Uma saga de quase cinco anos sem um diagnóstico correto levou Nilde Soares a um nível de sofrimento tão intenso que culminou em duas tentativas de suicídio. Aos 30 anos, quando desfrutava de uma rotina aparentemente controlada e um emprego em uma empresa multinacional, Nilde começou a perceber manifestações incomuns em seu próprio corpo, sinais sutis que se transformariam em um calvário diário de dor e frustração, impactando profundamente sua saúde mental e física. Hoje, aos 54 anos, e após um diagnóstico tardio de distonia cervical idiopática, ela dedica sua vida à luta por um reconhecimento adequado e acesso a tratamentos para outros pacientes.
Inicialmente, os sintomas manifestavam-se como pequenos tiques discretos. Um dos olhos de Nilde piscava sozinho, e sua boca contraía de forma involuntária, sem que ela pudesse controlar. Com o passar do tempo, essa sintomatologia se agravou progressivamente, culminando em movimentos mais intensos e incontroláveis. Seu pescoço começou a apresentar movimentos rápidos e repetitivos, descritos por ela como um “quicar de mola”, o que a impossibilitava de manter o olhar fixo em qualquer direção, prejudicando interações sociais e profissionais. O impacto na sua vida profissional tornou-se evidente durante uma reunião com um cliente, que, ao notar os movimentos estranhos, questionou seu bem-estar. Nilde, então, dirigiu-se ao banheiro, onde, diante do espelho, constatou as caretas involuntárias que seu rosto produzia. A experiência, relata, gerou um susto imenso, quase provocando-lhe um infarto. A partir desse momento de crise, a busca por ajuda médica tornou-se incessante.
Seu primeiro passo foi procurar um pronto-socorro. No entanto, o retorno recebido foi o de que suas queixas eram resultado de uma “crise nervosa”, desconsiderando a complexidade dos seus sintomas físicos. Esse episódio marcou o início de uma longa e exaustiva “peregrinação médica” que duraria cerca de quatro anos e meio. Durante esse período, Nilde consultou diversos especialistas, incluindo psiquiatras e psicólogos, e foi submetida a variados tratamentos com medicamentos para depressão e calmantes, além de sessões de análise. Contudo, nenhuma dessas intervenções se mostrou eficaz; pelo contrário, o quadro de Nilde continuou a se deteriorar. A dor no corpo aumentava significativamente, tornando-o cada vez mais rígido e limitado. Para agravar a situação, as explicações médicas continuavam a reduzir seu sofrimento a meras questões emocionais ou psicológicas, negligenciando a verdadeira natureza do seu padecimento.
A paciente buscou auxílio em alguns dos mais conceituados hospitais de São Paulo, porém a resposta comum era que seu problema tinha origem psíquica. Houve até mesmo sugestões para que fosse internada em uma instituição psiquiátrica. Essa falha no reconhecimento de sua condição, aliada à ingestão diária de mais de 20 tipos de remédios que não aliviavam seus sintomas, levou Nilde ao limite do desespero. A acumulação de frustração, juntamente com uma dor crônica persistente e debilitante, empurrou-a para uma escuridão profunda, resultando em duas tentativas de suicídio. Ela descreve a experiência de viver com dor constante como tendo “a arma em casa”, indicando que a própria agonia serve como um impulso autodestrutivo, não necessitando de outros gatilhos externos para o desejo de desistir.
O Caminho para o Diagnóstico Correto: Distonia
A virada crucial em sua história ocorreu após consultar um sétimo neurologista, um profissional com especialização em distúrbios do movimento. Foi nesse momento que, finalmente, a verdadeira resposta surgiu: distonia cervical idiopática, uma classificação específica de distúrbio do movimento que impacta predominantemente regiões como o pescoço, os ombros e a face. O diagnóstico foi confirmado de forma objetiva por meio de um exame de eletroneuromiografia, que avalia a atividade elétrica dos músculos.
Apesar da complexidade e da seriedade da doença, Nilde relata que o diagnóstico trouxe um alívio imenso. Para ela, “deixar de se sentir um E.T.” significava finalmente ter um nome para a condição que por tanto tempo a atormentara, validando seu sofrimento. Entretanto, a revelação veio acompanhada de um sentimento doloroso de pesar. Nilde expressou sua tristeza ao perceber os anos preciosos de sua vida que foram consumidos por medicações erradas e tratamentos ineficazes, um período marcado pela incompreensão e pelo desgaste.
Com o diagnóstico preciso em mãos, Nilde pôde iniciar o primeiro tratamento adequado à sua condição, o que lhe acendeu uma nova chama de esperança. As aplicações de toxina botulínica, também conhecido como “botox terapêutico”, visavam bloquear as contrações musculares involuntárias. O resultado inicial foi dramático e transformador: “Na primeira aplicação, saí da clínica sem dor,” conta Nilde. Esse alívio instantâneo permitiu que ela realizasse um desejo há muito tempo impossível. Naquele mesmo dia, dirigiu-se a uma churrascaria, um ato simbólico de liberdade, pois há anos não conseguia mastigar e engolir alimentos sólidos sem a necessidade de assistência.
No decorrer da evolução da doença, a intervenção de toxina botulínica tornou-se insuficiente para conter o avanço dos sintomas. Dessa forma, Nilde teve de recorrer a um tratamento mais avançado: a Estimulação Cerebral Profunda (DBS, na sigla em inglês), uma modalidade que consiste no implante de um dispositivo diretamente no cérebro. Este aparelho é programado para emitir impulsos elétricos contínuos, os quais desempenham um papel fundamental na redução dos espasmos musculares. Nilde compara o dispositivo a ter um “marca-passo no cérebro”, evidenciando sua importância vital para o controle de suas funções motoras. A dependência do aparelho é completa; a cada semana, ele precisa ser recarregado, pois qualquer falha na bateria implica o retorno imediato dos sintomas incapacitantes. Ao longo dos anos anteriores ao diagnóstico correto e à instituição dos tratamentos adequados, a progressão da distonia foi tão severa que Nilde chegou a parar de andar, revelando a magnitude do impacto da doença não tratada em sua vida.
O que é Distonia? Uma Visão Médica
A distonia é definida clinicamente como um distúrbio neurológico complexo, caracterizado pela ocorrência de contrações musculares de natureza involuntária. Essas contrações são responsáveis por induzir movimentos repetitivos, torções do corpo ou de segmentos específicos, bem como a adoção de posturas que são consideradas anormais e forçadas. A raiz desse problema reside em disfunções ou falhas nos mecanismos de controle motor localizados no cérebro. De acordo com a Dra. Sara Casagrande, neurologista que possui especialização na área de Distúrbios do Movimento, a origem da distonia pode ser classificada em diferentes categorias, abrangendo uma gama variada de fatores etiológicos.
Primeiramente, existe a distonia de origem genética. Esta forma é atribuída à presença de mutações que afetam determinadas regiões do cérebro. Tais regiões são cruciais para a coordenação e regulação dos movimentos corporais, e suas alterações genéticas podem desencadear os sintomas distônicos. Em segundo lugar, há a distonia adquirida. Essa modalidade não decorre de fatores genéticos intrínsecos, mas surge como consequência de eventos externos ou condições de saúde específicas. Entre os fatores que podem precipitar uma distonia adquirida estão traumas físicos, infecções neurológicas, a administração de certos medicamentos (como alguns antipsicóticos ou fármacos utilizados para combater enjoos), ou mesmo ser uma sequela permanente após a ocorrência de um Acidente Vascular Cerebral (AVC). Por fim, existe a distonia idiopática. Nesta categoria, o termo “idiopática” indica que a causa específica da condição não pode ser identificada ou estabelecida, mesmo após uma investigação médica aprofundada. Este tipo de distonia representa um desafio diagnóstico particular, dada a ausência de um fator causal óbvio.
Dr. João Carlos Papaterra, neurologista do respeitado Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP), elucida que a doença pode se manifestar em qualquer área do corpo humano. No entanto, é mais comum que, em indivíduos adultos, ela afete de maneira prevalente o pescoço, a musculatura da face e os membros superiores. A variabilidade da doença se traduz em diferentes tipos de distonia, cada um com suas características distintas e áreas de acometimento preferencial:
- Distonia cervical: Essa forma particular é frequentemente associada à ocorrência de torcicolo e ao desvio da cabeça, que se move de forma involuntária para uma posição anômala, gerando desconforto e restrição dos movimentos.
- Blefaroespasmo: Caracteriza-se por um piscar dos olhos que é tanto excessivo quanto incontrolável. Os músculos ao redor dos olhos contraem-se de forma espasmódica, dificultando ou impedindo a visão.
- Distonia oromandibular: Afeta a mandíbula e a musculatura da região oral, provocando contrações que tornam atividades cotidianas, como mastigar e falar, significativamente difíceis e dolorosas.
- Câimbra do escrivão: É um tipo de distonia focal que afeta predominantemente os músculos das mãos e dos antebraços. Surge ou é exacerbada durante a realização de tarefas específicas que envolvem movimentos repetitivos e finos, como escrever, tocar um instrumento musical ou realizar outras tarefas que exigem destreza manual, comprometendo a habilidade do indivíduo de realizar tais ações.
Sintomas, Diagnóstico e a Complexidade da Condição
Os sintomas associados à distonia possuem uma natureza insidiosa, podendo se manifestar inicialmente de forma sutil e discreta. Em suas fases precoces, os movimentos involuntários podem ser observados apenas durante a execução de movimentos específicos, tais como o caminhar ou o ato de escrever. À medida que a doença progride e avança, a frequência e a intensidade dessas contrações musculares tendem a aumentar. Não raro, elas passam a ocorrer até mesmo em momentos de repouso, afetando a qualidade de vida e a funcionalidade do paciente em sua rotina diária.
Além dos evidentes movimentos involuntários que caracterizam a doença, os indivíduos que vivem com distonia são frequentemente acometidos por uma dor crônica que pode ser excruciante e debilitante, afetando sua capacidade de realizar tarefas simples. Essa dor é frequentemente acompanhada por fadiga muscular intensa, um cansaço que se prolonga e impacta todo o organismo. Adicionalmente, a complexidade da condição se manifesta através de uma gama de problemas psicológicos secundários, que surgem como resposta ao estresse constante e à limitação imposta pela doença. Entre esses, destacam-se a ansiedade e a depressão, que frequentemente requerem atenção e tratamento específicos. Em certas manifestações da distonia, é possível observar também a presença de sintomas não motores, que podem incluir alterações sensoriais e flutuações de humor, adicionando camadas de complexidade ao quadro clínico.

Imagem: g1.globo.com
O processo de diagnóstico da distonia exige uma abordagem especializada. A detecção da condição deve ser conduzida por um neurologista que possua vasta experiência e especialização em distúrbios do movimento. Exames de imagem avançados, como a ressonância magnética, desempenham um papel auxiliar no processo diagnóstico, mas seu propósito principal não é confirmar a distonia. Em vez disso, são utilizados para descartar a presença de outras enfermidades neurológicas que poderiam apresentar sintomatologia semelhante, garantindo que o diagnóstico de distonia não seja mascarado por outras patologias. O teste considerado mais específico e conclusivo para a identificação da distonia é a eletroneuromiografia. Este exame avalia de forma minuciosa a atividade elétrica dos músculos e dos nervos, permitindo aos especialistas confirmar, com maior grau de certeza, a presença da distonia e sua extensão.
Existe Cura? Os Tratamentos Disponíveis e a Importância da Abordagem Multidisciplinar
Para a maioria esmagadora dos casos de distonia, a medicina contemporânea ainda não oferece uma cura definitiva. No entanto, o foco dos tratamentos disponíveis não é erradicar a doença, mas sim gerenciar e controlar de forma eficaz os sintomas. O principal objetivo é propiciar aos pacientes uma melhora significativa em sua qualidade de vida, permitindo-lhes recuperar funcionalidade e autonomia no cotidiano.
Os médicos consultados na reportagem indicam que as principais modalidades terapêuticas disponíveis são diversas e adaptadas à severidade e ao tipo da distonia:
- Toxina botulínica (botox terapêutico): Essa é considerada a abordagem de primeira linha, especialmente para as distonias focais, que afetam áreas específicas do corpo. A substância é injetada diretamente nos músculos afetados. Seu mecanismo de ação envolve a interrupção da comunicação entre o nervo e o músculo, o que resulta em uma significativa redução das contrações involuntárias e, consequentemente, alivia a dor crônica.
- Medicamentos orais: Em certas situações, medicamentos administrados por via oral são prescritos. Os resultados com essa abordagem podem ser variáveis, sendo particularmente relevantes em casos de distonias generalizadas, que afetam múltiplas regiões do corpo.
- Estimulação Cerebral Profunda (DBS): Esta é uma opção mais invasiva e sofisticada, reservada para pacientes que apresentam quadros de distonia severa e que não responderam adequadamente aos tratamentos mais conservadores (quadros refratários). A DBS envolve o implante de eletrodos em regiões específicas do cérebro. Esses eletrodos emitem impulsos elétricos que têm a função de modular as atividades neuronais anormais responsáveis pelos espasmos e movimentos involuntários.
- Acompanhamento multidisciplinar: É de suma importância para a otimização da funcionalidade e da qualidade de vida dos pacientes com distonia. Esse tipo de abordagem integra o trabalho de diversos profissionais da saúde. Incluem-se neste grupo a fisioterapia, que visa melhorar a mobilidade e reduzir a rigidez; a fonoaudiologia, que auxilia em dificuldades de fala e deglutição; a terapia ocupacional, que foca na readaptação para as atividades do dia a dia; e o apoio psicológico, fundamental para lidar com o impacto emocional e os desafios da doença.
Dra. Sara Casagrande ressalta que a efetividade do tratamento reside na combinação estratégica dessas terapias. Segundo ela, o tratamento não se limita à administração de medicamentos e às aplicações de toxina botulínica. A integração da fisioterapia, da psicologia e, quando a condição exige, de técnicas de neuromodulação (como a DBS), é crucial. Somente por meio dessa abordagem colaborativa e holística, torna-se possível obter uma melhoria na funcionalidade do paciente e devolver-lhe a autonomia em sua vida diária, permitindo um maior controle sobre seu próprio corpo e suas atividades.
Os especialistas vislumbram um futuro com perspectivas animadoras, impulsionadas pelo contínuo avanço da medicina. A esperança é que, com o desenvolvimento da medicina de precisão e a emergência de terapias genéticas inovadoras, seja possível, em algum momento, oferecer alternativas de tratamento ainda mais eficazes e, quem sabe, até curas para a distonia. Entretanto, no cenário atual, os pacientes continuam dependendo da sinergia entre as abordagens terapêuticas já estabelecidas: o botox terapêutico para o controle local, a fisioterapia para a recuperação e manutenção da mobilidade, o acompanhamento psicológico para o suporte emocional e, nos casos mais severos e refratários, intervenções cirúrgicas complexas como a Estimulação Cerebral Profunda (DBS).
Preconceito, Luta e o Impacto Social da Distonia
Além dos inúmeros desafios clínicos e das dificuldades em acessar um diagnóstico correto, os pacientes com distonia frequentemente se veem confrontados com o estigma do preconceito e a invisibilidade social, realidades que podem ser tão dolorosas quanto os próprios sintomas físicos da doença. Nilde Soares relata, com emoção, episódios onde pessoas, sem o menor pudor, riam abertamente dela nas ruas ou tiravam fotos discretamente de seus movimentos involuntários, como se ela fosse um espetáculo. A dor do julgamento externo se aprofundava ao perceber que até mesmo membros da própria família, em algumas ocasiões, falhavam em compreender a gravidade e a natureza involuntária de sua condição, acrescentando mais uma camada de isolamento ao seu sofrimento.
Essa vivência pessoal e a superação de duas tentativas de suicídio impulsionaram Nilde a transformar sua dor em ativismo. Ela canalizou sua experiência para fundar o Instituto Distonia Saúde, uma organização dedicada a mitigar os obstáculos enfrentados pelos pacientes. O principal objetivo do Instituto é atuar como uma “ponte” essencial entre as pessoas que sofrem com a distonia e os profissionais qualificados que podem oferecer auxílio, conectando pacientes a médicos especializados em distúrbios do movimento, fisioterapeutas, psicólogos e até advogados que possam defender seus direitos e necessidades.
Durante o período crítico da pandemia de coronavírus, Nilde acompanhou de perto o recrudescimento da dor e do desespero em muitos pacientes com distonia. O isolamento, a interrupção de tratamentos e a intensificação do sofrimento mental agravaram a situação de vulnerabilidade desses indivíduos. Segundo dados por ela observados, infelizmente, 27 pessoas de seu círculo de conhecidos com distonia, muitos já fragilizados pela condição, vieram a cometer suicídio nesse período, um dado alarmante que sublinha a urgência de maior reconhecimento e suporte. Nilde argumenta veementemente que os pacientes com distonia carecem de reconhecimento por parte do poder público, afirmando que “nós não existimos para o poder público”. Ela aponta a ausência de legislações específicas que os categorizem como pessoas com deficiência, uma omissão que intensifica a marginalização e dificulta o acesso a direitos básicos e suporte especializado. Para ela, a “dor de um pescoço que não para de se contrair já levou muita gente ao limite”, uma declaração pungente que expressa o grau extremo de sofrimento que essa condição pode infligir.
Nilde, aos 54 anos, segue convivendo com a distonia, mas sua trajetória mudou drasticamente. Ela afirma ter alterado sua rota de vida. “Se não posso curar a doença, vou lutar para que ninguém precise passar metade do que eu passei. Ter um diagnóstico certo não deveria ser um privilégio, mas um direito,” ela declara, consolidando sua missão de advogar por um futuro onde a detecção precoce e o acesso a tratamento sejam universais e justos para todos que enfrentam a distonia. A sua jornada, de uma vítima silenciada para uma ativista incansável, serve como um poderoso testemunho da resiliência humana e da importância da luta por dignidade e reconhecimento na saúde.
Com informações de g1.globo.com/saude
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