O cortejo fúnebre no Pará, especificamente na vila de São João do Abade, localizada no município de Curuçá, nordeste do estado, destaca-se por uma prática singular. Distanciando-se das convenções usuais de velório, a despedida aos falecidos nesta comunidade amazônica integra elementos como música vibrante, espetáculo de fogos de artifício e o consumo de cachaça, tudo em um ambiente marcado pela alegria e união de amigos e familiares.
Este ritual, conhecido localmente como “Frete”, constitui uma herança cultural com mais de 200 anos de existência. Recebendo seu nome atual há aproximadamente 25 anos, o “Frete” consiste em um percurso de 4,5 quilômetros, que parte de São João do Abade e segue em direção ao Cemitério São Bonifácio, no coração do município.
Cortejo Fúnebre Diferenciado no Pará Mescla Festa e Luto
Conforme ressaltado por Alexandre Nascimento, empreendedor e criador de conteúdo digital que participa ativamente da prática, a intenção fundamental por trás desse especial cortejo fúnebre no Pará não reside na celebração da morte, mas sim na exaltação da vida plenamente vivida pela pessoa que partiu. Ao final do velório na residência, o caixão é entregue à comunidade, que assume a tarefa de carregá-lo, revezando-se durante o trajeto até o cemitério.
É crucial notar uma distinção: as celebrações com fogos e bebidas alcoólicas ocorrem estritamente fora das dependências do cemitério. “Dentro do cemitério, o momento é íntimo entre o falecido, a família e as homenagens”, explica Nascimento, reiterando que os participantes do “Frete” permanecem do lado de fora em respeito à solenidade final. A origem dessa tradição fúnebre em Curuçá remonta a uma época em que a vila de São João do Abade carecia de acesso facilitado à área central e a serviços funerários modernos. Historicamente, os caixões eram confeccionados artesanalmente com tábuas de Marupá, uma madeira leve e abundante na Amazônia, e o transporte era realizado a pé pelos vizinhos e amigos, com a cachaça já presente para “ajudar nos preparativos”.
Perspectiva Acadêmica sobre o Frete
A singularidade do “Frete” foi objeto de estudo na dissertação “Lágrimas e Cachaça: a espetacularidade do cortejo fúnebre do Frete em São João do Abade, Curuçá-PA”, da professora Valéria Fernanda Sousa Sales. Segundo sua análise, o ritual representa uma reconfiguração dos funerais barrocos, comuns no Brasil até meados do século XIX, quando houve a proibição dos sepultamentos em igrejas. Naquela época, os sepultamentos em Curuçá eram feitos na igreja de Nossa Senhora do Rosário, antes de serem transferidos para um local mais distante do centro.
Com a mudança dos locais de sepultamento, a comunidade do Abade manteve intacta a forma do cortejo fúnebre com a tradição da cachaça e o carregamento do caixão pelos amigos. Para os moradores, a denominação “Frete” surgiu da percepção de que as pessoas estavam “fretadas” – ou seja, encarregadas e reunidas especificamente – para conduzir o caixão até seu destino final. Para compreender mais sobre a rica cultura e os aspectos geográficos do estado do Pará, um dos maiores do Brasil, pode-se consultar dados oficiais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Normas e Participação da Comunidade no “Frete”
É importante frisar que o cortejo fúnebre “Frete” em São João do Abade não é aplicado a todos os falecidos da comunidade. Alguns indivíduos são submetidos a um funeral convencional, com o transporte do caixão realizado por carros funerários. A participação no “Frete” é mediante convite, e os velórios que o precedem seguem um conjunto de regras próprias. Valéria Sousa Sales detalha uma notável divisão de tarefas durante o velório. Os homens, por exemplo, ocupam-se com jogos como baralho e dominó na parte externa da residência, uma maneira de assegurar que a família enlutada não se sinta sozinha e de prover companhia.

Imagem: g1.globo.com
As mulheres, por sua vez, dedicam-se à cozinha, recebendo contribuições alimentícias variadas de toda a comunidade – café, bolacha, mingau, sopa, entre outros itens. Um exemplo da profunda cooperação comunitária se dá quando amigos pescadores retornam na madrugada e trazem peixes, que são assados no momento, um preparo conhecido como “avoado”, servido com farinha e pimenta. Essa demonstração de solidariedade reforça o elo que mantém viva essa singular manifestação de luto e união em Curuçá.
O Caminho do Respeito e da Força Feminina
No desenrolar do próprio cortejo, há também uma organização específica entre gêneros. O segmento inicial do percurso é conduzido pelos homens, que carregam o caixão. No entanto, ao se aproximarem de um ponto de referência particular na vila, ocorre uma significativa transição: as mulheres assumem a responsabilidade pelo transporte, e os homens se retiram dessa tarefa. Essa alternância simboliza um fortalecimento comunitário e a reivindicação do espaço feminino.
A professora Valéria explica que este momento atua como um “combustível” para as mulheres, um impulso para sua força em meio a tantos quilômetros de cortejo fúnebre. A cachaça, presente em todo o trajeto, também desempenha seu papel neste contexto, sendo consumida como um “combustível para ganhar energia” para carregar o caixão. Este ritual complexo e carregado de simbolismo reflete uma maneira única de lidar com a perda, honrando a vida com celebração e mantendo vivas as tradições ancestrais da vila de São João do Abade, consolidando a identidade cultural da região de Curuçá no Pará.
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Este artigo detalhou o peculiar “Frete”, um cortejo fúnebre do Pará que transforma a despedida em celebração da vida, misturando alegria, respeito e ancestralidade. Aprofunde-se em outras notícias e análises sobre a rica diversidade cultural brasileira e os acontecimentos mais relevantes da região Norte visitando a editoria de Cidades do Hora de Começar, e continue acompanhando nosso portal para estar sempre bem-informado sobre os mais variados temas que impactam o Brasil.
Crédito da imagem: Arquivo pessoal/ Alexandre Nascimento
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