Na noite de sexta-feira, 7 de junho, a escritora Ana Maria Gonçalves fez história ao assumir a cadeira número 33 da Academia Brasileira de Letras (ABL), localizada no Rio de Janeiro. Em um momento de profunda reverência às suas origens e à ancestralidade, Ana Maria iniciou seu discurso de posse com a saudação “Benção, mãe. Benção, pai”, marcando o tom emocionante e contundente de sua entrada na venerável instituição. Sua chegada foi celebrada com calorosas palmas, que sublinhavam a importância de sua presença na Casa de Machado de Assis, dedicando o instante à memória daqueles que a precederam.
Autora do aclamado romance histórico “Um Defeito de Cor”, Ana Maria Gonçalves transcende o papel de 13ª mulher a ocupar uma posição na Academia, fundada em 1897. Ela se consagra como a primeira mulher negra eleita para o distinto quadro de imortais, inaugurando uma nova fase na trajetória da ABL. A cerimônia simboliza não apenas uma conquista pessoal, mas um avanço significativo na representatividade cultural e literária brasileira, ecoando a frase da própria escritora: “Agradeço, por fim, à minha ancestralidade, fonte inesgotável de conforto, fé, paciência e sabedoria.”
Ana Maria Gonçalves Assume Cadeira na ABL: Marco Histórico
Em seu eloquente discurso, Ana Maria rememorou a linhagem de grandes nomes que ocuparam a cadeira 33 antes dela, enfatizando a relevância do fundador Domício da Gama e do notável linguista Evanildo Bechara, seu antecessor direto. Esta retomada histórica fundamenta o novo capítulo que se inicia com a sua posse, ressaltando a continuidade e a evolução da instituição.
O Legado na Cadeira 33 da ABL e Seus Precursores
A escritora dedicou um momento para saudar Domício da Gama, o fundador da cadeira 33, descrevendo-o como um jornalista, diplomata, contista e cronista nascido em Maricá, em 1862. Ela destacou que o dia seguinte à posse marcaria o centenário da morte de Domício, conectando-se a esse passado distante. Ao abordar o linguista Evanildo Bechara, Ana Maria Gonçalves enfatizou seu extenso legado intelectual e o profundo amor pela língua portuguesa. Bechara, entre 1954 e 1985, foi responsável por mais de duas dezenas de obras, incluindo a icônica “Moderna Gramática Portuguesa”. Ele teve um papel central na formulação do novo acordo ortográfico e representou o Brasil como um dos maiores especialistas na língua.
A Trajetória da Exclusão Feminina e o Avanço na Academia
A narrativa da posse de Ana Maria Gonçalves não seria completa sem a contextualização da histórica exclusão feminina na Academia. Ela lembrou que, inicialmente, a não admissão de mulheres era um “acordo entre cavalheiros”, visto que o estatuto não impedia tal participação. Como exemplo, a escritora mencionou a candidatura vetada de Amélia Beviláqua em 1930. Em sua fala, Ana Maria Gonçalves fez questão de homenagear as pioneiras que abriram caminho para a presença feminina na ABL após a mudança do estatuto. Citou nomes como Rachel de Queiroz, que em 1977 se tornou a primeira mulher a ser eleita, Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon, Zélia Gattai, Ana Maria Machado, Rosiska Darcy de Oliveira, Fernanda Montenegro, Lilia Schwarcz e Miriam Leitão. Sua fala ressoou com um tom de reconhecimento e de alerta, declarando: “Depois do apagamento de Júlia Lopes de Almeida, das candidaturas negadas de Amélia Beviláqua e Diná Silveira de Queiroz, viemos nós: Raquel, Lygia, Nélida, Zélia, Ana, Cleonice, Rosiska, Fernanda, Lília, Miriam e eu. Ainda somos poucas para tanto trabalho de reconstrução do imaginário sobre o que representamos.”
Representatividade Negra e o Compromisso com a Diversidade na ABL
Com grande emoção, Ana Maria Gonçalves refletiu sobre a escassa presença negra na ABL ao longo de sua história e a urgência de ampliar essas vozes na instituição. Ela apontou que, por muito tempo, Domício Proença foi o único acadêmico negro, e que a própria negritude de Machado de Assis foi repetidamente “negada” por considerável período. A escritora destacou o papel fundamental das candidaturas de Conceição Evaristo, em 2018, e Ailton Krenak nas discussões recentes sobre diversidade. Em suas palavras, a discussão gerada pela candidatura de Evaristo “fez com que a Academia se olhasse no espelho e percebesse o quanto ainda falhava em representar todas as línguas faladas pelo nosso povo”. Ao concluir seu discurso, Ana Maria Gonçalves formalizou um compromisso claro com a diversidade e a abertura da “Casa”. Afirmou estar ali, 128 anos após a fundação da ABL, como a primeira escritora negra eleita, destacando sua escrita “a partir de noções de oralidade e escrevivência”. Sua missão, declarou, é “promover a diversidade nesta Casa, abrir suas portas ao público — verdadeiro dono da língua — e ampliar o empenho na divulgação e promoção da literatura brasileira”. Ela reforçou o papel da literatura na redefinição de identidades, citando pensadoras negras como Neusa Santos e Chimamanda Adichie. “Saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade, mas também a experiência de comprometer-se a resgatar sua história e recriar-se em suas potencialidades e venho trabalhar para que não sejamos empobrecidos pela contação de uma história única”, afirmou Ana Maria.
Vozes da Celebração: Elogios à Nova Imortal
A apresentação formal de Ana Maria Gonçalves ficou a cargo da historiadora Lilia Schwarcz, a quinta ocupante da cadeira nº 9, eleita em 2024. Lilia ressaltou o profundo impacto do livro “Um Defeito de Cor” e estabeleceu um elo entre o passado e o presente ao fazer referência às recentes operações policiais nas comunidades do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro. “As mães que hoje choram seus filhos nas favelas do Rio são ecos das mulheres que, no tempo da escravidão, também perderam os seus. Ana Maria traz essas vozes para dentro da literatura e, agora, para dentro da Academia”, observou Schwarcz. A emocionante cerimônia contou também com a participação da acadêmica Ana Maria Machado, que entregou o colar acadêmico, e do imortal Gilberto Gil, responsável pela entrega do diploma. A comissão de entrada foi formada por Rosiska Darcy de Oliveira, Fernanda Montenegro e Miriam Leitão, enquanto a de saída contou com Domício Proença Filho, Geraldo Carneiro e Eduardo Giannetti.
O Dia Histórico na ABL e a Força da Representatividade
Miriam Leitão, ocupante da cadeira nº 12, sublinhou a representatividade simbólica da posse de Ana Maria Gonçalves. “Foi em 1977 que a primeira mulher sentou numa cadeira aqui, a Rachel de Queiroz. Eu sou a 12ª e a Ana é a 13ª. É muito pouco tempo na história da Academia. Mas a entrada dela tem uma camada de representatividade fundamental. Ela traz a força da mulher e da literatura negra para dentro desta Casa”, declarou Leitão, complementando que “A Academia está mudando o que precisa ser mudado e conservando o que precisa ser conservado. Mantém as tradições e se renova. Este é um dia histórico.” A atriz Regina Casé, também presente e emocionada, compartilhou sua percepção com a Agência Brasil: “Foi especialmente emocionante por ser a Ana, por ser uma mulher preta. O discurso dela nos lembra o quanto demoramos para ocupar esses espaços. É assustador pensar que só em 1977 uma mulher entrou aqui.” O ator e escritor Lázaro Ramos qualificou “Um Defeito de Cor” como o livro de sua vida. “Foi o livro que mais dei de presente. É o primeiro que me provocou sensações físicas – eu chorava, ria, sentia cheiro, textura. A escrita da Ana é muito especial. Hoje é uma noite de celebração e justiça literária”, afirmou Ramos. Para ele, a presença da escritora na ABL é um sinal do amadurecimento do Brasil: “É o Brasil reconhecendo talentos que demoraram a ser reconhecidos. A presença dela aqui é de justiça e diversidade. É o que a Academia merece e precisa.” A história da Academia Brasileira de Letras reflete, gradualmente, as transformações da sociedade, abraçando novas perspectivas e enriquecendo seu acervo de vozes e pensamentos, um processo essencial para a evolução de qualquer instituição cultural, conforme é possível entender ao visitar a página de história da Academia Brasileira de Letras.
A Conquista Coletiva: O Efeito Ana Maria Gonçalves
A escritora Conceição Evaristo, calorosamente ovacionada no discurso de Ana Maria Gonçalves, interpretou a posse como uma vitória compartilhada. “A conquista de Ana é uma conquista que representa todas nós, mulheres negras e escritoras. É como se estivéssemos todas dentro da Academia hoje”, pontuou Evaristo. Ela ainda destacou como “Um Defeito de Cor” preenche as lacunas deixadas pela história, afirmando: “Quando a história silencia, a literatura fala.” Evaristo também refletiu sobre o cenário político e social do país, observando que a violência, como a ocorrida no Rio de Janeiro, “mancha novamente a história brasileira de sangue”. Ela enfatizou que, embora a literatura não resolva tais questões instantaneamente, é nela que se pode “imaginar outro destino para o Brasil – um destino sem dor, sem exclusão”. O imortal Gilberto Gil resumiu o sentimento da noite, expressando alegria e orgulho pela ABL e elogiando a primorosa arte literária da escritora. “Ana Maria é uma das grandes artesãs da palavra, e sua escrita traz uma consciência profunda sobre o que é ser negro no Brasil. Ela representa o papel que os negros têm no processo civilizatório brasileiro”, afirmou Gil.
Culinária Inspirada na História: O Jantar Pós-Cerimônia na ABL
Após a solenidade oficial de posse, os cerca de 300 convidados desfrutaram de um jantar no pátio externo da ABL. O cardápio, uma verdadeira homenagem à cultura e à trajetória retratada em “Um Defeito de Cor”, foi idealizado e executado pela chef Dilma do Nascimento, conhecida como Dita. “É uma emoção muito grande ser convidada para cozinhar aqui na Academia. Para nós, é um marco – um reconhecimento da África que veio para o Brasil. Baseei o cardápio na trajetória do livro, com pratos africanos e encerrando com as cocadas vendidas pelas personagens em busca da liberdade. Foi um prazer trazer essa história também pela comida”, expressou Dita, mostrando como a arte se manifestou em diferentes formas naquela noite histórica.
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A posse de Ana Maria Gonçalves na Academia Brasileira de Letras marca um momento divisor, não apenas para a literatura, mas para a própria representação social e cultural do Brasil. Sua chegada celebra a diversidade e inspira novas gerações a contar suas histórias. Para aprofundar-se em análises culturais e acompanhar outros acontecimentos significativos no cenário artístico e literário do país, convidamos você a continuar explorando nossa editoria de Cultura.
Crédito da imagem: Rovena Rosa/Agência Brasil


