Na Basílica Menor de Santo Antônio do Embaré, em Santos, litoral paulista, o imponente órgão de tubos, que permaneceu silencioso por mais de trinta anos, voltou a reverberar. O projeto de restauração e automação do instrumento, que detém uma história superior a 75 anos, foi concretizado, unindo a grandiosidade de seu passado à inovação tecnológica contemporânea.
Com seus 35 m² e estrutura de dois andares, o instrumento, edificado na primeira metade do século passado, foi reinaugurado mantendo seu aspecto original. Contudo, seu som marcante agora se manifesta também com suporte digital, graças à engenhosidade do restaurador Danilo Brás e ao financiamento obtido por meio de contribuições da comunidade de fiéis, permitindo até mesmo sua operação automática.
Órgão de Tubos em Santos Renasce com Tecnologia Avançada
Considerado um “rei dos instrumentos”, o órgão de tubos é um elemento clássico em ambientes sacros, projetado para entoar melodias litúrgicas. Seu funcionamento depende de um complexo arranjo de teclados e pedaleiras que regulam a passagem de ar por tubos de variados tamanhos, cada um responsável por uma nota distinta. Apesar de não serem classificados como peças extremamente raras, especialistas ressaltam que a maioria dos exemplares nacionais se encontra em estados precários de conservação ou descaracterizados, em virtude dos custos elevados de manutenção e da escassez de mão de obra especializada.
O exemplar da Basílica do Embaré apresenta 1.317 tubos, dois teclados manuais e uma pedaleira, tudo alojado em uma estrutura majestosa de madeira e metal. O trabalho de restauro, que consumiu dois anos e meio, culminou com sua reinauguração oficial em junho, durante a missa do Dia de Santo Antônio. Na ocasião, o frei Paulo Henrique Romeiro, pároco da basílica, celebrou o retorno da operação do instrumento, compartilhando a satisfação: “Cumprimos nossa missão. Foi a primeira vez que eles [os fiéis] viram funcionando.”
Patrimônio Religioso e Esforço Comunitário
O órgão de tubos da Igreja do Embaré, cuja inauguração original data de 1949, é reconhecido como um importante patrimônio religioso de Santos. Montado com componentes de um instrumento anteriormente importado da Alemanha, o equipamento foi desativado em 1992 devido a problemas mecânicos. A situação de deterioração se agravou ao longo dos anos, acentuada pela falta de uso. Uma reforma estrutural da igreja, nos anos 2000, resultou na remoção de sua parte elétrica.
A iniciativa para a reforma começou em janeiro de 2023, após uma conversa do frei Paulo Henrique com o restaurador Danilo Brás. O custo total do serviço, avaliado em R$ 110 mil, foi integralmente financiado por arrecadações obtidas em eventos e quermesses promovidos pela Basílica, evidenciando o engajamento da comunidade local.
O Desafio da Restauração e Inovação na Automação
A complexidade da restauração do órgão se intensificou pela sua natureza artesanal e pela escassez de “organeiros-mestre” no Brasil, profissionais que demandam no mínimo uma década de formação. Esse cenário impôs ao restaurador Danilo Brás a necessidade de um estudo aprofundado e incontáveis horas de trabalho dedicado. O processo envolveu a completa desmontagem do órgão, com a restauração minuciosa de cada uma de suas partes.
Para o projeto, foram confeccionadas aproximadamente 1,3 mil molas de aço inoxidável para substituir as antigas de ferro, além da fabricação artesanal de diversos tubos de madeira. Uma inovação crucial foi a implementação de um sistema de automação, permitindo que o órgão possa tocar sem a necessidade de um músico presente. Segundo Danilo Brás, essa solução foi vital, já que, em sua versão manual, o instrumento exige um organista que utilize mãos e pés simultaneamente. “Toda vez que se conversava sobre o órgão, falavam: ‘Não tem quem toque’. Então eu pensei que eu tinha que automatizar. Eu não vou ficar com um instrumento que gastei uma fortuna à mercê de uma pessoa [que saiba tocar manualmente]. É um investimento que eu precisava ver funcionar”, relatou.
A revitalização da parte estrutural e elétrica foi realizada sob a supervisão de Danilo, com a colaboração dos próprios membros da Basílica do Embaré, visando manter a integridade visual original do órgão. O processo contou também com o auxílio de eletricistas e musicistas da basílica, que participaram da fase de afinação após a remontagem. Um controlador foi acoplado ao órgão, possibilitando o controle digital das notas e a abertura das válvulas de ar dos tubos, através de arquivos no formato MIDI (Musical Instrument Digital Interface).
Danilo Brás destacou a automação como um recurso essencial para os testes iniciais, considerando sua própria inabilidade em tocar o instrumento. O maestro Mario Tirolli, músico com 35 anos de experiência, foi fundamental nessa etapa, contribuindo com sua perícia para a afinação das notas. Durante os testes de automação e afinação, Tirolli utilizou arquivos de obras célebres, abrangendo desde trilhas sonoras de filmes como *The Batman* e *Star Wars*, até clássicos de Mozart, explorando a vasta capacidade sonora do instrumento.
Os Desafios Enfrentados e o Legado Humano
Entre os obstáculos da restauração, a indisponibilidade de materiais, muitos deles importados, foi um dos maiores. Tal cenário exigiu a fabricação manual de inúmeros componentes, como os tubos metálicos e de madeira, e a adaptação de outros com insumos acessíveis no mercado nacional. “Muita coisa era da Alemanha. E o custo era alto por causa do Euro. A gente não tinha plena certeza se aquilo era exatamente o que a gente queria. Foi feita uma adaptação e fizemos testes com vários materiais”, explicou o restaurador.
Além dos percalços técnicos, Danilo Brás enfrentou um desafio de natureza pessoal significativa: durante o período da reforma, sua mãe sofreu um Acidente Vascular Cerebral (AVC) e faleceu em 2024. As horas dedicadas à restauração do órgão precisaram ser realocadas para os cuidados com a mãe, com os trabalhos no instrumento sendo concentrados nos finais de semana e horários de almoço. “Eu só não larguei o órgão porque ela me autorizou. E, infelizmente, ela não viu o órgão pronto porque ela acabou falecendo”, lamentou Danilo, evidenciando o profundo sacrifício pessoal envolvido no projeto.
O Interesse Despertado na Comunidade e o Futuro Musical
Apesar das dificuldades, a emoção de Danilo veio ao presenciar o interesse dos membros da comunidade musical local em aprender e utilizar o instrumento revitalizado. A professora de música Cátia Radzvilaviez Grande, de 64 anos, tecladista com quatro décadas de experiência, integra a equipe de músicos da igreja há cerca de dois anos, justamente após tomar conhecimento da reforma. Cátia relatou ao g1 sua primeira experiência com um órgão de tubos ali na Basílica do Embaré. “Foi emocionante e desafiador. Nunca tinha passado na minha cabeça tocar o órgão de tubos. Foi e é muito prazeroso poder ouvir seu som majestoso e, ao mesmo tempo, tão delicado”, afirmou.
Atualmente, três organistas atuam nas missas dominicais, incluindo Cátia e duas outras fiéis que foram por ela instruídas no manejo do equipamento. “O importante é termos mais músicos utilizando esse instrumento e para isso sempre estou aberta a ensinar”, destacou, sublinhando o impacto da restauração na formação de novos talentos e na preservação da tradição musical.
Um estudo científico de 2010, conduzido pela organista Elisa Freixo e pelo pesquisador Andrea Cavicchioli, da Universidade de São Paulo (USP), revelou que o Brasil contava com apenas algumas centenas de órgãos de tubos, muitos em situação crítica devido à escassez de profissionais habilitados para sua manutenção. Esta realidade sublinha a relevância de projetos como o da Basílica do Embaré na salvaguarda do patrimônio organológico brasileiro. A preservação do patrimônio artístico e cultural do país, incluindo esses complexos instrumentos, é fundamental para as futuras gerações. Você pode aprender mais sobre a proteção de bens culturais acessando informações no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).
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A saga da restauração do órgão de tubos da Basílica do Embaré em Santos é um testamento de fé, engenhosidade e perseverança comunitária. Este instrumento histórico não apenas recuperou sua voz majestosa, mas também foi adaptado para a era digital, assegurando seu papel contínuo como patrimônio religioso e cultural. Explore outras histórias inspiradoras e mantenha-se informado em nossa editoria de Cidades.
Crédito da imagem: Danilo Brás
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