Escola das Américas: De Centro Repressor a Prédio Abandonado

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O antigo edifício que serviu como sede para a Escola das Américas, outrora um marcante símbolo da união entre os Estados Unidos e os regimes ditatoriais da América Latina durante o século 20, dedicados à repressão de opositores políticos, hoje se encontra completamente desocupado no Panamá, após ter operado como um sofisticado hotel de luxo. A estrutura permanece como um silencioso testemunho de sua multifacetada e controversa história.

Fundada em 1946 pelo Departamento de Defesa norte-americano, a instituição foi um ponto central na formação de futuros ditadores e na disseminação de métodos sistemáticos de tortura e desaparecimentos forçados. Tais táticas se tornaram pilares dos regimes militares que dominaram a região por décadas, consolidando um legado de violações de direitos humanos em diversos países latino-americanos.

Escola das Américas: De Centro Repressor a Prédio Abandonado

As atividades da instituição no território panamenho foram encerradas em 1984, e o imponente edifício permaneceu inativo por um longo período de 17 anos. Em 2001, o empresário Damián Barceló adquiriu a propriedade, convertendo-a no Hotel Meliá. Paralelamente, a Escola das Américas transferiu suas operações para Fort Benning, na Geórgia (EUA), onde continua a funcionar sob a nova denominação de Instituto do Hemisfério Ocidental para Cooperação em Segurança (Whinsec).

A nova vida do prédio como hospedagem cinco estrelas da rede Meliá prometia um cenário de opulência e bem-estar. Em sua fase hoteleira, o empreendimento oferecia uma gama de serviços exclusivos, incluindo concierge personalizado, piscinas requintadas, um spa completo e um moderno “centro de bem-estar”. Este oásis de luxo, no entanto, operava sobre o terreno de um antigo baluarte da repressão militar, situado na cidade costeira de Colón, no Panamá. O destino de resort foi selado logo no início da pandemia de Covid-19, quando fechou suas portas em março de 2020, e desde então não foi reativado, mergulhando o edifício novamente no abandono.

O Legado de Líderes e Táticas Controversas

Ao longo de sua existência original, a Escola das Américas capacitou um contingente de 66.888 estudantes. Entre seus alunos, figuram nomes que viriam a se tornar notórios ditadores e figuras centrais em regimes autoritários. Dentre os mais destacados estão os ex-governantes panamenhos Manuel Noriega (1934-2017) e Omar Torrijos (1929-1981); os líderes argentinos Leopoldo Galtieri (1926-2003) e Roberto Viola (1924-1994); o presidente peruano Juan Velasco Alvarado (1910-1977); o boliviano Hugo Banzer (1926-2002); e o equatoriano Guillermo Rodriguez.

Além dessas figuras de cúpula, a instituição também treinou indivíduos com participação direta em episódios obscuros da história latino-americana. Vladimiro Montesinos, a peça chave no escândalo que resultou na queda do ditador peruano Alberto Fujimori (1938-2024) no ano 2000, é um exemplo. Outro caso alarmante é a formação de membros do esquadrão da morte responsáveis pelo brutal massacre de seis monges jesuítas e do arcebispo Oscar Romero em El Salvador, um evento que chocou a comunidade internacional em 1989. O papel da escola nesse contexto permanece uma cicatriz na memória coletiva da região.

Críticas e Transferência da Instituição

A relevância e as controversas atividades da Escola das Américas foram duramente criticadas por figuras políticas proeminentes. O presidente panamenho Jorge Illueca (1918-2012) descreveu a instituição como “a maior base para a desestabilização da América Latina”, expressando sua profunda desaprovação. O engajamento ativo de Illueca foi decisivo para que a Escola das Américas deixasse o Panamá durante seu mandato (1983-1984), uma movimentação que se integrou aos tratados iniciais para a transferência da administração do Canal do Panamá.

Mesmo após a mudança, o atual Instituto do Hemisfério Ocidental para Cooperação em Segurança (Whinsec), herdeiro da Escola das Américas nos EUA, mantém uma agenda de formação militar. Segundo informações disponíveis no próprio portal da instituição, anualmente entre 1.400 e 1.800 alunos participam de seus programas. O instituto ressalta que “Qualquer país do Hemisfério Ocidental pode enviar alunos, desde que tenha autorização do governo dos Estados Unidos”. Historicamente, 33 nações da região já enviaram participantes aos programas, mantendo viva a conexão entre a formação militar e as nações do continente.

Escola das Américas: De Centro Repressor a Prédio Abandonado - Imagem do artigo original

Imagem: www1.folha.uol.com.br

O contínuo funcionamento e a participação de nações nos programas do Whinsec suscitam debates. Pablo Ruiz Espinoza, representante do Observatório para o Fechamento da Escola das Américas, um movimento que já soma mais de duas décadas de ativismo, declara que “A Escola das Américas une as tragédias que ocorreram durante as ditaduras na América Latina, e mesmo assim os países seguem enviando tropas”. Seu grupo persiste no apelo para que os governos cessem o envio de militares à escola, argumentando que a instituição carrega um estigma histórico que deve ser reconhecido e evitado.

Implicações no Brasil e a Questão da Memória

No cenário brasileiro, o legado da instituição também é pautado pela busca de justiça e memória. Em 2013, a Comissão da Verdade formalizou um pedido às Forças Armadas para obter informações sobre militares brasileiros que frequentaram a Escola das Américas no período da ditadura militar (1964 a 1985). No entanto, o requerimento foi negado, sob alegação de impossibilidade de atendimento. Apesar da negativa oficial, alguns nomes já são conhecidos publicamente, como os do major Bismarck Baracuhe Amancio Ramalho, os dos capitães Thaumaturgo Sotero Vaz e Wilson Benito Machado, e do coronel João Paulo Moreira Burnier (1919-2000), este último apontado como um dos responsáveis pela tortura no Rio de Janeiro.

A historiadora Patrícia Mechi, coordenadora da pós-graduação em Integração Contemporânea da América Latina da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), que acompanhou a reportagem em uma visita ao local em 2023, avalia a transformação do edifício da Escola das Américas em hotel e seu posterior abandono como um fenômeno sintomático. Para Mechi, tal trajetória ilustra um processo mais amplo de apagamento da memória de um período sombrio de violações de direitos humanos na América Latina, refletindo uma relutância em confrontar o passado.

Esta problemática da memória e do esquecimento não é restrita apenas ao Panamá. Um paralelo pungente pode ser traçado no Brasil com o caso do jornalista Vladimir Herzog, assassinado há 50 anos nas instalações do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi). O prédio que simbolizou a tortura e a repressão naquele período hoje é uma seção desocupada do 36º Distrito Policial, no bairro do Paraíso, em São Paulo. Apesar de ter sido tombado pelos órgãos de preservação cultural municipal e estadual, com uma clara recomendação para a criação de um centro de memória, a iniciativa ainda não avançou. A permanência dessas memórias não confrontadas evidencia a complexidade da justiça e da recordação. Para aprofundar a compreensão sobre os complexos desafios da região, confira o perfil detalhado da Escola das Américas em conteúdo de referência sobre a história da instituição e seu papel geopolítico.

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A complexa jornada do prédio da Escola das Américas, desde sua função como centro de treinamento repressivo até seu estado de abandono, oferece um potente estudo sobre o esquecimento e a memória de eventos cruciais na história da América Latina. O desfecho dessa história arquitetônica e simbólica no Panamá, bem como os desafios persistentes na busca por justiça e preservação da memória em países como o Brasil, reiteram a necessidade contínua de diálogo sobre o passado. Para mais análises sobre os eventos políticos e sociais que moldaram a região, convidamos você a explorar outras matérias em nossa editoria de Política.

Crédito da imagem: Nathalia Dunker – 26.jun.23/Folhapress