A relação entre Bolsa Família, educação e renda tem se mostrado mais complexa do que se supõe, especialmente quando o país não demonstra equilíbrio fiscal. Os últimos dez anos apresentaram um cenário desfavorável para jovens pertencentes à camada mais vulnerável da população brasileira, impactando suas perspectivas de emprego formal, mesmo diante de avanços significativos na escolaridade. Uma parcela expressiva, um terço dos beneficiários do programa social, persiste na dependência do suporte governamental, replicando padrões de vida observados em gerações anteriores.
Desde sua implementação há duas décadas, a Folha de São Paulo acompanha a evolução de duas famílias em Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco, especificamente na comunidade Suvaco da Cobra. As trajetórias dos Silva e dos Dumont funcionam como um microcosmo das dinâmicas socioeconômicas no Brasil, ilustrando o impacto de períodos distintos: a expansão econômica até 2010, a intensa recessão de 2016-2017 e os desafios impostos pela pandemia. Pesquisas sobre pobreza, educação e mobilidade social ecoam essas experiências vividas.
O percurso das famílias Silva e Dumont ressalta de forma contundente a relevância do cenário macroeconômico e da estabilidade das contas públicas para que os indivíduos em situação de vulnerabilidade consigam ascender social e financeiramente. Seus planos e aspirações, que pareciam avançar no início da década de 2010, foram abruptamente interrompidos a partir de 2015, quando a ausência de responsabilidade fiscal por parte do governo da então presidente Dilma Rousseff (PT) desencadeou um declínio acentuado no Produto Interno Bruto (PIB) do país, configurando uma grande crise. Entender o peso do contexto econômico é crucial para compreender o sucesso ou fracasso das políticas de apoio.
Bolsa Família, Educação e Renda: Sem Equilíbrio Fiscal?
A deterioração econômica levou os jovens a abandonarem a possibilidade de cursar uma universidade, inserindo-os precocemente em atividades laborais informais, sem registro em carteira profissional – uma realidade que, para muitos, permanece até hoje. Atualmente, a maioria desses indivíduos depende tanto da assistência estatal quanto de programas sociais. Apesar de viverem em um ambiente econômico que tem demonstrado sinais de maior dinamismo recentemente, o Brasil novamente se vê diante do risco de um descontrole orçamentário, ameaçando a sustentabilidade desses avanços.
Em um recorte de vinte anos, os membros dessas famílias pernambucanas cresceram exponencialmente. A família de Ronaldo e Sueli Dumont expandiu-se de 9 para 30 integrantes. Já o núcleo de Pedro e Micinéia Silva viu seu número saltar de 5 para 8 pessoas. Entre as dezoito pessoas com dezesseis anos ou mais em ambos os grupos familiares, somente Luan Silva, de 27 anos, conseguiu um emprego com registro formal. Os demais se dedicam a trabalhos eventuais, conhecidos como “bicos”, atuando em setores como salões de beleza e pequenos mercadinhos, ou são beneficiários de programas sociais como o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada (BPC).
Conforme as exigências do antigo programa Bolsa Família, muitos dos jovens acompanhados concluíram o ensino médio, demonstrando adesão às condicionalidades educacionais. Apesar de enfrentarem deficiências no aprendizado, como dificuldades na leitura e escrita, diferenciam-se de seus pais, que eram analfabetos. Contudo, as aspirações de ingresso na educação superior foram frustradas. Alan e Luan Silva, por exemplo, alimentavam o desejo de cursar uma faculdade até 2015, mas foram compelidos a aceitar trabalhos informais com o advento da severa recessão entre 2016 e 2017.
Dados da FGV Social revelam que, na última década, os anos de estudo da metade mais pobre do Brasil registraram um incremento de 22%. Contudo, esse avanço não se traduziu proporcionalmente em melhora da renda, que aumentou apenas 4%, um reflexo direto do desafiador panorama econômico. Uma mudança mais recente, entre 2021 e 2024, apresentou um cenário mais favorável, com a renda dos mais pobres crescendo 31,3% e a escolaridade em 5,3%. No entanto, quem se inseriu no mercado de trabalho antes deste período de recuperação enfrenta mais obstáculos para conquistar um emprego formal nos dias atuais. É o que se observa na prole de Ronaldo e Sueli Dumont, majoritariamente em ocupações informais ou dependentes dos auxílios governamentais. No seio dessa família, muitas filhas de Ronaldo e Sueli engravidaram ainda na adolescência, sendo uma delas aos 16 anos. Na família Silva, Luan já é pai e sua companheira possui apenas 15 anos, indicando uma ausência notória de políticas e programas de planejamento familiar eficazes para essas comunidades.
A subsistência das duas famílias atualmente deriva mais da renda proveniente do Estado do que do trabalho formal. No clã dos Silva, Pedro, com 75 anos, é amparado por uma aposentadoria por invalidez, e seu filho mais novo, Isaac, de 14 anos, tem direito a um salário mínimo devido à Síndrome de Down, recebendo o Benefício de Prestação Continuada (BPC). Entre os Dumont, Rafaela (35), Priscila (34), Roseli (33), Kassiane (26), Raimonte (20), Emili (18) e Maria Julia (11) são recebedoras do Bolsa Família (com benefícios que podem chegar a R$ 850) ou do BPC (no valor de R$ 1.518). Ronaldo, o patriarca Dumont, de 57 anos, busca também um benefício de salário mínimo por motivos de saúde, tendo sido demitido este ano de uma empresa que faliu após 12 anos de carteira assinada, sem receber verbas rescisórias como férias e FGTS.
A evolução das famílias Dumont e Silva ao longo de duas décadas foi marcada pela lentidão, refletindo as flutuações da economia nacional e uma considerável dependência do suporte estatal. É digno de nota que o presidente Lula (PT), também pernambucano, historicamente mantém uma forte preferência eleitoral entre os membros dessas famílias, que o reconhecem como o idealizador do Bolsa Família.
Um estudo recente do IMDS (Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social), que rastreou 15,5 milhões de jovens beneficiários do Bolsa Família de 2012 a 2024, apontou que um terço deles (33,5%) permaneceu no programa – inicialmente como dependentes e, posteriormente, como titulares. Contudo, quase a metade (48,9%) conseguiu desligar-se do Cadastro Único (CadÚnico), registro fundamental para acessar benefícios sociais, o que é um indicador positivo de alguma mobilidade. A importância do equilíbrio fiscal para a estabilidade econômica é frequentemente enfatizada por instituições de alta autoridade, como o Banco Central do Brasil. Para aprofundar seu entendimento sobre as políticas macroeconômicas e o cenário fiscal brasileiro, acesse o site do Banco Central.
Em Jaboatão dos Guararapes, onde vivem os Silva e os Dumont, a mobilidade social permanece em patamares baixíssimos, espelhando a média nacional. Segundo o IMDS, a probabilidade de uma criança nascida na metade mais pobre do município atingir a faixa dos 10% mais ricos na idade adulta é de apenas 1,5% (ante 1,8% no restante do país), enquanto a chance de permanecer na mesma metade mais pobre ultrapassa os 70%.
Paulo Tafner, diretor-presidente do IMDS, esclarece que famílias com um curto período de exposição ao Bolsa Família (até dois anos) demonstraram maior chance de desligamento em 2024, sugerindo uma condição de vulnerabilidade transitória. Em contraste, aqueles com longa permanência no programa (entre seis e oito anos) revelaram uma maior propensão a manter o vínculo, corroborando a ideia de persistência da pobreza, caso exemplificado pelas famílias em Jaboatão. Adicionalmente, enquanto as regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste exibiram taxas de desligamento mais elevadas do programa, jovens nascidos no Norte e Nordeste apresentaram menor probabilidade de saída em comparação com a região Sudeste.
O programa Bolsa Família, instituído em 2003 com 3,6 milhões de beneficiários, expandiu-se significativamente e hoje ampara 19 milhões de famílias, representando um custo mensal de R$ 13 bilhões. Deste total, aproximadamente 47% dos recursos são destinados à região Nordeste. Tafner pondera que “O Bolsa Família não tem a virtude de fazer a superação estrutural da miséria, pois não é desenhado para isso”. Ele defende que a verdadeira chave para os beneficiários conseguirem superar a pobreza reside em fatores cruciais: um ambiente macroeconômico estável, a elevação da escolaridade dos pais e uma robusta infraestrutura municipal. A ação local, conforme Tafner, é essencial, visto que o município é o “melhor operador” por sua proximidade com os cidadãos assistidos. Aspectos como a existência de bibliotecas, escolas de qualidade e saneamento básico no município são historicamente correlacionados com a ruptura do ciclo da pobreza.
Tafner também enfatiza o impacto “devastador” de crises macroeconômicas, citando a de 2016-2017 como um exemplo marcante. Ele alerta que, “se adolescentes na fase de entrar no mercado não conseguem um trabalho formal, a trajetória de informalidade subsequente pode ser definitiva”. Entretanto, os anos mais recentes têm oferecido perspectivas mais encorajadoras para os beneficiários do programa. Na comunidade Suvaco da Cobra, observa-se o florescimento de dezenas de estabelecimentos comerciais, impulsionados não apenas pela alta incidência do Bolsa Família, mas também por seu substancial efeito multiplicador na economia local.
Marcelo Neri, diretor da FGV Social, informou que entre 2022 e 2024 houve um incremento real (acima da inflação) de 45,8% na renda proporcionada pelo Bolsa Família, considerando tanto os valores concedidos quanto o número de beneficiários. Foi durante a campanha eleitoral de 2022 que o programa assistencial registrou uma notável expansão, atingindo 21,6 milhões de cadastros. Tal movimento foi percebido como uma estratégia do então presidente Jair Bolsonaro (PL) para angariar eleitores, com promessas de elevação do benefício – algo também proposto pelo atual presidente Lula.
Neri destaca que “O aumento da renda via programas sociais como Bolsa Família e BPC foi muito forte. Mas não só. Há o efeito multiplicador dessas ações, e o fato de os brasileiros estarem empregados e trabalhando como nunca”. Projeções baseadas em pesquisas do IBGE estimam que para cada R$ 1 investido no Bolsa Família, são gerados aproximadamente R$ 1,80 na economia local. Isso fomenta o comércio regional, como é o caso da loja de materiais de construção de Osvaldo Morais, no Suvaco da Cobra, que serve à comunidade, inclusive oferecendo financiamentos informais para seus clientes.
O dinamismo econômico observado nos tempos recentes também tem levado muitos beneficiários a deixarem o programa social em busca de vagas no mercado de trabalho formal. Esses dados agregados contradizem a percepção de que os indivíduos amparados pelo programa recusam-se a trabalhar. Segundo Marcos Hecksher, do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), “Onde tem Bolsa Família é justamente onde o emprego formal tem crescido mais, sobretudo no setor de serviços”. Ele complementa que “A dificuldade que alguns empresários às vezes relatam tem mais a ver com as pessoas hoje terem algo para sobreviver [o Bolsa Família], e não estarem dispostas a trabalhar em troca de salários medíocres”. O Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) informou que, no primeiro semestre deste ano, 712 mil beneficiários do Bolsa Família conseguiram um emprego com carteira assinada. Em 2024, entre todos os novos contratados, 1,3 milhão era de integrantes do programa.
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Este panorama sobre o Bolsa Família e a mobilidade social reitera que, apesar da educação e dos avanços em programas de assistência, a prosperidade a longo prazo e a autonomia financeira dependem intrinsecamente de um ambiente macroeconômico estável e do investimento em infraestrutura e oportunidades. Acompanhe outras notícias sobre economia e as políticas públicas que moldam o futuro do Brasil em nossa editoria.
Crédito da imagem: Leo Caldas/Folhapress


