A aclamada montagem de ‘Porgy and Bess’, uma ópera monumental de George Gershwin, tem cativado o público e a crítica no Theatro Municipal de São Paulo, sendo avaliada como um dos pontos altos da temporada lírica atual. A produção é notabilizada por sua complexidade, equilíbrio e uma abordagem inteligente, ressaltando a relevância da obra para o cenário contemporâneo.
A experiência musical e cênica inicia-se com uma poderosa abertura orquestral. Dois acordes são reiterados incessantemente, amparados por um piano que transita entre o rudimentar e o virtuoso, evocando as paisagens sonoras dos bares suburbanos, berço do jazz. Gradualmente, um crescendo marcante incorpora o coro, adicionando camadas tonais que reforçam a identidade musical característica do compositor, estabelecendo o clima para a narrativa que se segue.
Montagem de ‘Porgy and Bess’ no Theatro Municipal SP Recebe Elogios
Esta interpretação da ópera está em cartaz até 27 de setembro no prestigiado Theatro Municipal de São Paulo, situado na Praça Ramos de Azevedo s/n. As apresentações ocorrem em diversos horários, oferecendo flexibilidade ao público: aos domingos (21) e sábados (27), às 17h; e às terças (23), quartas (24) e sextas-feiras (26), sempre às 20h. Os ingressos para esta imersiva experiência cultural variam de R$ 33 a R$ 210, permitindo acesso a um espetáculo de alto nível artístico.
Desde sua estreia em 1935, a obra de Gershwin veio acompanhada de uma diretriz essencial do próprio autor: a ópera deveria ser encenada majoritariamente por artistas negros. A montagem paulista honra esta visão, não apenas com um elenco de vozes solistas proeminentes, mas também com a inclusão de profissionais negros na equipe criativa. Destacam-se a direção cênica assinada por Grace Passô e a concepção cenográfica de Marcelino Melo, além da participação vital de atores e bailarinos.
Enredo e Cenário da Obra Clássica
A trama de ‘Porgy and Bess’ desenrola-se na fictícia Catfish Row, uma comunidade que espelha os vilarejos costeiros da periferia de Charleston, na Carolina do Sul (EUA). O enredo, adaptado do texto original de DuBose Heyward, apresenta personagens intensos e complexos. Entre eles, Porgy, um homem com deficiência física marcado pela obsessão e pela esperança, e Bess, uma figura profundamente humana, embora igualmente idealista e sonhadora.
A sociedade retratada em Catfish Row é um mosaico social diversificado, compreendendo mães, pais, crianças, trabalhadores dedicados aos campos de algodão, estivadores, pescadores, além de comerciantes, pequenos fraudadores, criminosos e indivíduos envolvidos no tráfico. As interações dessa periferia com os núcleos de poder são multifacetadas, permeando desde o completo descaso e negligência até atos de oportunismo e medidas repressivas. Este cenário pulsante serve como pano de fundo para a complexidade das relações humanas apresentadas na ópera.
Dentro desse universo, laços de amizade florescem em meio a jogos, o uso de drogas, romances apaixonados e atos de exploração. A natureza, por vezes, assume um caráter inóspito, gerando desastres, como uma forte tempestade que virou embarcações de navegadores experientes. Em outras ocasiões, contudo, o mesmo ambiente natural propicia momentos de celebração, música e júbilo, além da busca por uma existência mais serena, evocada no marcante número inaugural da ópera, a clássica “Summertime, and the living is easy” (É verão, e a vida é fácil). Entretanto, a fragilidade da vida é constantemente lembrada, com a frequente cena de corpos estendidos pelo chão, simbolizando as tragédias inerentes à comunidade.
A Direção e Elementos Cênicos
A diretora Grace Passô aborda o universo de ‘Porgy and Bess’ com notável sensibilidade e delicadeza. A encenação começa de forma introspectiva: atores adentram o palco com movimentos contidos, exploram o fosso da orquestra e observam o espaço atentamente, aguardando. Somente após essa construção gradual é que emerge o cenário criado por Marcelino Melo, uma expansão monumental de sua série “Quebradinha”, que recria de maneira autêntica e impactante casas humildes, varais e lajes, todos sustentados pelo característico tijolo baiano. A montagem se distingue por evitar estereótipos, optando por uma representação rica em beleza e emoldurada pela música, essencial para uma ópera. Cada movimentação no palco é uma extensão orgânica da partitura musical.
O uso de microfones, embora não seja um requisito indispensável em todas as produções operísticas, foi empregado com notável discernimento e sutileza, garantindo que não comprometesse a essência da linguagem operática. A técnica vocal dos cantores mantém a pureza e a intensidade líricas, conforme idealizado pelo compositor. O entrelaçamento com outros gêneros musicais, como a canção e o musical, não surge como uma mera fusão, mas como um mecanismo desconstrutivo, desafiador e quase provocador, como ilustrado na peça “It Ain’t Necessarily so” (Não é necessariamente assim), interpretada pelo traficante Sportin Life. O tenor Jean William, em sua atuação de estreia, entregou uma performance memorável e imponente, contribuindo para que a Sinfônica Municipal, sob a direção de Roberto Minczuk, pudesse explorar amplamente a intrincada escrita de Gershwin para metais, enriquecendo a sonoridade geral do espetáculo.

Imagem: www1.folha.uol.com.br
Destaques no Elenco e Variações Narrativas
No elenco, a figura de Porgy, interpretada pelo baixo Luiz-Ottavio Faria, se distingue por toques de pureza e introspecção precisos, visíveis em canções como “I Got Plenty o Nuttin'” (Eu tenho bastante de nada). O barítono sul-africano Bongani J. Kubhek entrega a paixão requerida para o personagem Crown, o estivador, enquanto o barítono brasileiro Michel de Souza brilha com uma performance impecável como Jake. A representação dos personagens, desde os protagonistas até os secundários, evidencia o talento e a dedicação do corpo de artistas envolvido na produção.
Entre as vozes femininas, a soprano norte-americana Latonia Moore, que atuou na estreia, personificou Bess com uma complexidade notável, conjugando poder vocal com delicadeza e nuance, delineando distintos estados emocionais com extraordinária maestria. Ao seu lado, a brasileira Edneia Oliveira se destaca no papel de Maria, e a soprano colombiana Betty Garcés oferece uma interpretação notável de Clara. Em uma atuação que se mostra tão vocalmente potente quanto cenicamente forte, a mezzo soprano brasileira Juliana Taino brilha na pele de Serena, consolidando o excelente desempenho do elenco feminino.
Ainda que o espetáculo condense em dois atos os três originalmente concebidos, a apresentação ainda é considerada extensa. Isso se deve, em parte, ao caráter por vezes episódico da composição de Gershwin, que se mostra econômico em desenvolvimentos temáticos, resultando em certa redundância. Do ponto de vista cênico, o uso de projeções de vídeo filmadas em tempo real pareceu desnecessário em alguns momentos, subestimando a capacidade e a força do teatro sonoro em andamento. Em contraponto, a preparação do coro, comandada por Maíra Ferreira, revelou-se exemplar, exibindo uma técnica apurada aliada a um apurado senso estilístico, sendo um dos pontos altos da produção.
A união desses múltiplos elementos confere uma complexidade notável a esta montagem de ‘Porgy and Bess’, que, em seu balanço, profundidade e perspicácia, se firma como um dos momentos mais marcantes e bem-sucedidos da presente temporada lírica paulistana.
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Crédito da imagem: Rafael Salvador/Divulgação
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