Nesta quinta-feira (27), o Brasil concluiu a repatriação de Karina Aylin Rayol Barbosa, de 28 anos, marcando o fim de uma saga de nove anos. Conforme as autoridades, Karina é a única cidadã brasileira ainda viva que se filiou ao grupo extremista Estado Islâmico (EI) nos territórios da Síria e do Iraque. O desembarque ocorreu na manhã de hoje no Aeroporto Internacional de Guarulhos, em São Paulo, por meio de um voo oriundo de Damasco, na Síria, com escala prévia em Doha, no Catar. A brasileira chegou acompanhada de agentes da Polícia Federal (PF) e membros da diplomacia do país, que coordenaram a operação.
Ao seu lado estava seu filho, um menino de sete anos de idade, nascido na Síria e fruto do casamento de Karina com um combatente do grupo terrorista. Antes de ser entregue aos seus familiares, residentes atualmente em São Paulo, Karina foi ouvida por aproximadamente duas horas em uma delegacia da Polícia Federal em Guarulhos. A audição com um delegado faz parte dos protocolos de investigação e coleta de informações inerentes a casos de retorno de indivíduos com histórico ligado a organizações consideradas terroristas.
A história de Karina Barbosa no Oriente Médio teve início em abril de 2016. À época, ela vivia com a família em Belém, no Pará, e era estudante de Jornalismo na Universidade Federal do Pará (UFPA), cultivando o desejo de se tornar comentarista esportiva em um canal de televisão. Em uma tarde, logo após o almoço, Karina comunicou aos pais que sairia para realizar um trabalho da faculdade. Foi a última vez que eles a viram antes de seu desaparecimento, que daria início a uma complexa investigação da Polícia Federal.
As apurações subsequentes revelaram o trajeto de Karina: um voo clandestino para São Paulo, seguido, no dia seguinte, por uma conexão internacional para Istambul, na Turquia. De território turco, ela prosseguiu por via terrestre até Aleppo, na Síria, engajando-se na conhecida “rota da jihad”. Durante o restante do ano de 2016, a brasileira permaneceu em Idlib, uma região crucial para a movimentação de facções armadas.
O Auge do “Califado” e a Vida em Raqqa
Karina juntou-se ao Estado Islâmico em seu período de maior expansão, quando a facção dominava extensas porções de terras na Síria e no Iraque, equivalentes à área do Reino Unido. Naquele contexto, a organização mantinha sob seu controle uma população estimada em 12 milhões de pessoas, tendo estabelecido uma intrincada estrutura burocrática que simulava as características de um Estado independente. A maior parte do tempo de Karina na Síria foi vivida em Raqqa, considerada a capital simbólica e religiosa do califado estabelecido por Abu Bakar al-Baghdadi em 2014, o líder iraquiano do grupo, que foi morto em 2019 pelas forças dos Estados Unidos na região de Idlib.
Investigações da Polícia Federal e depoimentos da família de Karina indicam que sua adesão ao EI foi impulsionada pela propaganda de teor paradoxal do grupo, que disseminava mensagens de hiperviolência e, ao mesmo tempo, de “justiça” em suas redes sociais. Uma ampla rede de aliciadores espalhada pelo mundo também é apontada como fator determinante, operando tanto na internet quanto em mesquitas sunitas em diversas nações. A paraense não possui ascendência árabe, e sua família, de classe média baixa de Belém, é de fé católica e devota de Nossa Senhora de Nazaré, a padroeira do Pará, figura de grande reverência na região.
O primeiro contato de Karina com a religião islâmica ocorreu em 2014, por intermédio de cursos gratuitos de língua árabe. Tais cursos eram oferecidos por Saif Mounssif, um engenheiro marroquino que na época era o imã do Centro Islâmico Cultural do Pará e também professor do Departamento de Engenharia Naval da UFPA. Após frequentar a mesquita de Belém, Karina completou sua conversão ao islamismo em menos de um ano, em um processo que seus familiares descreveram como inesperado.
Familiares observaram uma notável transformação em seu comportamento. Ela começou a usar o hijab em público, interrompeu seus relacionamentos com colegas da universidade e acentuou um isolamento progressivo de seu círculo social e vida cotidiana. Sua irmã, Karen Rayol, recorda que Karina passava “sempre no computador, sempre no celular, conectada o tempo todo”. Segundo a família, não foi possível antecipar que ela estava enveredando por um caminho significativamente distinto daquele que se esperava.
A Queda do Califado e a Captura
Com a conquista de Raqqa pelas forças curdas e americanas em 2017, Karina se juntou a um contingente de membros considerados mais leais ao Estado Islâmico. Este grupo se dirigiu para o Vale do Eufrates, em uma região próxima à fronteira com o Iraque. No novo local, os remanescentes da organização extremista foram novamente cercados e alvo de ataques pelas forças curdas e pelos EUA. Karina permaneceu em Baghuz, que se tornou o último reduto do EI, vivenciando os combates finais daquela campanha.

Imagem: onde esteve brasileira repatriada via www1.folha.uol.com.br
Sob intensos bombardeios, e em meio à escassez de alimentos e ameaça iminente de morte, ela conseguiu fugir com o filho pelo deserto sírio. Sua liberdade, entretanto, foi efêmera. Em janeiro de 2019, Karina e seu filho foram detidos por forças curdas. Ela foi então encaminhada ao vasto campo de prisioneiros de Al-Hol, situado no Curdistão sírio. O campo, em seu auge, abrigou até 70 mil mulheres e crianças com laços com o grupo extremista; atualmente, este número se mantém em aproximadamente 40 mil detidos.
Karina e o filho permaneceram em cativeiro desde 2019. Durante este período, a brasileira tentou escapar das instalações de detenção em algumas ocasiões, mas todas as tentativas foram frustradas e ela foi recapturada. A mais recente ocorreu em setembro de 2024, quando Karina se uniu a um grupo de outras estrangeiras com inclinações radicais. Com a assistência de células remanescentes do Estado Islâmico, elas conseguiram fugir, porém, Karina foi detida novamente pouco antes de cruzar para uma área ainda controlada pela facção. Como consequência, ela enfrentou um período de seis meses em confinamento solitário, durante o qual permaneceu separada de seu filho.
O Esforço para Repatriação e a Ação da DPU
Desde 2019, Karina e sua família empreendiam esforços contínuos para concretizar sua repatriação ao Brasil, contudo, sem apoio do governo brasileiro até recentemente. Durante todos esses anos de cativeiro nos campos de prisioneiros do Estado Islâmico na Síria, o Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty) não enviou qualquer representante diplomático para auxiliar a brasileira e seu filho, o que gerou críticas por parte da defesa.
Diante da inação, a Defensoria Pública da União (DPU) entrou com uma ação na Justiça Federal no final do ano passado. O objetivo era obrigar o governo a prestar assistência consular e, eventualmente, repatriar Karina e seu filho. Marcos Wagner Teixeira, defensor regional dos Direitos Humanos da DPU, ressaltou que “nunca houve nenhum esforço para a repatriação, que é um direito dos dois como cidadãos brasileiros”.
O defensor também argumentou a necessidade de que eventuais acusações de crimes ou associação com grupos terroristas sejam investigadas e julgadas em território brasileiro, afirmando que “A União não pode se basear em informações dessa natureza para negar a assistência a um cidadão nacional”. Para reforçar seu argumento, Teixeira citou exemplos de brasileiros que receberam apoio diplomático do país em regiões dominadas por grupos categorizados como terroristas por entidades internacionais, como o Hamas e o Hezbollah.
É importante destacar que Karina Aylin Rayol Barbosa nunca foi formalmente acusada de terrorismo no Brasil e não possui indiciamento por qualquer crime no país. Após a audição na PF, ela foi oficialmente entregue aos seus familiares. A brasileira está agora em liberdade para recomeçar sua vida em São Paulo. No entanto, ela será objeto de monitoramento por parte da Polícia Federal, e há uma forte possibilidade de que agências internacionais de inteligência, que acompanharam seus movimentos ao lado do Estado Islâmico, também continuem a supervisionar suas atividades no Brasil.
Com informações de Folha de S.Paulo
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