Um método inovador, que vem sendo caracterizado como uma espécie de “vacina” contra a propagação e crença em desinformação, mostrou resultados positivos na mitigação da aceitação de narrativas falsas relativas a processos eleitorais. A descoberta surge a partir de um novo estudo que abrangeu eleitores nos Estados Unidos e no Brasil. Os impactos observados da abordagem foram modestos, contudo, bastante encorajadores. O fenômeno se manifestou de maneira mais acentuada precisamente entre os indivíduos com maior inclinação a abraçar e defender teorias conspiratórias acerca dos temas investigados.
A pesquisa foi divulgada na última sexta-feira, dia 29, em um artigo científico publicado na renomada revista especializada Science Advances. A coleta e subsequente análise dos dados foram conduzidas por uma equipe internacional, liderada por John Carey, pesquisador do Dartmouth College, localizado nos Estados Unidos. O grupo de estudiosos contou com a participação fundamental de Marília Gehrke, uma pesquisadora brasileira vinculada à Universidade de Groningen, na Holanda, solidificando o caráter transnacional da investigação.
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O esforço de pesquisa envolveu a realização de três experimentos com características metodológicas semelhantes. Esses testes ocorreram em um período que se estendeu de outubro de 2022 a fevereiro de 2023. Dois dos experimentos foram desenhados para interagir com eleitores americanos, enquanto o terceiro foi especificamente aplicado a eleitores brasileiros. O principal objetivo da iniciativa consistiu em avaliar a profundidade do impacto que as intervenções planejadas poderiam exercer sobre a percepção individual dos participantes em relação a elementos cruciais como a integridade dos resultados eleitorais e a incidência de fraudes nos sistemas de votação em ambas as nações. A meta era, assim, quantificar e qualificar como a introdução estratégica de certas informações poderia alterar visões pré-estabelecidas e frequentemente distorcidas sobre o processo democrático.
A fundamentação do trabalho executado pela equipe de pesquisadores se alicerça em um volume cada vez maior de evidências empíricas que indicam a eficácia de um conceito que alguns especialistas na área denominam de “imunologia cognitiva”. Essa expressão constitui uma analogia direta com os processos que ocorrem no corpo humano no contexto biológico da vacinação. Conforme o conhecimento médico demonstra, a exposição controlada e segura do organismo a versões atenuadas — isto é, enfraquecidas — de vírus ou bactérias, ou mesmo a componentes como proteínas ou fragmentos do material genético desses agentes patogênicos, serve como um “treinamento” essencial para que o corpo humano desenvolva sua própria capacidade defensiva. Isso se concretiza pela produção de anticorpos específicos e pela mobilização de outras estratégias de preparação imunitária, capacitando-o a reagir de forma eficiente contra futuras infecções. Paralelamente a esse mecanismo biológico, estudos contemporâneos vêm apontando que uma dinâmica análoga pode ser observada no plano cognitivo e informacional, abrindo caminho para o desenvolvimento de técnicas capazes de reduzir a suscetibilidade e os efeitos prejudiciais provocados pela desinformação disseminada.
No âmbito desses estudos sobre a resiliência à desinformação, a técnica em questão é internacionalmente reconhecida pela terminologia em inglês “prebunking”. Este termo é um engenhoso trocadilho com “debunking”, que se refere à ação de desmentir ou refutar algo já estabelecido, porém, com o prefixo “pre-“, que antecipa o caráter preventivo da estratégia. A lógica do “prebunking” funciona, em muitas ocasiões, através de uma etapa inicial em que o indivíduo é exposto a um fragmento de desinformação, apresentado em um formato propositadamente ameno. Um exemplo prático seria uma frase como: “Observem que o candidato X tem circulado a afirmação de que a eleição Y foi alvo de fraude”. Logo após essa exposição inicial e controlada, o participante do estudo ou o receptor da intervenção recebe, em seguida, um conjunto de informações minuciosas, claras e objetivas, as quais explicam de maneira detalhada os motivos pelos quais a teoria da conspiração mencionada carece de qualquer fundamento sólido. Essa explicação é elaborada com base em dados verificáveis, seguindo o padrão de uma orientação como: “Na realidade, existem inúmeros mecanismos e salvaguardas que garantem a integralidade e a confiabilidade da eleição Y. Permita-nos apresentar-lhe alguns desses mecanismos”, seguido pela elucidação das evidências e fatos. Essa sequência visa a construir uma imunidade cognitiva antes que a desinformação consiga se enraizar.
Nos ensaios experimentais minuciosamente detalhados no estudo publicado na revista Science Advances, o grupo de pesquisadores de projeção internacional realizou uma comparação rigorosa entre os efeitos da aplicação desse modelo de “prebunking” e uma abordagem alternativa utilizada no combate à desinformação. Esta última abordagem envolveu a utilização das denominadas “fontes com credibilidade”. Diferentemente do que o nome pode sugerir de forma genérica, não se tratava de recorrer a qualquer fonte dotada de credibilidade pública no sentido amplo, como pode ser o caso de acadêmicos especializados ou figuras de autoridade. A estratégia particular aqui residia na escolha de personalidades públicas que são comumente percebidas como aliadas ou simpatizantes do propagador original da desinformação, mas que, contraditoriamente, emitem declarações explícitas e claras contra a teoria conspiratória que se busca neutralizar. Um exemplo concreto desse modelo foi observado nos experimentos conduzidos com participantes americanos, onde foram empregados depoimentos de juízes que, embora filiados ao Partido Republicano — o mesmo de Donald Trump, figura central nas alegações de fraude —, defenderam publicamente a integridade e a lisura dos pleitos eleitorais, confrontando assim as narrativas de manipulação de votos.
As duas estratégias investigadas, ou seja, a intervenção por “prebunking” e a abordagem baseada em “fontes com credibilidade”, foram colocadas lado a lado para serem comparadas entre si e, adicionalmente, com um grupo de controle que recebeu um “placebo”. Essa é uma prática comum em ensaios clínicos de vacinas biológicas, onde se utiliza uma substância inócua para verificar os efeitos específicos do tratamento. No contexto deste estudo sobre desinformação, o placebo empregado pelos pesquisadores consistiu na exposição dos participantes a conteúdos considerados neutros e inofensivos. Estes incluíam textos variados, como “Mantenha-se atualizado sobre as notícias do mundo”, que tratava de temas gerais; “Os benefícios da caminhada para a saúde”, focado em bem-estar; ou ainda “O uso diversificado dos molhos na culinária”, explorando aspectos gastronômicos. A inclusão do placebo permitiu isolar e avaliar com maior precisão o impacto das intervenções diretas de combate à desinformação, distinguindo-o de outros fatores.
Em cada um dos estudos independentes conduzidos pela equipe, foi realizado o recrutamento de um número significativo de participantes, variando entre 2.000 e 3.000 pessoas. Esses indivíduos engajaram-se na pesquisa por meio de plataformas virtuais, facilitando a coleta de dados em larga escala. As convicções e percepções dos participantes relativas ao processo eleitoral de seus respectivos países foram objeto de análise em duas etapas distintas: uma avaliação prévia, antes da aplicação de qualquer tipo de “tratamento”, e uma segunda avaliação após o contato com as diferentes abordagens (prebunking, fontes de credibilidade ou placebo). Este delineamento metodológico permitiu aos pesquisadores mensurar as mudanças nas crenças dos indivíduos em resposta às intervenções testadas, fornecendo dados cruciais sobre a eficácia de cada estratégia na modulação das opiniões sobre a lisura dos sistemas eleitorais.
De uma perspectiva geral, as conclusões obtidas pela equipe de pesquisa indicam que ambas as estratégias empregadas para combater a desinformação, tanto o “prebunking” quanto o recurso a “fontes com credibilidade”, demonstraram uma propensão significativa a reduzir a probabilidade de os indivíduos persistirem na crença em teorias da conspiração que versam sobre eleições fraudadas. Essa observação foi consistente, reforçando a validade de ambas as abordagens como ferramentas mitigadoras. No entanto, em uma análise mais aprofundada dos resultados, a metodologia de “prebunking” revelou-se marginalmente mais eficaz, destacando-se em sua capacidade de influenciar as percepções tanto no contexto dos Estados Unidos quanto no cenário brasileiro. Este dado sugere uma superioridade preventiva do “prebunking” em comparação com a apresentação de contra-argumentos por figuras credíveis, indicando que a estratégia de “imunização” prévia pode ser mais resiliente no longo prazo.

Imagem: www1.folha.uol.com.br
Considerando as diferentes frações de pessoas que já manifestavam confiança nos sistemas eleitorais de seus respectivos países, em contraste com o eleitorado que havia aderido plenamente à tese de fraude e manipulação, os pesquisadores também constataram um achado particularmente relevante. O efeito mais potente e significativo das intervenções foi observado de forma mais intensa precisamente no grupo dos conspiracionistas que se mostravam mais radicais em suas convicções. Isso sugere que, embora tais indivíduos possam ser mais resistentes a informações que contrariam suas visões, eles também podem ser os que possuem “mais espaço” para uma mudança, uma vez que suas crenças são muitas vezes construídas sobre bases mais frágeis de desinformação, e qualquer desmistificação clara e eficaz pode ter um impacto substancialmente maior. O estudo, assim, lança luz sobre a capacidade de transformação até mesmo nas perspectivas mais entrincheiradas.
No cenário americano, por exemplo, os resultados foram notáveis entre os eleitores que se identificavam como partidários de Donald Trump. Neste subgrupo específico, a adesão a afirmações falsas relacionadas a fraudes eleitorais experimentou uma queda expressiva: partiu de 41,3% dos participantes no grupo que havia recebido apenas o placebo, para uma faixa de 24,4% a 19% entre aqueles que tiveram contato direto com a estratégia de “prebunking”. Para o grupo geral de participantes, a proporção dos que continuaram a acreditar nas afirmações falsas, após receber o “prebunking”, situou-se entre 12,3% e 10,6%, número consideravelmente menor se comparado aos 19,5% registrados entre os membros do grupo que recebeu o placebo. Esses dados sublinham a capacidade da intervenção em moldar as percepções sobre a lisura do processo democrático.
A variação observada nos resultados percentuais dentro do grupo que recebeu a intervenção de “prebunking” está associada à experimentação com diferentes “formulações” dessa “vacina” contra a desinformação. Em uma das formulações aplicadas, o indivíduo era primeiramente advertido acerca da existência e da atuação de grupos que promoviam teorias conspiratórias e, em seguida, recebia instruções sobre a importância de se proteger contra “notícias falsas”. Somente depois dessa introdução é que eram apresentadas as informações corretas e detalhadas sobre o funcionamento do processo eleitoral. Na formulação alternativa, a abordagem consistia diretamente na entrega do pacote de dados precisos e verificados, sem a introdução de advertências prévias. Para os pesquisadores envolvidos no estudo, essa distinção pode ser indicativa de que o método que foca diretamente na apresentação de informações acuradas, desprovido de avisos que possam soar como admoestações ou alertas pré-determinados, consegue evitar a deflagração de reações emocionais negativas em eleitores alinhados a determinado espectro político. Tais reações, muitas vezes, levariam os indivíduos a reforçarem suas posições e a se entrincheirarem ainda mais em suas opiniões preexistentes, tornando a persuasão mais complexa. Dessa forma, uma entrega mais direta da verdade factual pode ser mais eficiente.
A pesquisa estendeu seus braços para o Brasil, onde similarmente se verificou o impacto da intervenção. Entre os participantes que se mostravam apoiadores mais fervorosos de Jair Bolsonaro, foi notado que a confiança na integridade dos resultados eleitorais atingiu o patamar de 28% no grupo que foi submetido à metodologia de “prebunking”. Este índice contrasta de maneira acentuada com a porcentagem registrada no grupo de controle, que era de apenas 20%, evidenciando a eficácia da abordagem mesmo entre subgrupos com fortes convicções políticas pré-estabelecidas.
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De acordo com Marília Gehrke, uma das pesquisadoras envolvidas, as razões subjacentes para os resultados mais favoráveis observados nesses subgrupos específicos ainda não são completamente claras e requerem investigações adicionais. A pesquisadora apontou várias possibilidades. “Podem ser vários fatores”, afirmou. Uma explicação primária e mais direta é a de que “as pessoas mais desinformadas ou mais suscetíveis à desinformação são as que têm mais espaço para mudar suas crenças”, sugerindo que, quanto maior a lacuna de conhecimento factual, maior o potencial de transformação. Adicionalmente, ela levantou outra hipótese: “Outra explicação possível é que a informação [correta] pode ser muito pouco familiar para elas.” Em outras palavras, o simples fato de serem expostas a fatos antes desconhecidos pode, por si só, ser um catalisador para a revisão de convicções arraigadas. Concluiu a pesquisadora brasileira com um tom de otimismo em relação às implicações mais amplas da descoberta. “No geral, vemos os resultados com otimismo”, resumiu, reforçando a ideia de que “as pessoas são capazes de mudar suas percepções sobre um fenômeno”. Finalmente, destacou a importância dos atores envolvidos na disseminação de informações de qualidade: “e os jornalistas e responsáveis pelo sistema eleitoral têm um papel relevante na hora de informar o público”, ressaltando a responsabilidade conjunta na manutenção de um ambiente informacional saudável.
Com informações de Folha de S.Paulo
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