O governo do presidente argentino Javier Milei anunciou, na última terça-feira (2 de setembro de 2025), novas medidas estratégicas para intervir no câmbio argentino. A decisão visa principalmente garantir a disponibilidade de dólares no mercado e atenuar a instabilidade do peso, a moeda nacional, através de operações de compra e venda conduzidas diretamente pelo Tesouro Nacional. Essa postura marcou uma reviravolta para uma administração que advoga por uma agenda ultraliberal, gerando surpresa entre os agentes do mercado e analistas econômicos.
A medida é notável porque, apenas em abril do mesmo ano, o governo havia celebrado o desmantelamento do “cepo”, um sistema rigoroso que controlava a aquisição de dólares pela população argentina na tentativa de estabilizar o valor do peso. Economistas consultados manifestaram preocupação com o novo direcionamento, mesmo que a intervenção atual seja descrita como mais branda. Eles alertam para potenciais riscos à confiança dos investidores, muitos dos quais foram atraídos de volta ao país pelas promessas de políticas econômicas liberalizantes de Milei. Agora, observam o governo recorrer novamente ao Tesouro em um esforço para conter a desvalorização do peso, que ocorre em um cenário de crescentes turbulências políticas.
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O Paradoxo Liberal de Milei: Da Desregulação à Intervenção
Javier Milei assumiu a presidência da Argentina em 2023, herdando uma das mais severas crises econômicas da história recente do país. O cenário era dominado por uma inflação galopante (com picos acima de 200% anuais), índices de pobreza em elevação, uma dívida externa bilionária e uma escassez crítica de reservas de dólares. Economista de formação e vocalmente crítico da classe política tradicional, Milei propagandeia uma interpretação radical do liberalismo econômico, pautada na drástica diminuição do escopo e da influência do Estado na economia e na sociedade.
A visão ultraliberal de Milei foi delineada através de várias propostas ambiciosas e frequentemente controversas durante sua campanha e início de mandato:
- Dolarização da Economia: O presidente chegou a propor abertamente a substituição completa do peso pelo dólar americano como moeda oficial do país. Esta medida extremista implicaria na anulação da política monetária nacional, transferindo o controle da estabilidade de preços para o Federal Reserve dos EUA.
- Extinção do Banco Central: Milei defende o fechamento definitivo do Banco Central argentino, argumentando que a instituição é a principal responsável pela persistente inflação e pela volatilidade recorrente da moeda local, minando a confiança na economia.
- Cortes Abrangentes no Setor Público: Sua agenda inclui planos ambiciosos de privatização de empresas estatais, uma significativa redução no número de ministérios e uma severa contenção dos gastos públicos, com o objetivo de minimizá-los.
- Ampla Abertura Comercial: Proposições para eliminar tarifas alfandegárias e barreiras regulatórias visam fomentar a livre concorrência com produtos e serviços estrangeiros, buscando eficiência e menor custo para o consumidor.
- Questionamento de Direitos Trabalhistas e Subsídios: Milei demonstra uma postura radical em relação às normas do mercado de trabalho, à atuação dos sindicatos e à concessão de subsídios a setores que ele considera ineficientes, defendendo uma flexibilização radical para dinamizar a economia.
A recente intervenção no câmbio contrasta marcadamente com essas premissas fundamentais de sua plataforma, levantando questões sobre a sustentabilidade e a adaptabilidade de sua abordagem econômica em face das complexas realidades argentinas.
Motivações por Trás da Nova Intervenção Cambial
A decisão do governo Milei de reintroduzir intervenções no mercado de câmbio foi motivada por uma combinação de desafios econômicos e crises políticas. Os principais fatores que precipitaram essa mudança de estratégia são multifacetados e interconectados:
Queda do Peso Argentino e Riscos de Inflação
Apesar de ter obtido sucesso inicial na redução da inflação, que superava 200% anualmente – um feito atribuído ao seu plano rigoroso de cortes de gastos públicos –, o governo Milei ainda enfrenta obstáculos para consolidar a confiança plena na economia argentina. A atração de um volume substancial de investimentos estrangeiros diretos permanece um desafio. Uma das dificuldades mais prementes é a incapacidade de acumular reservas de dólares suficientes, que são cruciais tanto para honrar os compromissos da dívida externa argentina quanto para reduzir a vulnerabilidade do peso. O aumento dessas reservas também é visto como um passo fundamental para facilitar a prometida e radical transição para a dolarização da economia.
Em uma tentativa calculada de restaurar a credibilidade junto aos investidores, o governo de Milei havia extinguido o “cepo” em abril, permitindo que o câmbio flutuasse mais livremente. Se, por um lado, essa medida foi bem recebida pelo mercado por seu caráter liberal, por outro, ela contribuiu para um maior enfraquecimento do peso, dado que a demanda por dólares é historicamente elevada na Argentina. Ou seja, enquanto os cidadãos buscam proteger suas poupanças convertendo-as em dólares, o governo se esforça para evitar que a desvalorização acentuada do peso resulte em novas pressões inflacionárias, um ponto sensível para a economia e a população.
No ano de 2025, as reservas cambiais voltaram a diminuir significativamente, atingindo um patamar negativo de aproximadamente 7 bilhões de dólares após o fim do “cepo”. Esta situação desencadeia um ciclo vicioso: a escassez de moeda forte no caixa governamental reduz a capacidade de intervenção no mercado, levando a uma tendência de desvalorização ainda maior do peso. Adicionalmente, a valorização do dólar torna as importações mais caras, fragiliza a confiança na moeda local e, crucialmente, alimenta a inflação – um fator determinante para a manutenção do apoio popular ao presidente Milei.
Diante desse panorama desafiador, o governo argentino intensificou as regulamentações sobre as operações em moeda estrangeira envolvendo credores comerciais. Os bancos foram instruídos a não expandir sua posição em câmbio à vista no último dia do mês. Essa restrição buscou evitar manipulações de mercado que poderiam elevar artificialmente a demanda por dólares e exercer maior pressão sobre o peso. Previamente, o governo havia tentado mitigar a valorização do dólar elevando a taxa de juros de referência, mas essa estratégia revelou-se insuficiente para conter a volatilidade.

Imagem: g1.globo.com
Carlos Henrique, diretor de operações da Frente Corretora, comentou a situação, afirmando que a mais recente intervenção representa uma contenção de crise. “O governo já vinha tentando reduzir a volatilidade com aumento de juros e restrições bancárias, mas a pressão sobre o peso tornou a intervenção direta inevitável, refletindo problemas que vinham se acumulando desde antes da crise política atual e a incapacidade de resolver a crise fiscal”, pontuou Henrique. Ele adicionou que, embora Milei já tivesse recorrido a intervenções indiretas no passado, a medida anunciada configura uma mudança significativa em relação à sua professada política econômica liberal. Ao intervir, o governo temporariamente suspende a premissa de que o mercado deve autorregular-se, assumindo um papel de controle mais característico de abordagens econômicas heterodoxas.
Escândalo de Corrupção Envolvendo Karina Milei
Paralelamente aos desafios econômicos, o governo Milei enfrenta crises políticas internas que fragilizam sua base e tendem a afastar investidores. No final de agosto de 2025, um escândalo de proporções nacionais irrompeu, com a divulgação de áudios vazados, alegações de corrupção e acaloradas disputas internas que atingiram os mais altos escalões do poder argentino. Diego Spagnuolo, que outrora foi um aliado do governo, acusou Karina Milei, irmã do presidente e Secretária-Geral da Presidência, de envolvimento em práticas de corrupção.

Spagnuolo, ex-chefe da Agência Nacional para a Deficiência (Andis), detalhou que Karina Milei e o subsecretário Eduardo Lule Menem teriam exigido propinas de empresas farmacêuticas em troca da compra de medicamentos destinados ao sistema de saúde pública do país. O Bradesco BBI, em relatório divulgado, ressaltou que incidentes políticos dessa natureza fragmentam o cenário político, corroem a reputação do governo e minam a confiança. Essa perda de influência no Congresso, frequentemente, acarreta uma expansão fiscal não planejada, criando um conflito direto com as metas de estabilidade financeiras acordadas com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Quando investidores estrangeiros retiram seus recursos da Argentina, há uma diminuição da quantidade de dólares em circulação, o que naturalmente eleva a demanda pela moeda americana em relação ao peso. Esse desequilíbrio leva o peso a desvalorizar-se, pois a taxa de câmbio reflete uma moeda mais escassa diante da procura existente.
Tensões em um Cenário Eleitoral Decisivo
Todos esses desafios convergem às vésperas de eleições provinciais cruciais em Buenos Aires, marcadas para o domingo subsequente (7 de setembro de 2025). Estes pleitos determinarão a composição de novos deputados e senadores nacionais, redefinindo as forças políticas no Congresso. A partir do segundo ano de seu mandato, o presidente Milei e seu partido têm enfrentado revezes significativos no Legislativo. Medidas importantes, como cortes de gastos públicos propostos e decretos presidenciais emitidos, foram derrubadas, evidenciando uma crescente fragilidade política.
A taxa de aprovação do presidente recuou em oito pontos percentuais em um período de cinco semanas, estabilizando-se em 41%, um claro indicador de sua vulnerabilidade às vésperas destas eleições. A instabilidade política, nesse contexto, funcionou como um catalisador potente para a desvalorização acelerada da moeda, compelindo o governo de Javier Milei a intervir. Carlos Henrique, da Frente Corretora, reforçou essa percepção ao declarar que “A instabilidade política atuou como catalisador para a desvalorização da moeda, forçando Milei a intervir”.

A intervenção cambial, embora contrária aos princípios fundadores do governo Milei, surge, portanto, como uma resposta pragmática – e aparentemente inevitável – a um complexo emaranhado de pressões econômicas e políticas que testam a resiliência e a coerência de sua agenda ultraliberal na Argentina.
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Esses são os principais fatores que motivaram a guinada do governo Milei em relação à política cambial e como o mercado reagiu a essa estratégica mudança. O futuro da economia argentina e a confiança dos investidores dependerão de como o governo conseguirá equilibrar seus princípios ideológicos com a necessidade de estabilizar a nação diante de crises contínuas.
Fonte: G1
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