Bodó (RN) Suspende Loterias Municipais em Meio a Impasse Federal

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Bodó (RN) Suspende Loterias Municipais em Meio a Impasse Federal: A cidade de Bodó, localizada no Rio Grande do Norte, conhecida por sua rápida expansão na criação de sistemas de loterias e apostas com o aval do município, deu um passo significativo para trás. Na última sexta-feira, dia 24 de maio, Horison José da Silva (PL), prefeito do município potiguar, determinou a interrupção de todas as operações relacionadas às loterias locais. A medida ocorre em meio a um prolongado desentendimento legal com o Governo Federal e aguarda uma resolução definitiva do Supremo Tribunal Federal (STF).

A controvérsia centraliza-se na exploração das apostas de quota fixa, uma modalidade que, conforme a legislação federal vigente – a Lei 14.790 de 2023 –, deve ser conduzida exclusivamente pela União, pelos estados e pelo Distrito Federal. O entendimento federal é que a atuação de municípios neste segmento configura uma irregularidade, colocando as “bets municipais” no mesmo patamar de plataformas não autorizadas. A Secretaria de Prêmios e Apostas (SPA) do Ministério da Fazenda já se posicionou, afirmando que trata os sites com autorizações municipais como sites ilegais e tem solicitado o bloqueio dessas páginas à Anatel.

Bodó (RN) Suspende Loterias Municipais em Meio a Impasse Federal

A deliberação pela suspensão foi oficializada por meio de publicação no Diário Oficial de Bodó na última segunda-feira, 27 de maio. O documento aponta a detecção de “inconsistências na atuação da loteria municipal, denominada Lotseridó, em particular no que tange à oferta de apostas de quota fixa, potencialmente divergente da legislação federal”. A decisão enfatiza a “necessidade de implementação imediata de medida cautelar para coibir a perpetuação de possíveis violações e assegurar o interesse público”, como descrito no referido documento. No contexto dessas operações, é importante notar que as companhias em funcionamento na localidade não possuíam qualquer aval federal para exercer tais atividades.

Desde a promulgação da lei que regulamentou as apostas de quota fixa no Brasil, muitos municípios passaram a interpretar que, por não haver menção expressa à proibição para cidades na legislação, existiria uma “brecha” legal que lhes permitiria instituir e explorar o serviço de loterias. Um estudo minucioso realizado pelo g1 revelou a existência de mais de 70 normativas municipais já aprovadas visando a criação de loterias e apostas locais em diferentes partes do Brasil, evidenciando uma movimentação coordenada em torno dessa interpretação.

Em Bodó, a Lei da Lotseridó foi aprovada e sancionada em 3 de julho de 2024, ainda sob a gestão do ex-prefeito Marcelo Mário Porto Filho (PSD). Segundo os registros da prefeitura, 32 empresas estavam credenciadas, sendo que algumas delas administravam até três plataformas de apostas online, respeitando o limite nacionalmente imposto por operador. A cidade, que possui cerca de 2,3 mil residentes, chegou a registrar pelo menos 53 endereços eletrônicos de apostas com permissão municipal. Essa proporção é notável, com um site de apostas para cada 44 habitantes da cidade, ilustrando a intensa atividade do setor no município.

No que tange à arrecadação, Bodó obteve uma receita expressiva de R$ 8 milhões com o funcionamento das apostas municipais, acumulados entre novembro de 2024 e agosto de 2025. Este montante era resultado de duas fontes principais: uma taxa de outorga inicial de R$ 5 mil para o credenciamento e a liberação da operação, além de um repasse mensal correspondente a 2% da receita bruta registrada pelas companhias. De acordo com Rômulo Farias, secretário de Finanças do município, o alcance desse volume de arrecadação foi impulsionado pelo fato de as plataformas parceiras do município oferecerem seus serviços em território nacional.

É importante comparar os custos de operação: enquanto as entidades aprovadas pelo Governo Federal arcam com uma taxa de outorga de R$ 30 milhões para operar, em Bodó, o valor exigido era de apenas R$ 5 mil, o que equivale a 0,01% da taxa federal. O total movimentado desde o início das operações de apostas online chegou a aproximadamente R$ 408 milhões. Para a pequena cidade de Bodó, esse valor representa 22% do orçamento executado em 2024, que totalizou pouco mais de R$ 37 milhões. A cifra também equivale a 25% da receita bruta obtida, por exemplo, pela loteria oficial de Minas Gerais, que possui operação restrita apenas ao estado.

O fluxo de arrecadação municipal das apostas registrou variações significativas. Um pico de R$ 2,5 milhões foi alcançado em janeiro de 2025, enquanto o ponto mais baixo foi registrado em agosto do mesmo ano, com R$ 35 mil. Rômulo Farias, em entrevista anterior ao g1, comentou sobre essa volatilidade: “A queda na arrecadação ao longo de 2025 ocorreu, muito provavelmente, porque as empresas estavam em negociação com outras prefeituras para obtenção de novas licenças. Percebemos essa dinâmica financeira e optamos por iniciar uma auditoria para verificar se houve alguma eventual evasão fiscal”. Apesar das flutuações, ele destacou a relevância desses recursos: “De qualquer maneira, para um município que enfrenta dificuldades financeiras, 2% deste valor é extraordinariamente importante”.

Antes da suspensão, a equipe do g1 investigou os 53 sites de apostas licenciados pelo município. A averiguação revelou que ao menos uma dessas plataformas estava em pleno funcionamento em grandes centros como São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, no Distrito Federal, em Pernambuco e em outras cidades do próprio Rio Grande do Norte, ou seja, além dos limites de Bodó. Após a medida cautelar imposta pela prefeitura, o site que operava em São Paulo, por exemplo, deixou de funcionar.

As companhias autorizadas pela prefeitura de Bodó possuíam suas sedes registradas em diversas partes do país na Receita Federal. Do total, 15 empresas tinham sede no Sudeste, 11 no Nordeste (com apenas quatro efetivamente em Bodó), cinco no Sul e uma na região Norte. Apesar dessa dispersão geográfica e da possibilidade de qualquer cidadão brasileiro realizar apostas, uma cláusula peculiar nos Termos de Referência para credenciamento das empresas exigia que o sistema de registro das apostas online sempre considerasse a efetivação no território de Bodó/RN para fins fiscais e legais. Este requisito se aplicava “independente da geolocalização do IP ou do dispositivo de origem da aposta”, conforme o Artigo 6.7 do anexo I do documento, visando a centralização da tributação na cidade.

A discussão em torno das apostas de quota fixa e das loterias municipais é ampla. A Lei Federal 14.790 de 2023, que regulamenta as apostas de quota fixa no Brasil, concede a exploração exclusiva à União, aos estados e ao Distrito Federal. Mesmo com a clareza da legislação, muitos gestores municipais e advogados, como a professora Telma Rocha, de Direito Constitucional e Administrativo da Universidade Mackenzie Alphaville, defendem a permissão de atuação dos municípios devido à ausência de uma proibição explícita na lei e à falta de uma ordem de suspensão por parte do Supremo Tribunal Federal até o momento. Este ponto alimenta a crença de que as cidades teriam prerrogativa para legislar e operar esse tipo de serviço.

O Ministério da Fazenda, entretanto, havia enviado uma notificação à prefeitura de Bodó em fevereiro, alertando sobre a inconformidade da concessão de registros de apostas com a legislação nacional. Rômulo Farias, secretário de Finanças, confirmou o recebimento da notificação, mas informou que, após consulta ao departamento jurídico do município, a decisão foi manter o serviço de loterias ativo até a deliberação de suspensão da última sexta-feira. A pasta não retornou os questionamentos do g1 sobre novas providências antes da publicação da reportagem, e algumas das empresas aprovadas também não responderam a indagações sobre a possível notificação.

Atualmente, o cenário permanece em definição no judiciário. O tema está sob escrutínio na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 1212, que visa estabelecer se as municipalidades têm ou não autoridade para explorar atividades lotéricas. Em outubro do ano passado, no dia 16, o ministro relator Nunes Marques acolheu os pedidos para atuação de amicus curiae. Foram integrados ao processo os estados do Espírito Santo, Rondônia e Santa Catarina, além da Associação Nacional pela Segurança Jurídica dos Jogos e Apostas (Anseja). Essas entidades agora têm permissão para apresentar informações técnicas e jurídicas que possam contribuir para a fundamentação da decisão judicial. No entanto, o STF comunicou ao g1 que ainda não há um prazo definido para o julgamento da ADPF.

Para o especialista Luiz César Loques, pesquisador da FGV Direito Rio e autor de “Direito e regulação das apostas no Brasil”, a criação de loterias em nível municipal pode colidir com ou flexibilizar as diretrizes nacionais. Ele pontua que, na esfera federal, as empresas devem fazer parte de organismos de monitoramento da integridade esportiva, tanto nacionais quanto internacionais. Legislações municipais, dependendo de como são formuladas, poderiam reduzir essas exigências, o que potencialmente fragilizaria a proteção ao consumidor. Adicionalmente, Loques defende que a existência de uma sede ou, no mínimo, um representante local no município é fundamental para a segurança do apostador, oferecendo um ponto de contato e recurso em caso de necessidade de acionar a empresa juridicamente.

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O cenário em Bodó (RN) exemplifica a complexidade do ambiente regulatório das apostas no Brasil e as incertezas que pairam sobre as competências municipais na exploração desse serviço. A suspensão das loterias municipais em Bodó sinaliza uma tensão crescente entre a autonomia local e a prerrogativa federal, cujas repercussões futuras para outros municípios e para o setor de apostas como um todo permanecem em aberto. Acompanhe a nossa editoria de Política para se manter informado sobre este e outros desdobramentos no âmbito da legislação brasileira.

Loterias municipais em funcionamento na cidade de Bodó (RN) – Foto: Reprodução/Internet

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