em falsas confissões — o Ministério da Justiça, o Conselho Nacional de Justiça e a Defensoria Pública do DF afirmaram não possuir essas informações — nos Estados Unidos, o National Registry of Exonerations documentou, em 2024, 147 reversões, com uma média de 13 anos de detenção, sendo que 22 delas envolveram confissões falsas.

Especialistas sugerem alternativas para evitar erros policiais e jurídicos, defendendo a regulamentação de métodos de interrogatório éticos e eficazes que busquem dados confiáveis sem coerção. Internacionalmente, três diretrizes se destacam para substituir táticas coercitivas: Peace, do Reino Unido, foca em planejamento, construção de confiança e relato livre; os Princípios Méndez, da ONU, abrangem práticas não violentas e proteção de grupos vulneráveis; e Rapport, que visa estabelecer uma relação de confiança e respeito mútuo. A advogada Luiza Ferreira sugere a criação de um método específico para o Brasil, desenvolvido em conjunto com o Conselho Nacional de Justiça, ressaltando a fundamentalidade da presunção de inocência desde o início da investigação. É imperativo tratar todos os acusados como inocentes, independentemente da gravidade do crime, para evitar a repetição de casos como o de Francisco Mairlon e garantir a justiça. Este princípio jurídico deve guiar todo o processo penal para proteger os direitos individuais e a integridade do sistema judiciário.

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Este caso emblemático de falsa confissão ressalta a urgência de uma revisão crítica nas práticas investigativas e judiciais do país, buscando garantir a aderência aos direitos humanos e aprimorar a obtenção de provas. Continue acompanhando as análises e notícias sobre justiça criminal e direitos fundamentais em nossa editoria de Análises para se manter informado.

Crédito da imagem: Reprodução/TV Globo

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