A discussão sobre a estratégia de segurança pública no Brasil e os métodos de enfrentamento ao crime organizado ganha relevo após operações com alto número de vítimas fatais. Segundo Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e professor da Fundação Getulio Vargas (FGV-EAESP), insistir em ações massivas e de confronto direto, como a que resultou em mais de 120 mortes no Rio de Janeiro recentemente, configura um retrocesso que apenas intensifica a violência. Essa abordagem falha em minar o poder e a influência das facções criminosas.
O especialista, que atua há mais de três décadas com análise de dados de segurança, aponta para a ineficácia histórica de operações policiais letais e de larga escala. Lima enfatiza que o Brasil possui o histórico e a capacidade para implementar ações integradas, que demonstram resultados mais expressivos do que o caminho da violência. Ele menciona a Operação Carbono Oculto, de agosto, liderada por órgãos federais e paulistas contra organizações criminosas, como um exemplo bem-sucedido de coordenação sem derramamento de sangue. Tais esforços conjuntos visam desarticular o crime organizado por meio de estratégias financeiras e de inteligência.
Estratégia Segurança Pública: Força Não É Solução Única
No dia da tragédia no Rio, Renato Sérgio de Lima alertava para a falha na estratégia empregada. Em nota divulgada, ele afirmou que o elevado e ainda crescente número de mortes tornava inadmissível considerar a operação um êxito. Para Lima, a verdadeira solução passa pela promoção da cidadania em territórios atualmente sob controle de facções e milícias, abandonando a ideia de que “empilhar corpos” representa uma vitória das forças de segurança contra o crime. Essa visão coaduna-se com a necessidade de intervenção do Estado com políticas sociais e infraestrutura básica, e não apenas com ação policial repressiva. Em entrevista ao Valor, ele reiterou a importância de recriar o Ministério da Segurança Pública – estrutura que vigorou durante o governo Michel Temer – e salientou que a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) da Segurança avança na direção certa, embora com importantes lacunas.
Lima reconhece que o uso da força policial pode ser necessário em momentos pontuais para a retomada de áreas tomadas pelo crime ou para enfraquecer o poderio acumulado por grupos como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV). Contudo, adverte: “Quando a força vira o único recurso disponível, estamos fracassando.” Segundo sua avaliação, o país se encontra diante de um dilema crucial sobre a melhor forma de enfrentar o crime organizado e os resultados que podem ser colhidos nas próximas décadas. Enquanto em agosto, sua perspectiva era mais otimista devido a ações coordenadas como a Operação Carbono Oculto, a abordagem vista no Rio de Janeiro pode sinalizar um futuro mais sombrio em dez anos, se essa tendência de retrocesso for mantida.
Retomada Territorial e Falhas Operacionais
Questionado sobre a necessidade de operações periódicas em áreas dominadas pelo crime, Renato Sérgio de Lima reitera que o essencial é a efetiva ocupação desses territórios pelo poder público, com a plena oferta de cidadania. Para ele, muitas dessas regiões são historicamente desassistidas de políticas sociais, saneamento básico e do mínimo necessário para uma vida digna. “É o ingresso do Estado nessas áreas com políticas sociais, junto com a ação de desmonte do poder do crime, que é fundamental”, pontua. A respeito de grandes operações policiais para essa finalidade, ele é categórico: “Essas operações têm sido um fracasso nos últimos 30, 40 anos.” Ele cita a ocupação do Complexo do Alemão em 2010, anterior à implantação das UPPs, que envolveu Garantia da Lei e da Ordem (GLO) e blindados da Marinha. Quinze anos depois, muitas das vítimas da recente operação do Rio eram crianças em 2010, evidenciando a falta de legado ou mudanças estruturais duradouras deixadas pelas intervenções passadas. Lideranças criminosas são rapidamente substituídas porque a facção opera como um negócio, com planos de contingência, não dependendo de uma única figura.
O especialista avalia que o impacto de operações como a recente “Contenção” no Rio sobre o Comando Vermelho é mínimo. Nomes como Marcinho VP e Fernandinho Beira-Mar, mesmo detidos, persistem como líderes, pois o fluxo de dinheiro permanece e os territórios continuam sob controle das facções. Apreensões de armamentos, como fuzis, geram custos temporários, mas não desestruturam a economia do crime. Para desmantelar esses grupos, é preciso “mexer no bolso do crime”, uma abordagem mais sistêmica.
Capacidades do Estado e Desafios de Governança
Lima sustenta que o Brasil, através da articulação entre União, estados e municípios, possui os recursos e capacidades necessários para desenvolver uma política gradual e realista de desmantelamento de facções. Ele menciona a eficácia de soluções coordenadas, como a iniciativa do Ministério da Fazenda, por meio da Receita Federal, de obrigar fintechs a regulamentar-se para evitar lavagem de dinheiro. Essa capacidade de intervenção se manifesta quando o Estado direciona seus esforços adequadamente.
O grande entrave, no entanto, é a dispersão de forças, característica de grandes Estados federados, como Brasil e EUA antes do 11 de Setembro. Lima explica que no Brasil, as 85 corporações policiais operam sem mecanismos eficazes de coordenação. Ele reitera a necessidade de recriação do Ministério da Segurança Pública como uma instância de governança capaz de convergir os objetivos e missões das diferentes forças. O Ministério da Justiça, como estruturado atualmente, não cumpre esse papel. Assim, o problema central é a ausência de governança, articulação e coordenação dos esforços. Embora o país gaste um volume similar ao da França em segurança, a pergunta é se esse dinheiro é bem aplicado. Com a melhoria da governança, os recursos existentes poderiam gerar respostas mais eficazes, reduzir a impunidade e interromper a retroalimentação das facções, em vez de esgotar a capacidade do sistema.

Imagem: Divulgação via valor.globo.com
Avanços e Lacunas na PEC da Segurança
A PEC da Segurança, em tramitação no Congresso e que enfrenta resistência de alguns governadores, é vista por Lima como um passo na direção correta. Desde 1991, 17 planos nacionais e programas federais para segurança pública foram lançados, mas nenhum se propôs a discutir a “regra do jogo” da coordenação entre esferas e o compartilhamento de informações. A PEC representa a primeira vez que uma gestão federal busca uma readequação na arquitetura da segurança pública brasileira. Anteriormente, as ações eram pontuais e respondiam a crises emergenciais, sem avaliações consistentes sobre sua eficácia ou o impacto do investimento. Portanto, a proposta de mudança das regras do jogo é considerada positiva pelo especialista.
Entretanto, existem pontos de discórdia, especialmente a questão dos recursos e a centralização do papel coordenador na União, sem uma estrutura de conselhos tripartites (União, estados e municípios), como ocorre na saúde e educação. A PEC não detalha claramente como a União coordenará um sistema policial em que o operacional continua com os governadores, ou quem definirá padrões para uso de câmeras corporais e tipos de operação. Uma instância tripartite permitiria pactuações, em vez de a União “mandar” nos estados. Essas lacunas explicam a oposição de governadores de direita. Além disso, a PEC, mesmo que aprovada, seria apenas uma “terraplanagem”. Seriam necessários, por exemplo, um novo tratamento processual penal para facções e o fortalecimento da regulação de novos mercados explorados pelo crime, como criptoativos e casas de apostas online. A questão da segurança pública brasileira não se resume à falta de investimentos, mas sim à gestão e articulação desses investimentos a partir de uma nova governança, capaz de retomar não apenas territórios físicos, mas a economia que opera neles, e de oferecer cidadania à população local.
Declarações Políticas e o Papel das Forças Armadas
Lima também abordou a repercussão da declaração do presidente Lula, posteriormente retratada, de que traficantes seriam “vítimas dos usuários de drogas”. O especialista aponta que a fala foi uma “gafe” que prejudicou um momento de protagonismo do governo federal, após a reunião com Trump e a apresentação de projetos contra facções e em preparação para a COP em Belém. A intenção de Lula era ressaltar que a droga existe por haver consumo, um debate conservador, mas sua infelicidade foi sugerir vitimização do criminoso, que na realidade, “explora” a situação. Ele nota que o presidente sempre demonstrou dificuldades em abordar o tema da segurança de forma aprofundada, lembrando que a promessa de campanha de 2022 de criar um ministério específico da área não foi cumprida.
Quanto ao uso das Forças Armadas, Lima pondera que intervenções militares, como a liderada pelo General Braga Neto em 2018 no Rio (que consumiu mais de R$1,3 bilhão sem resultados significativos) ou GLOs em portos e aeroportos, não solucionaram o problema do tráfico. O papel das Forças Armadas não deve ser de confronto, mas sim de suporte logístico, infraestrutura e fiscalização. A força pode ser necessária em certos contextos, mas nunca como recurso exclusivo. “O uso da força não é a melhor resposta para o tamanho e o poder das facções hoje”, argumenta Lima. A solução reside em aliar o uso estratégico da força com a promoção da cidadania e a asfixia financeira do crime, fechando gargalos regulatórios.
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Em suma, Renato Sérgio de Lima visualiza dois caminhos para o Brasil na próxima década: um pior, marcado pela repetição de operações sangrentas e o crescimento do crime organizado a ponto de controlar boa parte da economia formal; e outro mais promissor, baseado na cooperação institucional, inteligência e asfixia financeira, nos moldes da Operação Carbono Oculto. A decisão sobre qual trajetória seguir está em jogo, e a capacidade de superação dependerá da adoção de uma abordagem de segurança que priorize a cidadania e a governança articulada. Continue acompanhando nossas análises para se manter informado sobre os debates cruciais da segurança pública.
Crédito da Imagem: Valor Econômico / Divulgação


 
						