O atrito comercial envolvendo o Pix e os Estados Unidos ganhou contornos intensos, evidenciando uma antiga insatisfação de empresas norte-americanas com o sistema de pagamentos instantâneos brasileiro. A iniciativa de Donald Trump em seu governo anterior expôs as preocupações de gigantes como Mastercard e Visa, cujas receitas foram impactadas pelo rápido avanço do Pix, percebido como um concorrente estatal de ascensão notável.
Por anos, a atuação do Banco Central do Brasil (BC) como operador e regulador do Pix foi questionada, inclusive perante entidades multilaterais. A suspensão dos pagamentos via WhatsApp, da Meta, pouco antes do lançamento oficial do Pix no Brasil, fortaleceu entre os norte-americanos a percepção de uma inclinação nas ações do BC, conforme informações obtidas pela agência Reuters. A insatisfação se concretizou com a inclusão do Pix em uma investigação comercial aberta em julho pelos EUA, focada em práticas comerciais brasileiras consideradas desleais. Além disso, a situação é enquadrada em um cenário político mais amplo, onde o grupo BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) tem sinalizado esforços para buscar alternativas à hegemonia do dólar, destacaram fontes à Reuters.
Pix e EUA: Críticas e Atrito Comercial Escalado
A atenção direcionada ao Pix por parte do governo Trump provocou fortes reações no Brasil, país onde o sistema instantâneo, com mais de 177 milhões de usuários, tornou-se um dos raros pontos de consenso em uma nação politicamente dividida. Em seu discurso de Independência em setembro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva enfatizou: “Defendemos o Pix de qualquer tentativa de privatização. O Pix é do Brasil. É público, é gratuito e vai continuar assim”, revelando como as investidas comerciais americanas impulsionaram sua popularidade. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, comentou que novos sistemas de pagamento podem, de fato, desafiar os interesses das operadoras de cartão, mas frear sua evolução é um contrassenso. Em julho, ele comparou a situação a “defender o telefone fixo em detrimento do celular” em uma entrevista de rádio.
Embora as autoridades brasileiras nunca tivessem expressado sua indignação de forma tão incisiva antes, o Brasil já tinha conhecimento da frustração das empresas americanas com o sistema de pagamentos nacional há anos. Esta realidade perdurou mesmo com a troca de governos nos dois países, segundo sete fontes da Reuters. O próprio Escritório do Representante Comercial dos EUA (USTR), que posteriormente incluiu o Pix em sua investigação sob a Seção 301, já havia manifestado em seu relatório anual de 2022, sob a administração do democrata Joe Biden, que monitorava o papel duplo do BC como operador e regulador do sistema.
Preocupações e Ações Concretas de Entidades Americanas
Reforçando apreensões similares, o Conselho Empresarial dos Estados Unidos para Negócios Internacionais (Uscib), que tem em seu conselho figuras como Ravi Aurora, vice-presidente sênior de políticas públicas globais da Mastercard, endossou a investigação do governo Trump em um documento público datado de agosto. Contudo, o descontentamento do Uscib se manifestou muito antes, em dezembro de 2021, logo após o primeiro aniversário do Pix. Naquela ocasião, o conselho enviou uma carta à divisão de concorrência da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) questionando a liderança do Banco Central no sistema, de acordo com duas fontes da Reuters. Alice Clark, vice-presidente sênior de Comércio, Investimento e Digital da Uscib, declarou que a associação “defende há anos que o Brasil comprometa o Banco Central a implementar medidas eficazes para lidar com seu conflito de interesses”. Ela se refere à dualidade do BC, que além de operar o Pix, atua como único regulador sistêmico do setor financeiro, definindo condições de entrada, padrões operacionais e estruturas de precificação para todos os arranjos de pagamento. A Uscib argumenta que o Pix deveria ser submetido à regulação e supervisão de um órgão independente, de maneira equivalente à imposta aos agentes privados. Procurada, a OCDE preferiu não comentar sobre o assunto.
Documentos recentes submetidos ao governo dos EUA também mostram que a Câmara de Comércio dos EUA expressou reclamações análogas sobre o Pix. Já o Conselho da Indústria de Tecnologia da Informação (ITI), que inclui em sua lista de membros gigantes como Visa, Mastercard, Meta, Apple e Google, afirmou que o Banco Central brasileiro utiliza seu papel duplo para beneficiar seu próprio produto. Um exemplo citado é a exigência para que todos os bancos participantes exibam o Pix de forma proeminente em seus aplicativos. “Isso não é um desenvolvimento de mercado orgânico, mas uma exigência regulatória que parece destinada a direcionar a escolha do consumidor”, afirmou o ITI.
A Defesa do Banco Central e o Crescimento do Pix
Diante das críticas, o Banco Central tem defendido publicamente sua posição como agente neutro, que apenas provê uma infraestrutura digital pública. O BC ressalta que não obtém lucro com o Pix, mas sim promove um ambiente de mercado mais competitivo, postura reiterada em resposta a preocupações passadas, segundo fontes. Outro argumento consistentemente destacado pela autarquia é que o Pix foi fundamental para a inclusão de mais de 70 milhões de pessoas no sistema financeiro, parte das quais passou a utilizar também outros produtos, como cartões.
Os dados corroboram essa perspectiva: as transações com cartões mantiveram crescimento mesmo após o lançamento do Pix, embora sua participação no total de pagamentos tenha experimentado uma redução expressiva. Atualmente, o Pix é responsável por 51% das transações no Brasil em termos de volume. Desde a sua introdução, a fatia dos pagamentos com cartão de crédito diminuiu de 20% para 14%, enquanto a dos cartões de débito caiu de 26% para 11%, conforme estatísticas do Banco Central. Nos anos iniciais do Pix, a Mastercard, detentora de 51% do mercado de cartões no país (segundo a plataforma NORBr), foi a empresa que, privadamente, mais intensamente criticou o papel dual do Banco Central, conforme revelaram as sete fontes da Reuters.
Ataques Intensificados e a Meta de Pagamentos pelo WhatsApp
As queixas, que perduravam por anos, agora se materializaram em ações concretas por parte de um governo americano mais alinhado a argumentos libertários e avesso a regulamentações estrangeiras em setores dominados por companhias norte-americanas, informaram três fontes. Outros grandes mercados emergentes, como Índia, Tailândia e México, também implementaram sistemas de pagamento semelhantes. Inclusive, o Qris da Indonésia foi mencionado pelos EUA neste ano como uma possível barreira comercial prejudicial a empresas americanas. No entanto, nenhum desses sistemas alcançou a escalada meteórica do Pix, que, lançado no final de 2020, superou 100 transações por usuário já em seu segundo ano de operação – a taxa de adoção mais rápida no mundo para sistemas deste tipo, de acordo com dados do Banco de Compensações Internacionais (BIS), conhecido como o banco central dos BCs.
Parte da insatisfação de gigantes dos EUA também tem suas origens na suspensão, pelo Banco Central, do sistema de pagamentos via WhatsApp da Meta. A paralisação ocorreu apenas oito dias após seu lançamento em junho de 2020, meses antes da implementação do Pix no Brasil, relataram cinco das fontes ouvidas. Naquela época, a Meta havia estabelecido parcerias com Visa e Mastercard, que já possuíam licenças do BC, para viabilizar as transferências. Além disso, selecionou a Cielo, então líder no mercado de adquirência, como única processadora dos pagamentos que seriam realizados por meio do popular aplicativo de mensagens, amplamente utilizado pela população brasileira com celular.

Imagem: www1.folha.uol.com.br
Ainda que a Meta tenha explorado uma lacuna regulatória que permitia sua operação sem licença até atingir um determinado porte, o Banco Central avaliou que a vasta base de usuários do WhatsApp poderia impulsionar rapidamente seu serviço de pagamentos e, consequentemente, concentrar o mercado, contrariando um esforço regulatório iniciado na década de 2010 para ampliar a concorrência no setor. “O fato de tudo isso ter acontecido num período de tempo próximo ao lançamento do Pix fez com que houvesse interesses diversos a apontar essa coincidência e dizer que havia algum interesse escuso”, explicou uma das fontes, complementando: “Uma queixa completamente falsa. Você tinha um caso anticoncorrencial de livro-texto”. O BC liberou as transferências entre usuários dentro do aplicativo em março de 2021.
As transações com cartões via WhatsApp obtiveram luz verde somente dois anos mais tarde, após a empresa apresentar um modelo de negócios que também envolvia outras companhias adquirentes e em um momento em que o Pix já dominava, com folga, a vanguarda das transações totais de pagamento no Brasil. A Meta, que não comentou o assunto à Reuters, descontinuou as transferências entre cartões de débito no WhatsApp no fim do ano passado, argumentando um redirecionamento de foco para soluções baseadas no Pix.
BRICS e o Desafio ao Dólar Americano
O desconforto de Washington também espelha uma inquietação frente aos esforços manifestos pelo grupo de economias emergentes BRICS para mitigar a dependência do dólar. Três fontes confidenciaram à Reuters que a insatisfação foi semeada antes mesmo da eleição de Trump. Quando a Rússia, assumindo a presidência do grupo em 2024, fez menção em uma reunião a portas fechadas ao projeto de blockchain mBridge, apoiado pelo BIS, como um modelo para pagamentos entre países com moedas distintas. Este evento serviu como um gatilho para que a iniciativa fosse vista por alguns nos EUA como politicamente motivada e uma tentativa de contornar o dólar, questão particularmente sensível para a Rússia, atualmente sob pesadas sanções financeiras.
Poucos dias depois do encontro do BRICS em Kazan, no final de outubro do ano passado, o BIS formalmente recuou do mBridge. Atualmente, o projeto é liderado por China, Hong Kong, Tailândia, Emirados Árabes e Arábia Saudita, com o BIS declarando que o projeto atingiu sua fase de teste de viabilidade sem a necessidade de sua participação ativa. Desde que assumiu a posse, Trump criticou repetidamente os esforços do BRICS em buscar alternativas ao dólar. Por sua vez, Lula, presidente rotativo do bloco, continuou a destacar a imperatividade de agilizar os pagamentos comerciais. “Não vou abrir mão de achar que a gente precisa procurar construir uma moeda alternativa para que a gente possa negociar com os outros países. Eu não preciso ficar subordinado ao dólar,” declarou ele em evento do PT em agosto.
Apesar da retórica acalorada, seis fontes informaram à Reuters que o projeto é percebido mais como uma declaração de intenção do que um plano concreto, carecendo de cronograma ou mesmo de um modelo operacional esboçado. O Brasil considera o caminho multilateral uma potencial forma de reduzir os custos das transações internacionais, mas por enquanto acompanha o tema de maneira periférica, disseram as fontes, mencionando estudos do G20 e iniciativas como o Nexus. Essa rede visa integrar sistemas de pagamento instantâneo já existentes por meio de uma infraestrutura de mensageria que permite transferências transfronteiriças mais rápidas e econômicas. Andrew McCormack, CEO do Nexus Payments, prevê que a rede entre em operação no início de 2027, inicialmente conectando seus cinco países proprietários — Cingapura, Malásia, Filipinas, Tailândia e Índia. “Nossa visão é expandi-la para incluir outros países com sistemas modernos de pagamento instantâneo prontos para adesão”, afirmou, notando que a Indonésia e o Banco Central Europeu atuam como observadores especiais do Nexus.
Enquanto isso, as gigantes norte-americanas reconhecem o risco de perda de terreno representado pela interconexão transfronteiriça de sistemas de pagamento que já afetam seus negócios internamente. “À medida que a interconexão dessas infraestruturas for mais explorada, elas poderão perturbar nossa atual participação de mercado em transações cross-border”, alertou a Mastercard em seu mais recente relatório anual, onde o Pix foi citado entre as soluções cada vez mais vistas como alternativas a “esquemas como os nossos.” “Sistemas que conectam redes de pagamento em tempo real estão avançando e irão competir com nossos negócios transfronteiriços”, ecoou a Visa em seu próprio documento, destacando o Pix como um sistema “impulsionado por forte patrocínio governamental e iniciativas regulatórias.” No Brasil, onde a Visa detém 31% do mercado de cartões, a empresa parece ter adotado, à semelhança da Meta, a estratégia de se aliar ao Pix face à sua avassaladora ubiquidade. No fim de agosto, a companhia obteve autorização do Banco Central para operar como provedora de iniciação de pagamentos Pix. Fernando Amaral, vice-presidente de Inovação e Produtos da Visa do Brasil, declarou que o serviço será a primeira solução da empresa sob o Visa Conecta, um hub digital lançado em junho “como parte do nosso compromisso com o Brasil.”
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Em suma, o avanço meteórico do Pix no cenário financeiro brasileiro, apesar de ter impulsionado a inclusão e a competitividade local, gerou um significativo atrito comercial com os Estados Unidos. As queixas de empresas como Mastercard e Visa, aliadas às preocupações de órgãos como o USTR e o contexto político dos BRICS na busca por alternativas ao dólar, posicionam o Pix no centro de um debate global sobre inovação, concorrência e soberania. Para mais notícias e análises aprofundadas sobre economia e o impacto das políticas públicas, continue navegando em nossa editoria de Economia.
Crédito da imagem: Evaristo Sá (esquerda) e Saul Loeb (direita)/AFP
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