Especialistas Criticam Retórica de Governadores em Combate ao Crime

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A retórica de governadores sobre o combate ao crime está sob intenso escrutínio de sociólogos e cientistas políticos, que alertam para os riscos das narrativas empregadas. Enquanto operações policiais, como as realizadas nos Complexos do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro, resultaram em elevadas fatalidades, gestores estaduais, liderados pelo governador fluminense Cláudio Castro, formaram o “Consórcio da Paz” para o enfrentamento integrado ao crime organizado.

No entanto, a terminologia e as ações subjacentes ao Consórcio da Paz vêm sendo fortemente criticadas. Ignacio Cano, sociólogo e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), aponta que o nome é uma estratégia discursiva que contradiz a realidade das operações, notadamente uma que culminou na morte de 121 pessoas, incluindo quatro policiais, no Complexo do Alemão e da Penha. Para Cano, o termo não se alinha com a proposta e o resultado das ações.

Especialistas Criticam Retórica de Governadores em Combate ao Crime

“Os governadores erraram no nome. Deveria se chamar Consórcio da Morte, porque é isso que eles estão propondo. Certamente não é a paz”, afirma Cano, alertando que a recorrência ao termo ‘paz’ será acompanhada pela memória das numerosas mortes decorrentes de ações governamentais. Ele reitera que a maioria dos gestores estaduais de direita está ativamente promovendo uma política de letalidade policial. Atualmente, o Consórcio da Paz reúne sete governadores: Cláudio Castro (Republicanos/RJ), Tarcísio de Freitas (Republicanos/SP), Romeu Zema (Novo/MG), Jorginho Mello (PL/SC), Eduardo Riedel (Progressistas/MS), Ronaldo Caiado (União Brasil/GO) e Ibaneis Rocha (MDB/DF).

Análise da Retórica Governamental e o Termo “Narcoterrorismo”

Sociólogos, cientistas políticos e peritos em segurança pública, em diversas análises, questionaram a linguagem adotada pelas autoridades em recentes pronunciamentos públicos. O objetivo foi investigar os usos políticos e simbólicos vinculados a intervenções policiais de alta letalidade, consideradas entre as mais graves na história do Brasil. Uma expressão que se destacou repetidamente foi “narcoterrorismo”, utilizada por governadores como Cláudio Castro, Tarcísio de Freitas e Romeu Zema para descrever grandes facções criminosas com centros de poder no Rio de Janeiro e em São Paulo.

Jacqueline Muniz, antropóloga, cientista política e docente do departamento de segurança pública da Universidade Federal Fluminense (UFF), classificou o termo como “bobagem” que, em vez de auxiliar, prejudica a polícia, a segurança pública, a sociedade e o próprio governo. Ela argumenta que vocábulos como “narcomilícia” e “Estado paralelo” funcionam como uma cortina de fumaça, encobrindo incompetências, fragilidades institucionais e oportunismos políticos. Ao invocar o “narcoterrorismo”, conforme a análise de Muniz, autoridades buscam justificar a demanda por mais recursos, maior poder e um ambiente com menor prestação de contas sobre suas operações.

O sociólogo Ignacio Cano também criticou o termo sob uma perspectiva conceitual. Ele explica que o terrorismo, em sua definição comum, está ligado a motivações políticas, caracterizado pelo uso indiscriminado da violência contra civis para alcançar esses fins. Segundo Cano, um narcoterrorista, ao contrário, careceria de motivação política, tendo como principal objetivo o lucro, alinhando-se à motivação de qualquer criminoso. Desse modo, o termo configuraria uma contradição inerente.

A legislação brasileira, através da Lei nº 13.260 de 2016, estabelece que o terrorismo compreende atos executados por indivíduos motivados por xenofobia, discriminação ou preconceito racial, étnico ou religioso, com o propósito de instigar terror social generalizado, colocando em risco a vida humana, o patrimônio, a ordem pública ou a incolumidade pública. No Brasil, grupos ligados ao tráfico de drogas são categorizados legalmente como organizações criminosas. Essa classificação é mantida pelo governo federal, sob a liderança do Ministro da Justiça e da Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, que se posiciona de forma consistente sobre o tema. Em contrapartida, um grupo de deputados busca alterar essa situação através do Projeto de Lei (PL) 724/25, de autoria do deputado Coronel Meira (PL-PE). A proposta visa estender o conceito de terrorismo para incluir o tráfico de drogas ilícitas. Já aprovado na Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados, o projeto ainda aguarda análise da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) e, posteriormente, votação no Plenário da Câmara e, para se tornar lei, precisa da aprovação do Senado.

Narcoterrorismo e o Impacto Internacional na Segurança Pública

A postura brasileira tem sido objeto de pressão internacional, especialmente por figuras políticas de direita. Recentemente, os governos de Javier Milei, na Argentina, e Santiago Peña, no Paraguai, classificaram facções como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV) como organizações terroristas. Adicionalmente, durante uma visita oficial ao Brasil em maio deste ano, a comitiva dos Estados Unidos também sugeriu que o país adotasse a mesma medida.

Especialistas em segurança pública interpretam essa pressão de governadores no Brasil, pelo uso da classificação de “narcoterrorista”, como um alinhamento político com essas tendências externas. Consequentemente, o debate sobre o combate ao crime é deslocado do campo meramente policial para o geopolítico, o que, na visão desses analistas, pode fragilizar a democracia e incrementar os riscos de interferências internacionais. Jonas Pacheco, coordenador de pesquisa da Rede de Observatórios da Segurança, explica que uma maneira eficaz para os Estados Unidos intervirem na América Latina é através do tema do terrorismo, um medo historicamente acentuado, especialmente após os eventos de 11 de setembro. Pacheco complementa que esse discurso frequentemente visa a dominação regional, sendo evidente que países com grupos rotulados como terroristas geralmente não estão alinhados ideologicamente com a agenda política do governo dos EUA.

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Imagem:  Eusébio Gomes via agenciabrasil.ebc.com.br

Ignacio Cano ressalta que o termo “terrorismo” é utilizado por certas administrações para legitimar execuções sumárias em áreas costeiras da Venezuela e Colômbia. Governos de países como El Salvador e Equador também já adotaram essa terminologia, buscando, segundo Cano, driblar limites legais. Legislações antiterroristas comumente prolongam prazos de prisão provisória e minimizam garantias processuais. Contudo, Cano frisa que, apesar dessas ampliações de poder, nenhuma lei antiterrorista, em princípio, autoriza a execução sumária de pessoas.

Crítica à Linguagem de ‘Guerra às Drogas’ e Suas Consequências Sociais

Outra categoria linguística prevalente entre as autoridades estaduais é a ideia de “guerra”, sugerindo que as forças policiais militares estão em conflitos similares aos enfrentados em contextos de Leste Europeu, África e Oriente Médio. Sociólogos e cientistas políticos se opõem categoricamente a essa terminologia, dadas as sérias repercussões simbólicas e materiais que ela pode acarretar.

Conforme Jonas Pacheco, ao fundamentar o debate na concepção de “guerra”, valida-se a prática de ações que acabam por “barbarizar” comunidades inteiras. Ele questiona a identidade do “inimigo” nesse contexto: seria o traficante que se dedica à lavagem de dinheiro na Faria Lima, ou, de fato, o indivíduo de baixa renda e, muitas vezes, negro, que reside em áreas de extrema vulnerabilidade social, nas favelas? Pacheco enfatiza que a segurança pública tem como finalidade primordial gerar segurança e proteção, e não vitimar. O uso da força deve, portanto, ser estritamente regulamentado e aderir às normativas legais vigentes, não constituindo um objetivo em si mesmo. Ele lembra que o pacto social fundamental estabelece que o Estado tem a responsabilidade precípua de assegurar e preservar a vida de seus cidadãos.

Ignacio Cano reforça que é crucial lembrar que, se a sociedade concede à polícia autonomia para atuar sem os devidos controles, parâmetros legais e sem a fiscalização do Ministério Público, todos os cidadãos ficam expostos a riscos. Ele adverte que qualquer percepção de que apenas os moradores de comunidades como o Alemão e a Penha sofrerão as consequências é equivocada, e o perigo pode se estender a todos.

Jacqueline Muniz interpreta a adoção do vocabulário de “guerra” como um projeto que intenciona “trazer a guerra para dentro das cidades”. Para ela, o objetivo não é erradicar o crime, mas sim intensificar a repressão e gerar espetáculo. “Se queremos resolver, temos que mudar também essa linguagem”, argumenta Muniz. Ela prossegue analisando que a insegurança é transformada em política pública num contexto autoritário. Quanto maior o sentimento de insegurança, mais favorável se torna para tais autoridades, pois o medo induz à fidelização. Diante de uma ameaça percebida, os cidadãos podem abrir mão de suas garantias individuais e coletivas, confiando sua proteção àqueles que, em um segundo momento, podem transformá-los em vítimas de tirania. Essa é uma reflexão crítica sobre a manipulação da narrativa no campo da segurança pública no Brasil. A ação do governo federal para lidar com o crime organizado, incluindo o Ministério da Justiça e Segurança Pública, tem focado na categorização legal das facções como organizações criminosas, seguindo a legislação vigente.

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A discussão sobre a retórica e as ações de governadores no combate ao crime é fundamental para compreender as complexidades da segurança pública no país. As críticas dos especialistas levantam questões importantes sobre a legalidade, a ética e a eficácia das abordagens, sugerindo que uma mudança de linguagem pode ser o primeiro passo para uma transformação nas políticas. Continue acompanhando nossas análises detalhadas na editoria de Política para mais informações e perspectivas sobre este e outros temas cruciais para o Brasil.

Crédito da imagem: Fernando Frazão/Agência Brasil