Recentemente, correspondências governamentais desclassificadas do Ministério das Relações Exteriores do Brasil (Itamaraty) lançam luz sobre complexos intercâmbios diplomáticos do passado. Esses documentos detalham como os EUA cobraram o Brasil por pressão em Cuba em 1998, exercendo influência direta sobre a política externa brasileira durante a administração do presidente Fernando Henrique Cardoso.
As revelações são o fruto de uma investigação exclusiva da organização sem fins lucrativos Fiquem Sabendo, especializada em acesso à informação pública. Um telegrama interno do Itamaraty, datado de 17 de maio de 1998, minuciosamente descreve um diálogo confidencial entre o então chanceler brasileiro, Luis Felipe Lampreia, e a Secretária de Estado dos Estados Unidos, Madeleine Albright, ocorrido um dia antes.
EUA Cobraram Brasil por Pressão em Cuba em 1998
De acordo com o registro, redigido em primeira pessoa por Lampreia, a diplomata norte-americana expressou um pedido claro: que, em sua visita oficial a Cuba, agendada para 24 a 27 daquele mês, o chanceler brasileiro abordasse vigorosamente as pautas de democracia e direitos humanos na ilha. Lampreia, por sua vez, ressaltou a Albright que tais temas já haviam sido publicamente abordados por ele próprio em declarações sobre a visita. Adicionalmente, mencionou o discurso “importante” do presidente Fernando Henrique Cardoso em Santiago, onde FHC defendeu a redemocratização cubana como um passo indispensável para sua reintegração completa à comunidade hemisférica. A Secretária de Estado confirmou o apreço do governo dos EUA por tais pronunciamentos de FHC durante a Cúpula das Américas.
Durante a mesma conversa, Albright externou preocupação com a possibilidade de uma articulação sigilosa para a reintegração de Cuba à Organização dos Estados Americanos (OEA) na assembleia-geral seguinte, que ocorreria entre 1 e 3 de junho. Ela enfatizou que tal movimento seria “inaceitável para os EUA” e confessou não estar “bem informada sobre o que estaria ocorrendo”, apesar da intensa agenda diplomática focada na Europa e na crise do Oriente Médio, chegando a considerar uma viagem a Caracas para participar do encontro da OEA. Lampreia esclareceu que não dispunha de informações sobre essa suposta articulação, mas garantiu que, na “hipótese pouco provável de que isto se confirmasse, o Brasil não apoiaria tal iniciativa”.
Em um gesto de reforço aos laços bilaterais, Albright aproveitou o ensejo para relembrar o convite formal da Casa Branca para um jantar de Fernando Henrique Cardoso com Bill Clinton em Camp David. Ela caracterizou a iniciativa como um “gesto muito especial” que, para além de seu simbolismo político, atestava a “boa relação especial estabelecida entre ambos os chefes de estado”. Lampreia ratificou que o Brasil tinha “perfeita consciência do significado da iniciativa”, demonstrando “sensibilidade” e concordando com a facilidade de diálogo e a sintonia existente entre os dois líderes.
A pressão americana sobre o Brasil se desenrolava em um período de grande instabilidade nas relações entre EUA e Cuba. O governo democrata de Bill Clinton, embora assumisse após o término da Guerra Fria, ainda enfrentava o persistente impacto da questão cubana na política doméstica, particularmente no cenário eleitoral da Flórida, devido à influência da comunidade cubano-americana. Inicialmente, Clinton havia explorado uma via de aproximação com Cuba, mas essa estratégia foi abandonada.
Na prática, Clinton chegou a emitir “garantias públicas” de que os Estados Unidos não representavam uma ameaça militar à ilha. Para substanciar essa postura, autoridades americanas começaram a notificar Cuba, com antecedência, sobre manobras navais de rotina nas proximidades e iniciaram diálogos discretos sobre colaboração no combate ao narcotráfico. A retórica anti-Castro por parte de Washington também foi moderada. Entretanto, a dinâmica das relações mudou drasticamente a partir de 1996, em decorrência das incursões contínuas no espaço aéreo cubano por parte do grupo de pilotos cubano-americanos “Irmãos ao Resgate” (BTTR). Desde 1991, eles conduziam missões de busca e resgate para os balseiros cubanos que tentavam fugir do país em embarcações precárias.
A liderança desses aviões “civis” estava a cargo de José Basulto, uma figura controversa com histórico conhecido pelos cubanos, incluindo treinamento pela CIA e participação na invasão da Baía dos Porcos. Anos antes, ele tentara bombardear um hotel em Havana onde Fidel Castro supostamente jantava. O próprio Basulto, em entrevista, declarou: “Fui treinado como terrorista nos EUA”. Em 1995, sobrevoou Havana, lançando panfletos com a mensagem: “Irmão, não companheiros”.

Imagem: noticias.uol.com.br
Cuba emitiu diversos alertas e telegramas, classificando a situação como “humilhante”, especialmente em um país que havia perdido o suporte soviético. Em 1996, Fidel Castro advertiu que o próximo avião que violasse o espaço aéreo seria derrubado, o que levou a Administração Federal de Aviação dos EUA a solicitar oficialmente que Basulto cessasse as provocações. Entre agosto de 1995 e fevereiro de 1996, os voos prosseguiram, resultando em quatro novas advertências de Havana ao governo americano. Durante um desses voos provocadores, Cuba agiu e abateu o avião, precipitando uma grave crise bilateral em 26 de fevereiro de 1996. Em resposta, Clinton solicitou ao Congresso a aprovação de uma lei que visava à indenização imediata dos familiares dos pilotos mortos, expandiu a Rádio Martí, impôs restrições de movimento a diplomatas cubanos e proibiu voos comerciais entre Cuba e os Estados Unidos.
O presidente Clinton então instruiu o Pentágono a avaliar potenciais retaliações militares, incluindo um ataque aéreo em larga escala ou um ataque de mísseis contra a base aérea de San Antonio, de onde os caças MiG responsáveis pelo abate do avião civil haviam decolado. O Pentágono, entretanto, desaconselhou tais ações, recomendando prudência extrema. Para evitar a percepção de “fraqueza”, Clinton optou por apoiar a Lei de Liberdade e Solidariedade Democrática Cubana, mais conhecida como Lei Helms-Burton. Essa legislação previa sanções rigorosas contra Cuba e, notavelmente, contra países terceiros que mantivessem relações comerciais com o governo cubano. O endurecimento das medidas marcava um ponto de inflexão na política externa, configurando a legislação mais anticubana já imposta até aquele momento. Às vésperas das eleições presidenciais, o gesto de Clinton foi crucial para neutralizar as críticas de exilados cubanos sobre sua suposta mudança de política, garantindo a manutenção da Flórida nas mãos dos democratas.
Posteriormente, o próprio Bill Clinton expressou, a um confidente no Salão Oval, suas reservas pessoais sobre a eficácia do bloqueio. “Qualquer pessoa com um mínimo de inteligência poderia ver que o embargo era contraproducente”, declarou. “Ele desafiava políticas mais sensatas de engajamento que havíamos adotado com alguns países comunistas, mesmo no auge da Guerra Fria”, concluiu ele. Em sua autobiografia “My Life”, Clinton reiterou o caráter de política interna da medida. “Apoiar a lei foi bom num ano eleitoral na Flórida. Mas minou qualquer chance que eu poderia ter de retirar o embargo num segundo mandato, em troca de mudanças positivas em Cuba”, escreveu. “Quase parecia que Castro quisesse nos forçar a manter o embargo como desculpa para seus fracassos econômicos”, finalizou.
Confira também: artigo especial sobre leis e valortrabalhista
Em suma, os documentos recém-liberados detalham uma etapa crucial da diplomacia brasileira sob pressão externa, mostrando como os Estados Unidos atuaram para influenciar a postura do Brasil em relação a Cuba em um período de profundas tensões. Essa contextualização histórica, com a divulgação dos telegramas sigilosos, oferece uma nova perspectiva sobre os bastidores da política internacional. Para continuar a aprofundar suas análises sobre a política internacional e seus reflexos no Brasil, explore outros artigos em nossa editoria de Política.
Crédito da imagem: AFP/Luke Frazza
🔗 Links Úteis
Recursos externos recomendados