As normas de construção civil para eventos extremos ganham destaque no debate nacional após um recente vendaval assolar a Grande São Paulo. As intensas rajadas de vento, que se aproximaram dos 100 km/h no fim de setembro, deixaram mais de meio milhão de pessoas sem energia elétrica e levantaram questões cruciais sobre a capacidade da arquitetura e engenharia brasileiras em enfrentar fenômenos climáticos cada vez mais potentes e frequentes.
Desde 2006, quatro das sete rajadas de vento mais severas (com velocidades a partir de 90 km/h) registradas na região metropolitana de São Paulo ocorreram a partir de 2023, conforme dados do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), analisados pelo g1. Ventos acima dessa velocidade são classificados como muito fortes, capazes de derrubar galhos, causar danos a estruturas vulneráveis e dificultar drasticamente o deslocamento de veículos e pedestres. Esses eventos costumam estar associados a tempestades, frentes frias ou outras condições meteorológicas adversas. Em 22 de setembro, residências no Pacaembu foram destelhadas, vidros de edifícios se soltaram, uma cobertura de estação da CPTM cedeu e uma inundação severa transformou o Aeroporto de Congonhas em uma cascata.
Construção civil: adaptação para eventos extremos em SP
De acordo com especialistas consultados pela reportagem, embora o Brasil possua normas de construção de alto padrão e uma das engenharias mais seguras globalmente, o cenário atual de emergências climáticas exige uma reavaliação completa dos parâmetros de construção. Essa revisão deve ser embasada em novas medições e diretrizes. Valter Caldana, arquiteto e urbanista e professor na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, enfatiza que a base técnica do país é robusta, porém, foi concebida para uma realidade climática que já não corresponde à atual. Ele observa que o que já era eficiente precisa evoluir para se adequar aos desafios contemporâneos.
Boas normas, mas médias ultrapassadas
Caldana detalha que tanto a arquitetura quanto a infraestrutura urbana pautam seus projetos em médias históricas de ocorrências climáticas, como volumes de chuva e intensidade de ventos. Essas médias máximas são os pilares para a determinação dos critérios de segurança nas construções. Contudo, a crise climática global está provocando eventos extremos muito mais intensos e frequentes do que o usual. O especialista aponta que as normas brasileiras, embora rigorosas, foram estabelecidas com base em médias que se mostram insuficientes diante da exacerbação da crise climática.
Quando um fenômeno extremo, que antes era esperado a cada cinco décadas, passa a ser registrado em intervalos de quatro ou cinco anos, a capacidade de previsão do sistema normativo como um todo é comprometida. Atualmente, a regulamentação vigente não abrange os extremos mais severos, tornando imperativo um novo alinhamento entre as atividades humanas, as edificações e o meio ambiente.
Urgência em pesquisa e projeto
O urbanista ressalta a necessidade urgente de o Brasil reagir às mudanças climáticas. “Temos pouco tempo para absorver o aprendizado desses eventos”, alerta Valter Caldana, salientando que não se pode esperar de braços cruzados. Ele argumenta que o aumento da frequência e severidade das tempestades demanda uma revisão imediata das regulamentações de construção e uma transformação na forma como o país lida com pesquisa e inovação.
É essencial destinar vultosos recursos financeiros para pesquisa, tanto do setor governamental quanto da iniciativa privada. A pesquisa de ponta é dispendiosa e, portanto, não é o momento de economizar nesse campo. Além da readequação técnica, Caldana aponta para a reorganização institucional, envolvendo a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), as universidades e as agências de fomento, como CNPq, Fapesp e Finep, como protagonistas desse processo. Ele também destaca a imprescindibilidade da participação da iniciativa privada: “A indústria, o mercado financeiro, o comércio, todos precisam investir massivamente em pesquisa tecnológica e científica, pois o principal beneficiário será o próprio investidor”.
Construções e materiais: diversidade e adaptação
O professor Valter Caldana observa que as diversas abordagens construtivas no Brasil são intrinsecamente ligadas a fatores culturais e econômicos. Enquanto nos Estados Unidos é comum o uso da madeira, no Brasil predominam os tijolos, refletindo uma lógica de construção voltada para o longo prazo. Diferente dos EUA, a economia brasileira não permite investimentos ágeis em reconstrução. Cada técnica de construção — seja madeira, alvenaria ou terra — possui suas particularidades, com vantagens e desvantagens que variam conforme a localização e o contexto.
Para Caldana, a questão não reside no tipo de material empregado, mas sim na defasagem das normas que determinam os limites de segurança desses sistemas construtivos diante de eventos extremos. Nos Estados Unidos, a madeira, apesar de potencialmente mais vulnerável em certas circunstâncias, é um material flexível que oferece resistência a tremores moderados e tornados de menor intensidade. Em áreas suscetíveis a furacões ou ventos de maior força, é comum encontrar residências equipadas com porões de alvenaria que funcionam como abrigos para os ocupantes. Ademais, em caso de danos estruturais, as construções de madeira são geralmente mais acessíveis e rápidas de reparar.

Imagem: g1.globo.com
Em resumo, não existe uma solução simplificada sobre como a arquitetura e a engenharia podem efetivamente mitigar os impactos dos eventos climáticos severos. O professor defende que, após cada incidente grave, como os destelhamentos de galpões e rompimentos de estruturas metálicas na Grande São Paulo, o setor técnico deve encarar o momento como uma oportunidade valiosa de aprendizado. Ele compara a situação a acidentes aéreos: a cada queda, a segurança geral da aviação melhora para os voos futuros, indicando que essas “pequenas tragédias” servem para aprimorar os conhecimentos técnicos.
Mitigação e prevenção
O engenheiro Gustavo Henrique Siqueira, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), corrobora a avaliação de que o Brasil detém boas normas de dimensionamento estrutural. No entanto, ele pondera que é inviável eliminar completamente os riscos em eventos de natureza excepcional. O Brasil já projeta edificações com alto grau de segurança, mas a questão central reside nos eventos extremos, que estão fora do controle comum. Siqueira explica que, tanto do ponto de vista técnico quanto econômico, é inviável conceber estruturas para resistir a todos os tipos de fenômenos climáticos. É possível buscar a mitigação dos impactos, mas a completa erradicação dos problemas se mostra uma tarefa complexa. Além disso, o custo de projetar uma edificação para resistir a um evento que talvez nunca mais ocorra em determinada região pode ser excessivamente alto.
O professor Siqueira sugere que o país intensifique os investimentos em sistemas de alerta precoce, simulações e planos de evacuação, estratégias já implementadas em outras nações. Para ele, no Brasil, é necessário aumentar as ações preventivas e os treinamentos que, atualmente, não são realizados com a devida frequência. Os especialistas concordam que a adaptação das cidades brasileiras à nova realidade climática dependerá de uma colaboração integrada entre governo, indústria e academia. As normas precisam refletir o panorama atual, no qual eventos extremos passaram de exceções a parte da rotina.
Detalhes do temporal na Grande SP
A intensa tempestade acompanhada de rajadas de vento que atingiu São Paulo no final de setembro causou vasta destruição, derrubando árvores, destelhando imóveis, transbordando córregos e prejudicando o funcionamento de semáforos por toda a cidade. Segundo dados da prefeitura da capital, foram registrados: 139 árvores caídas; sete ocorrências de desabamento sem vítimas; 55 semáforos sem energia; 18 pontos de alagamento; e 122 equipes atuaram nas ruas para minimizar os impactos e liberar as vias. Mais de 500 mil pessoas na Grande São Paulo foram afetadas pela interrupção no fornecimento de energia elétrica após o fenômeno climático.
O meteorologista César Soares, da Climatempo, explicou que a situação foi causada por uma frente fria que se deslocou do Sul do Brasil, passou por São Paulo e agora se afastava para o alto-mar, resultando em uma queda acentuada das temperaturas na região. Naquele dia, os ventos atingiram velocidades próximas a 100 km/h em diversas partes da cidade: 98,2 km/h no Aeroporto Campo de Marte (Zona Norte, às 14h08); 92,1 km/h em Santana – Carandiru (às 14h20); e 87 km/h no Aeroporto de Congonhas (Zona Sul, às 14h05). Embora Congonhas tenha registrado 87 km/h, o recorde para a cidade, segundo a Defesa Civil, foi de 107,6 km/h, em 12 de outubro de 2024. A Defesa Civil mobilizou equipes para atender às ocorrências relacionadas ao vendaval nas zonas Sul e Oeste, que incluíram a queda de placas de sinalização e galhos. Outras regiões também registraram ventos fortes, como Ipiranga (56,2 km/h) e Centro (55,5 km/h).
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Em suma, a intensificação e a frequência de eventos climáticos extremos no Brasil exigem uma resposta rápida e coordenada para aprimorar as normas e práticas de construção civil. O diálogo entre academia, governo e setor privado é essencial para garantir a segurança e a resiliência das cidades frente aos desafios impostos pelas mudanças climáticas. Continue acompanhando nossa editoria de Cidades para mais análises e desenvolvimentos sobre a adaptação urbana no país.
Crédito da imagem: Aldieres Batista/TV Globo
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