Uma megaoperação recente direcionada a complexos do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro, pôs em destaque mais uma vez o Comando Vermelho (CV), uma das organizações criminosas mais poderosas do Brasil. O grupo, cuja origem remonta a meio século atrás nos presídios cariocas, especificamente na Ilha Grande, foi o principal alvo de ações de segurança pública visando conter sua expansão no território fluminense e desarticular a facção.
A ofensiva das forças de segurança, que incluiu a emissão de cem mandados de prisão e 180 de busca e apreensão, resultou em números alarmantes que espelham a intensidade da disputa pelo controle territorial. Foram contabilizadas 121 mortes (sendo 117 suspeitos e quatro policiais), 113 prisões (com 33 detidos oriundos de estados como Amazonas, Bahia, Ceará, Pará e Pernambuco) e a apreensão de dez menores infratores. O arsenal apreendido totalizou 118 armas, incluindo 91 fuzis, 26 pistolas e um revólver, além de mais de uma tonelada de substâncias entorpecentes.
Comando Vermelho: A História do Surgimento da Facção no RJ
A Ilha Grande, distante mais de 100 quilômetros da capital fluminense, sempre foi concebida pelas autoridades brasileiras como um local de isolamento. Desde o Império até o regime militar, a ilha foi utilizada para confinar diversos grupos: inicialmente doentes de cólera e febre tifoide provenientes da Europa e África, e mais tarde, presos políticos, assaltantes de banco, estupradores e assassinos. Apesar do cenário paradisíaco, o Complexo Penitenciário Candido Mendes era tristemente conhecido como “Caldeirão do Inferno” ou “Caldeirão do Diabo” devido à sua violência inerente, um lugar onde, como narravam os internos, “o filho chora e a mãe não ouve”. Foi neste ambiente hostil que, há quase 50 anos, nasceria a semente do Comando Vermelho, inicialmente conhecida como Falange Vermelha.
A História Carcerária de Ilha Grande: Do Lazareto à Penitenciária Cândido Mendes
A longa história do presídio da Ilha Grande antecede a formação da facção criminosa, sendo tema de vasta documentação em livros, monografias e reportagens. Em 1884, durante o reinado de Dom Pedro II, a ilha abrigou o Lazareto, um centro de triagem para navios estrangeiros que se dirigiam ao Rio de Janeiro. No local, passageiros com doenças contagiosas eram desembarcados, com a particularidade de que a divisão era também por classe social: os mais abastados recebiam abrigos diferenciados, enquanto os mais pobres permaneciam na baía. Essa prática perdurou até 1942, e inclusive o sanitarista Oswaldo Cruz chegou a defender a segregação por status social para distribuição de doentes. Uma década após a inauguração do Lazareto, em 1894, já na República, foi fundada a Colônia Correcional de Dois Rios, que, após um fechamento em 1897, foi reaberta em 1902 e definitivamente extinta em 1955. Durante os 43 anos de sua existência, notáveis prisioneiros como membros da Aliança Nacional Libertadora (ANL) e o escritor Graciliano Ramos, que ali começou a redigir “Memórias do Cárcere”, passaram por suas celas.
Presos Políticos e a Ditadura Militar
Em 1963, o então governador da Guanabara, Carlos Lacerda, estabeleceu a Penitenciária Cândido Mendes, posteriormente renomeada como Instituto Penal Cândido Mendes. Com o advento da ditadura militar em 1964, a unidade começou a receber presos políticos e guerrilheiros. A finalidade era promover o isolamento total, dificultando até mesmo as visitas, dada a inacessibilidade da ilha (somente por barco ou nado). Muitos desses presos políticos eram transportados no porão de navios, misturados a mercadorias como batatas. O jornalista Fernando Gabeira, ex-detento da Ilha Grande, revisitou o local em 2017 para um especial da Globonews, evocando a experiência de sua ida para a prisão: “A última imagem que tive do Brasil antes de deixá-lo para o exílio foi da Ilha Grande”, relembrou.
A Chegada dos Criminosos Comuns e a Mescla Carcerária
A composição do corpo carcerário começou a mudar significativamente em 1969. O Decreto-Lei nº 898, de 29 de setembro daquele ano, modificou a Lei de Segurança Nacional (LSN), expandindo sua aplicação. A partir de então, qualquer indivíduo que cometesse crimes como assalto, sequestro ou roubo seria punido, independentemente de intenções políticas. Isso levou para a Ilha Grande um novo contingente de criminosos comuns, como homicidas e estupradores, que não tinham qualquer ligação com a luta contra o regime militar. Durante o período mais brutal da ditadura, a década de 1970, quando as torturas em quartéis eram intensificadas, presos políticos passaram a ser transportados em barcos junto a esses detentos comuns, gerando uma inédita e perigosa convivência.
“A Galeria do Fundão” e o “Muro da Vergonha”
De acordo com a monografia de Manuela Castilho Coimbra da Costa, apresentada à Uerj em 2004, muitos detentos da Ilha Grande preferiam a prisão pelo fato de estarem afastados da vigilância militar, pois a guarda no presídio era civil, o que alterava o ambiente interno. Ao chegarem à unidade, os presos políticos, em grande parte marinheiros, foram inicialmente segregados em uma galeria. Contudo, a integração acontecia em atividades como aulas de artesanato e práticas esportivas; os detentos chegaram a organizar um time de futebol, o “25 de Março”, em referência ao levante dos marinheiros de 1964. Os presos políticos também foram responsáveis por avanços na unidade, como a criação de uma farmácia e de uma biblioteca, além da implantação do fundo coletivo, uma despensa para os alimentos recebidos em visitas, que depois eram distribuídos igualmente entre todos os presos. Paradoxalmente, à medida que essas iniciativas se desenvolviam, a divisão entre os grupos se aprofundava. A ala dos presos baseados na LSN, formada por assaltantes e assassinos, que contava com 60 celas e era conhecida como “Fundão”, gerava tensões. Alegando incompatibilidade de ideologias e hábitos, os presos políticos solicitaram a separação física da galeria, resultando na instalação de chapas de aço, o que veio a ser conhecido como “Muro da Vergonha”. William da Silva Lima, conhecido como Professor, relatou em seu livro “Quatrocentos contra Um”: “A maioria dos presos oriundos das organizações armadas dos anos 70 também tinha regressado à Ilha Grande. Alegando incompatibilidade de hábitos e de ideologias, eles pediram que a galeria fosse dividida, o que foi feito, cabendo a nós a parte conhecida como Fundão.” Essa separação, no entanto, acabou por catalisar uma mobilização e conscientização da massa carcerária do Fundão.
Com a promulgação da Anistia durante o governo de Ernesto Geisel, os presos do Fundão, agora mais conscientes de sua força, começaram a articular a liderança da cadeia. Seguiu-se então uma série de confrontos com as autoridades penitenciárias, que incluíam greves de fome, abaixo-assinados e denúncias de espancamentos e maus-tratos, consolidando um sentimento de unidade e resistência.

Imagem: g1.globo.com
A Gênese da Falange Vermelha e o Comando Vermelho
Foi em meio a esse contexto de reorganização prisional que William da Silva Lima, o Professor, chegou à Ilha Grande em 1971, aos 28 anos. Sua transferência para a ilha, segundo ele, foi uma punição determinada pelo secretário estadual de Justiça da época, Cotrim Neto, por organizar, junto a outros detentos, um jornal chamado “Nossa Voz”. Os dois exemplares do periódico foram suficientes para que Professor fosse enviado para a Ilha Grande, onde se deparou com cerca de 50 marinheiros, os mesmos que protagonizaram o levante de março de 1964. A capacidade de organização dos detentos, influenciada pela convivência, deu origem à chamada Falange da LSN, uma referência à Lei de Segurança Nacional, base para muitas das condenações. Pouco depois, essa facção foi rebatizada como Falange Vermelha e, posteriormente, Comando Vermelho. O nome surgiu pela primeira vez em um relatório de 1979, elaborado pelo então diretor do presídio, o capitão da Polícia Militar Nelson Bastos Salmon, ao Departamento do Sistema Penitenciário (Desipe). Ele documentava: “Após os assassinatos de setembro de 1979, quando foi quase totalmente exterminada a Falange do Jacaré, a Falange da LSN ou Comando Vermelho passou a imperar no presídio da Ilha Grande e a comandar o crime organizado intramuros em todo o sistema penitenciário do Rio. Com isso, as outras falanges ficaram oprimidas, passando a acatar as ordens da LSN, sob pena de morte.” Esse período foi crucial para a formação de uma estrutura hierárquica e um senso de identidade no submundo do crime organizado. A Ilha Grande, em sua sombria glória, tornava-se o berço de uma força criminosa sem precedentes no Brasil.
O Professor, figura central nessa transição, faleceu em 2019, aos 76 anos, devido a um ataque cardíaco. Sua ficha criminal acumulava condenações que somavam 95 anos e seis meses de prisão, resultado de crimes como assaltos a banco, extorsão e sequestro.
Expansão Para Além das Grades: A Fuga de Zé Bigode e Escadinha
O ano de 1980 marcou a propagação do Comando Vermelho para fora dos muros da prisão, com a fuga de barco de três presos da Ilha Grande, entre eles José Jorge Saldanha, conhecido como Zé Bigode. Ao alcançar o continente e se esconder na Ilha do Governador, Zé Bigode protagonizou um embate intenso contra 400 policiais, uma troca de tiros que se estendeu por mais de 12 horas. Este evento, que inspirou o filme “400 contra 1” (2010), é considerado o marco do início da facção em terras fora do isolamento prisional. Conforme relato de Professor em seu livro, “a organização Falange Vermelha nasceu da convivência entre assaltantes e presos políticos, que lhes ensinaram como comandar e funcionar de maneira mais organizada”, conceito que a própria polícia ajudou a difundir. Um exemplo claro dessa expansão e reconhecimento veio através de simpatizantes que, de dentro e fora dos presídios, passaram a integrar o grupo. Dentre eles, José Carlos dos Reis Encina, o Escadinha, que se tornou um dos mais notórios traficantes do Rio de Janeiro. Sua audaciosa fuga de helicóptero da Ilha Grande em 31 de dezembro de 1985, numa época em que o local era considerado de segurança máxima, solidificou sua lenda. Escadinha viria a falecer em 2004, atingido por tiros de fuzil na Avenida Brasil. A complexa e multifacetada teia do crime organizado é um desafio persistente para a segurança pública brasileira, conforme reportado por diversas instituições, como a Secretaria Nacional de Segurança Pública.
O Fim da Era da Ilha Grande
O lendário presídio da Ilha Grande teve seu destino selado em 1994, quando foi desativado após 30 anos de funcionamento, e logo em seguida implodido. Foram utilizados 200 quilos de explosivos para demolir a estrutura, e hoje, apenas cubículos e parte da fachada resistem como testemunho silencioso de sua intensa e violenta história.
Confira também: Imoveis em Rio das Ostras
A saga do Comando Vermelho, desde sua gênese na Ilha Grande até as recentes operações, revela a intrincada história do crime organizado no Rio de Janeiro e os desafios contínuos para as autoridades. Este panorama do surgimento da facção oferece uma visão essencial para entender o cenário da segurança pública brasileira. Para aprofundar-se em mais análises e notícias sobre a segurança pública e os desafios urbanos, continue explorando nossa editoria de Cidades.
Crédito da imagem: Reprodução/TV Globo

