Em meio ao fluxo constante de informações e à intensificação dos estímulos sensoriais que caracterizam o mundo contemporâneo, a exposição “Construção no Vento” se destaca na cena cultural paulistana como um convite à introspecção e à valorização do não-dito e do não-visto. A mostra, resultado de uma colaboração estratégica entre as galerias Flexa e Claraboia, convida o público a um mergulho em 59 obras de alguns dos nomes mais emblemáticos da arte brasileira e internacional. Artistas renomados como Tunga, Hélio Oiticica, Cildo Meireles, Alfredo Volpi e Iole de Freitas – que inclusive criou uma escultura inédita para a ocasião – oferecem múltiplas perspectivas sobre a contenção estética e a sutil expressividade dos gestos.
A iniciativa curatorial, liderada por Luisa Duarte, explora a densidade poética do vazio e a profundidade do silêncio, contrapondo-os à efusividade e à constante demanda por visibilidade da atualidade, especialmente amplificada pelas redes sociais. As obras selecionadas compartilham uma abordagem minimalista, manifestada em grande parte pela proeminência da cor branca, um elemento visual que, embora frequentemente associado à pureza e à assepsia, é ressignificado dentro da exposição para abrigar a efervescência do desejo e a potência da emoção.
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A concepção da curadora desafia a percepção de que o minimalismo necessariamente conduz à frieza ou à neutralidade. Pelo contrário, Duarte articulou um percurso que inclui artistas capazes de infundir uma profunda dimensão do corpo e do desejo nas suas criações, utilizando a contenção formal como uma ferramenta para amplificar a intensidade das experiências propostas. Um exemplo contundente dessa estratégia é a obra de Adriana Varejão, “Parede com Incisões a La Fontana (Istambul)”. A pintura cativa o olhar com a frieza arquitetônica de azulejos brancos que, aparentemente neutros e asseptizados, escondem um turbilhão de emoções violentas. Os cortes que atravessam a superfície não revelam materiais comuns de construção, mas sim a impactante visualização de carne viva e sangrenta. A imagem transmite a poderosa metáfora de que as estruturas mais ordenadas e pristinas da existência humana e social podem, em sua essência, camuflar um labirinto de raiva, anseio e brutalidade latente. A tela, assim, transcende sua materialidade para liberar subitamente uma profusão de forças viscerais, revelando a pulsão de vida que pode permanecer contida sob a superfície de uma pureza enganadora.
Essa capacidade de revelar o que se oculta é um fio condutor que perpassa diversas peças da exposição. A obra de Adriana Varejão estabelece um elo com o propósito mais amplo de “Construção no Vento”, ao evidenciar como a arte pode escancarar a vitalidade e a complexidade emocional subjacentes à ordem superficial. O trabalho não apenas choca pelo contraste, mas também convida à reflexão sobre as camadas de controle e liberação que coexistem na experiência humana. A estética do impacto e da revelação bruta dialoga com a proposta da curadora de desmistificar a assepsia do minimalismo, trazendo para o primeiro plano a materialidade e a subjetividade do corpo.
Outro artista central na exploração da intimidade e do desejo na exposição é Leonilson, conhecido pela singularidade de sua produção, que exibe um profundo caráter confessional. As obras do artista são tão intensamente pessoais que provocam no observador um desejo quase irresistível de se aproximar, como se estivessem a poucos centímetros de distância, tentando decifrar um segredo íntimo sussurrado. É uma forma de comunicação sutil e direta, uma “relação de um para um”, como descreve Luisa Duarte, onde a obra se torna um confidente e o público, um receptor privilegiado de uma mensagem silenciosa e carregada de subjetividade.
Essa poética do sussurro é habilmente exemplificada em trabalhos como “Oceano, Aceita-me?”. Nesta delicada composição, Leonilson empregou uma série de pequenos traços e pontos minuciosos sobre um pedaço de papel, configurando a representação de dois rios que serpenteiam até desaguar majestosamente no mar. A sutileza dos detalhes, a escala quase minúscula da criação, e a complexidade do título evocam uma sensação de busca, de entrega, de um diálogo com forças maiores, talvez consigo mesmo. A leveza do desenho e a profundidade de seu simbolismo convidam o olhar atento a desvendar a vulnerabilidade e a intensidade da voz interior do artista. A técnica de pontilhismo, aliada à narrativa subjacente, sugere uma contemplação prolongada, diferenciando-se da velocidade exigida pela arte de consumo de massa.
Em outra notável peça, o artista transpõe sua confessionalidade para o universo da bordadura em tecido. No segmento superior de uma superfície branca, Leonilson elabora a frase “Léo não pode mudar o mundo, porque os deuses não admitem qualquer competição com eles”. Este fragmento revela um tom de resignação mesclado a uma melancolia pessoal, talvez refletindo a percepção do artista sobre suas próprias limitações diante das imponentes forças do destino ou da existência. No terço inferior da mesma obra, surgem frases independentes e poeticamente concatenadas: “o deserto”, “o oceano”, “os rapazes” e “as poesias”. A justaposição destas palavras-chave em um plano monocromático evoca uma sensação de fragmentação, mas também de uma paisagem interna vasta, construída a partir de suas experiências mais íntimas e paixões mais profundas. Assim, a superfície do tecido transforma-se em um autêntico diário visual, um repositório onde Leonilson cuidadosamente registrava suas narrativas de amores, paixões, mas também de frustrações e desilusões.
A curadora destaca que, através dessa técnica, Leonilson inverte a função convencional da cor branca na arte. Enquanto a monocromia em branco é comumente associada à assepsia, à pureza e a uma espécie de afastamento do mundo tangível, o artista mineiro logrou inserir nesta cor uma dimensão intensa de desejo e erotismo, carregando-a de sensualidade e vitalidade. Ele demonstra que o branco não precisa ser neutro, mas pode ser um palco para as emoções mais viscerais e as experiências mais pessoais.
O branco, de fato, constitui um pilar estético fundamental também na produção de Mira Schendel, cuja presença na mostra é assinalada como um dos pontos altos. Conforme elucida a curadora Luisa Duarte, a própria estrutura conceitual de “Construção no Vento” encontrou sua inspiração em um perspicaz ensaio de Nuno Ramos sobre a renomada artista suíço-brasileira. No referido texto, Ramos descreve a arte de Mira como autênticas “construções no vento”, uma designação que capta com precisão a essência efêmera, porém impactante, de suas obras. A maestria de Schendel reside em sua singular aptidão para “ativar os vazios”, para engendrar uma “potência gigantesca a partir de um gesto mínimo”. Essa concepção de força contida na delicadeza se tornou o fulcro da exposição, ressoando por entre as múltiplas linguagens e proposições dos demais artistas.

Imagem: www1.folha.uol.com.br
Na mostra, Mira Schendel está representada por quatro trabalhos distintos, todos caracterizados pela frugalidade, pelo laconismo expressivo e por uma qualificação quase evanescente, em que o limite entre o presente e o desvanecente é continuamente explorado. Em “Símbolos”, a artista brinca com a gravidade visual, apresentando letras e números que parecem flutuar livremente sobre uma folha de papel. A composição forma uma espécie de constelação de elementos gráficos, onde a ênfase é intencionalmente deslocada: o que se destaca não é a intensidade do preto da tinta utilizada, mas a luminosidade, a resiliência e a própria presença do branco do papel, que serve tanto de fundo quanto de elemento ativo da obra. É o vazio que define a forma.
Esta dinâmica sutil de interação entre a forma e o não-forma reaparece em “Objeto Gráfico”. Neste trabalho, uma única folha de papel é o suporte para traços tão delicados, tão minimamente elaborados, que sua existência beira a transparência e a impermanência. Os contornos quase fantasmagóricos convidam o observador a uma atenção ampliada, um convite ao detalhe que quase escapa, incitando uma contemplação demorada em um mundo que exige respostas rápidas e estímulos fortes. Tais trabalhos de Mira Schendel funcionam, de acordo com a curadora, como um “contraponto incisivo” ao ambiente do mundo contemporâneo. Em uma era de “hipervisibilidade”, de “hiperestimulação sensorial” e de uma “hiperocupação mental”, as obras de Schendel oferecem um respiro, uma desaceleração. Em sua arte, o conceito de “menos é mais” atinge um novo patamar, questionando a saturação e reabilitando o valor do espaço não preenchido.
A discussão sobre a economia de gestos e formas encontra outra expressão eloquente na obra de Fernanda Gomes, presente na exposição. Em um de seus trabalhos, a artista apresenta um pequeno bloco de madeira branco, suspenso por um barbante, criando uma imagem que dialoga tanto com a fragilidade quanto com a contenção. Luisa Duarte sublinha a “relação muito fina” entre a obra de Gomes e a de Mira Schendel, especialmente no que tange à reverberação da ideia de “construção no vento”. Há uma dimensão ética marcante nos projetos de Fernanda Gomes. Ela explora aquilo que o mundo deixa, “trabalha com aquilo que sobra”, e se recusa a “botar ainda mais coisa no mundo”. Esta perspectiva de economia material é uma manifestação direta da busca por um sentido e uma beleza no essencial, naquilo que não exige excessos, contrastando com a cultura do acúmulo e do consumo desenfreado. Sua arte é, assim, uma postura crítica e propositiva em relação à superabundância material.
Essa herança da simplicidade e da utilização de materiais modestos encontra um de seus maiores expoentes em Lygia Clark. A artista foi pioneira na desconstrução dos conceitos tradicionais da arte, valorizando itens cotidianos, que eram baratos e facilmente encontrados. Uma de suas obras presentes na exposição é um testemunho poderoso dessa filosofia: uma pedra, aparentemente comum, colocada sobre uma sacola de plástico que está cheia de ar. Esta justaposição é profundamente significativa. O peso, a solidez e a permanência da rocha são postos em oposição direta à natureza leve, volátil e efêmera do ar contido no plástico. Essa obra instaura um diálogo profundo e simbólico com o próprio título da exposição, “Construção no Vento”, tecendo pontes entre o palpável e o invisível, o eterno e o transitório.
A concepção do título da mostra é, em si, uma provocação intelectual. A curadora, Luisa Duarte, elabora sobre essa dualidade: “Construção no vento é uma contradição bonita.” Quando se pensa em construção, evoca-se a ideia de algo firme, estável e duradouro, edificado para resistir ao tempo. Já o vento, por outro lado, representa o invisível que mobiliza, o movimento constante, a força impalpável que molda paisagens sem se deixar apreender fisicamente. “Essa exposição é muito sobre aquilo que não se vê, e no entanto produz efeito”, complementa Duarte. A mostra incita a reflexão sobre o que está subjacente, as forças invisíveis, as sensações silenciosas e os vazios que carregam em si uma potente capacidade de transformar e ressoar. O objetivo é questionar as percepções tradicionais e abrir espaço para a potência do sutil.
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A mostra “Construção no Vento” se solidifica como uma oportunidade crucial para uma reflexão aprofundada sobre a essencialidade da quietude em uma sociedade freneticamente impulsionada pela cacofonia incessante das redes sociais. “Fala-se muito, mas fala-se com pouca relevância. Todo mundo está falando, mas ninguém está se entendendo”, observa a curadora. Para ela, em tal contexto de superabundância de vozes e escassez de sentido, “atualmente, o silêncio adquiriu uma dimensão política”. Assim, a exposição emerge não apenas como um panorama artístico, mas como um manifesto em favor da pausa, da escuta e da contemplação ativa em um cenário de estímulos incessantes, convidando à valorização daquilo que é sutil, mas carregado de profundo significado. A exposição está disponível para visitação de segunda a sexta, das 10h às 19h, e aos sábados, das 11h às 15h, permanecendo em cartaz até 4 de outubro na galeria Claraboia, situada na Alameda Gabriel Monteiro da Silva, 2906, no bairro de Pinheiros, em São Paulo. O acesso é livre e a classificação indicativa permite a entrada de todos os públicos, sem restrições.
Com informações de Folha de S.Paulo
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