Uma nova perspectiva sobre a relação da escravidão com o cenário contemporâneo é o foco principal da exposição “Para além da escravidão: construindo a liberdade negra no mundo”, que marca a reabertura parcial do Museu Histórico Nacional. Após um período de reformas desde dezembro do ano anterior, o renomado museu reabre suas portas na próxima quinta-feira, 13 de fevereiro, para receber a aguardada mostra, fruto de uma curadoria colaborativa com instituições dos Estados Unidos, África do Sul, Senegal, Inglaterra e Bélgica.
A colaboração internacional foi fundamental para a concepção e a escolha dos itens que compõem o acervo expositivo. Conforme explicou à Agência Brasil a historiadora Keila Grinberg, curadora brasileira da exposição e professora da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), “Todo mundo participou da concepção e da circulação dos objetos que estarão expostos.” Essa abordagem integrada visa oferecer uma visão abrangente e multifacetada da temática.
Exposição Para Além da Escravidão reabre Museu Histórico
A iniciativa transcende a mera abordagem histórica da escravidão atlântica, propondo uma profunda reflexão sobre suas repercussões na sociedade atual. “É uma exposição sobre escravidão atlântica, global. Ela mostra primeiro como a escravidão é um fenômeno global e como ela envolveu todos os países do mundo Atlântico nos séculos 15 a 19, mas também mostra que a escravidão está muito ligada no momento presente. Daí o nome Para além da escravidão, pensando as conexões com o presente”, destacou Grinberg, ressaltando o elo entre o passado e as manifestações atuais do racismo e das desigualdades.
Com entrada gratuita, a exposição “Para além da escravidão: construindo a liberdade negra no mundo” estará acessível ao público até o dia 1º de março de 2026. A mostra desafia a percepção de que as consequências da escravidão são um resquício exclusivo do passado. Segundo a curadora, os visitantes terão a oportunidade de “aprender que as consequências da escravidão existem em vários lugares ao mesmo tempo”, enfatizando a complexidade e a ubiquidade dos impactos do fenômeno.
Um dos pontos centrais da exposição sobre escravidão é o destaque para as formas de resistência. Keila Grinberg sublinha a existência de uma vasta rede de resistência ao sistema escravagista e ao colonialismo em diversas nações, e a interconexão dessas lutas ao longo da história. O subtítulo da mostra, “construindo a liberdade negra no mundo”, materializa essa ideia ao incorporar elementos culturais significativos, como peças religiosas e instrumentos musicais, incluindo um atabaque originário do Haiti, simbolizando a rica herança e resiliência das culturas afro-atlânticas.
A narrativa expositiva não se restringe aos elementos do passado. Há uma seção dedicada às “questões contemporâneas”, onde o debate se aprofunda em temas como reparação, justiça ambiental e seus efeitos raciais, além da violência policial. Grinberg observa que, embora a escravidão tal qual existia historicamente não perdure, “as consequências, na forma do racismo, principalmente, continuam existindo”.
A meta é encorajar o discernimento das “estruturas e, também, a luta contra elas”. A mostra, apesar da dureza inerente ao tema, almeja empoderar o público, revelando as diversas experiências humanas na batalha contra o racismo e as possibilidades de superação. Para a curadora, é essencial que se compreenda a extensão dos problemas sociais para, então, vislumbrar e catalisar mudanças efetivas.
A estreia global da exposição “Para além da escravidão” ocorreu em dezembro de 2024, no prestigiado Museu Nacional de História e Cultura Afro-Americana, localizado em Washington, Estados Unidos. A partir do Museu Histórico Nacional, no Brasil, a itinerância da mostra prosseguirá para a Cidade do Cabo, na África do Sul; Dakar, no Senegal; e finalizará em Liverpool, na Inglaterra.
A coletânea inclui cerca de 100 artefatos, 250 imagens e 10 filmes, organizados em seis módulos temáticos. Esta estrutura permite que os visitantes explorem as múltiplas facetas da escravidão, desde suas origens globais até suas reverberações no presente. A valorização do patrimônio histórico nacional, como o que será exibido, é um pilar para a compreensão das fundações sociais do país, conforme apontam órgãos como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
Atividades Paralelas Complementam a Imersão
Além da exposição principal, o Museu Histórico Nacional e o Arquivo Nacional organizam uma série de atividades complementares para enriquecer a experiência dos visitantes. Um seminário internacional intitulado “Para além da escravidão: memória, justiça e reparação” acontecerá nos dias 13 e 14 de fevereiro, na sede do Arquivo Nacional, situada na Praça da República, no centro do Rio de Janeiro. Keila Grinberg também assina a curadoria deste evento, que promete aprofundar os debates sobre os legados e as demandas da escravidão.

Imagem: agenciabrasil.ebc.com.br
No Arquivo Nacional, outra exposição sobre escravidão será apresentada: “Senhora Liberdade: mulheres desafiam a escravidão”. Esta mostra, com curadoria igualmente de Keila Grinberg, exibirá documentos do acervo da instituição que narram as histórias de dez mulheres escravizadas que, no século XIX, buscaram justiça por via judicial contra seus senhores. “Nem todas ganharam a liberdade, mas todas tentaram. Isso é muito importante porque são histórias pouco conhecidas, de mulheres que desafiaram os senhores, a Justiça e foram atrás”, ressalta Grinberg. Esta exposição estará aberta de segunda a sexta-feira, gratuitamente, até o dia 30 de abril do próximo ano.
Um projeto de pesquisa intitulado “Conversas inacabadas”, realizado nos seis países colaboradores, será hospedado no Instituto Pretos Novos. Essa exposição paralela apresentará os resultados de entrevistas que abordam a percepção do racismo e a construção da consciência racial entre diferentes indivíduos. A ideia central é que as discussões promovidas “reverberam no presente”. A exposição no Instituto Pretos Novos estará disponível nos dias 14 e 15 de dezembro, proporcionando uma oportunidade única para reflexão sobre o tema.
O Simbolismo da Presença Brasileira
A escolha do Brasil como a primeira parada internacional da exposição escravidão “Para além da escravidão”, após sua estreia nos Estados Unidos, possui um simbolismo profundo, de acordo com Keila Grinberg. Ela destaca a forte tradição brasileira nos estudos desse campo, reconhecendo “o respeito e a importância internacional que os estudos no Brasil têm. É muito importante porque é uma área em que o Brasil se destaca enormemente”.
O peso histórico do Brasil na escravidão transatlântica é inegável: o país recebeu aproximadamente 45% dos africanos escravizados, quase metade do total que chegou às Américas, em contraste com os 5% destinados aos Estados Unidos. Grinberg enfatica que “a escala e a centralidade da escravidão no Brasil são sem precedentes. Por isso, a gente não entende nada da história do Brasil se não entender a escravidão. Ela é elemento central para se entender a história do Brasil”.
Em trezentos anos, cerca de 12 milhões de pessoas foram raptadas, vendidas e escravizadas, originárias das regiões da África Central (onde hoje estão o Congo e Angola) e da África Ocidental (Senegal, Benim e Nigéria). A exposição busca oferecer ao público a dimensão exata e a profundidade desse período trágico. Para a professora, dois pontos são cruciais para a compreensão da história nacional: “Uma é que teve escravidão. Ninguém vai saber nada sobre o Brasil se não entender isso. Mas a outra, tão importante quanto, é que a escravidão acabou.” Keila Grinberg expressa sua crença de que, ao entender essa transição histórica, também será possível vislumbrar o fim do racismo, uma chaga que se mostra tão profundamente enraigada no Brasil.
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A reabertura parcial do Museu Histórico Nacional com a mostra “Para além da escravidão” representa um marco na reflexão sobre a história e seus legados contemporâneos. Conectando o passado da escravidão atlântica com os desafios do racismo e da luta pela liberdade negra, a exposição e suas atividades paralelas convidam o público a uma imersão profunda e transformadora. Para se aprofundar em mais análises sobre cultura e sociedade, continue explorando nosso conteúdo.
Crédito da imagem: Jesus Carlos/Imagens. Edição: Fernando Fraga.


