Após um período de duas décadas sob governos de orientação de esquerda, a Bolívia se prepara para eleger seu primeiro presidente de direita em 20 anos. O desfecho dessa mudança histórica será definido no segundo turno das eleições, programado para o dia 19 de outubro. A reviravolta política se manifestou claramente nos resultados do primeiro turno, que ocorreu em 17 de agosto deste ano, delineando um novo panorama para a política nacional.
No pleito de agosto, a liderança foi conquistada por candidatos de centro-direita e direita. Rodrigo Paz Pereira, representante do Partido Democrata Cristão (PDC) e classificado como centro-direita, obteve 32% dos votos. Em seguida, Jorge Tuto Quiroga, do partido Libre e associado à direita conservadora, alcançou 26% do total de eleitores. Os dados oficiais foram divulgados pela OEP, o órgão eleitoral da Bolívia. No campo da esquerda, o Movimento ao Socialismo (MAS), partido que historicamente elegeu Evo Morales e o atual presidente Luis Arce, viu seu candidato Eduardo del Castillo atingir apenas 3% dos votos. Andrónico Rodríguez, o postulante de esquerda mais votado, conseguiu 8%. Essa fragmentação e os percentuais evidenciam uma profunda alteração na preferência eleitoral boliviana, resultando na ausência de candidatos de esquerda no segundo turno.
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A ascensão da direita na Bolívia após um longo hiato é multifatorial, conforme analistas apontam. A trajetória do país desde a chegada de Evo Morales ao poder em 2006, as flutuações econômicas, a polarização interna dentro da própria esquerda, o contexto político sul-americano e a eficácia de uma nova retórica liberal se apresentam como pilares para compreender essa transformação.
Desgaste Político de Evo Morales Marca o Fim de Uma Era
Evo Morales, uma figura central na política boliviana e sul-americana, foi o primeiro presidente indígena da Bolívia e líder sindical dos produtores de folha de coca, uma cultura tradicional da região. Sua vitória em 2006, pelo partido Movimento ao Socialismo (MAS), representou uma guinada significativa para a esquerda, prometendo inclusão e voz às minorias historicamente marginalizadas após anos de instabilidade política e governos conservadores. Os primeiros anos de seu governo foram marcados por importantes políticas de nacionalização do gás e distribuição de renda, um período que coincidiu com o boom global das commodities.
De 2006 a 2015, a Bolívia testemunhou um crescimento econômico robusto, com uma média de 5% ao ano, segundo dados do Fundo Monetário Internacional (FMI). Essa fase de prosperidade contribuiu para uma notável redução da pobreza e consolidou a imagem de Morales como um líder popular e carismático. Sua gestão econômica exitosa, muitas vezes associada à figura de Luis Arce como então Ministro da Economia, permitiu reeleições em 2009 e 2014, facilitadas por mudanças constitucionais que flexibilizaram os limites de mandato.
Contudo, o ciclo de popularidade e estabilidade começou a se inverter. Em 2016, Morales enfrentou sua primeira grande derrota eleitoral, perdendo um referendo que buscava eliminar o limite de mandatos presidenciais. Apesar do resultado, ele obteve autorização da Suprema Corte e do Tribunal Superior Eleitoral da Bolívia para concorrer novamente nas eleições de 2019, uma decisão que gerou fortes críticas e levantou questionamentos sobre a autonomia das instituições frente ao poder Executivo.
As eleições de outubro de 2019 se tornaram um divisor de águas. No dia 20 daquele mês, em plena apuração, o Tribunal Eleitoral boliviano suspendeu a contagem dos votos sem oferecer justificativas, quando mais de 80% das urnas já haviam sido processadas. A projeção inicial indicava que Morales disputaria o segundo turno contra o opositor Carlos Mesa. Contudo, ao retomar a contagem no dia seguinte, o Tribunal anunciou a vitória de Evo já no primeiro turno, o que dispensaria a necessidade de uma segunda rodada de votação e um confronto direto com a oposição. A Organização dos Estados Americanos (OEA), que congrega países independentes das Américas como Brasil, Estados Unidos e Argentina, manifestou preocupação com a transparência do processo e apontou indícios de irregularidades, incluindo cédulas alteradas e assinaturas questionáveis.
A partir daí, as ruas bolivianas foram tomadas por manifestações massivas. A oposição intensificou as acusações de manipulação eleitoral contra Evo Morales. Diante da crescente pressão popular e da perda de base de apoio, Morales começou a ver seu poder erodir. A Polícia Nacional se recusou a reprimir os protestos, e pouco depois, as Forças Armadas bolivianas emitiram uma declaração pública recomendando que o presidente renunciasse para evitar uma escalada ainda maior de conflitos no país. Isolado e sem apoio institucional, Evo Morales anunciou novas eleições, mas, antes mesmo de sua realização, optou por renunciar e deixar a Bolívia, exilando-se inicialmente no México e depois na Argentina.
Esse episódio encerrou um período de quase 14 anos de Evo Morales no poder. Enquanto seus apoiadores veem sua saída como um golpe de Estado, críticos e analistas, como Paulo Velasco, professor de política internacional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), defendem que a queda de Morales foi resultado de um acúmulo de desgaste político e de sua controversa tentativa de permanecer indefinidamente no cargo. Essa tensão política e as memórias da crise de 2019 contribuíram significativamente para o enfraquecimento do campo esquerdista e do MAS, abrindo caminho para novas lideranças e ideologias.
Economia em Desaceleração: O Custo do Empobrecimento para a Esquerda
Para além das tensões políticas e do desgaste institucional, a economia boliviana emergiu como um fator decisivo para a erosão da base de apoio do Movimento ao Socialismo (MAS) e da esquerda como um todo. A gestão inicial de Evo Morales, iniciada em 2006, beneficiou-se de um período de excepcional bonança econômica para a América Latina. Este foi o auge do chamado boom das commodities, impulsionado pela alta demanda da China por matérias-primas como gás, petróleo e minérios, o que inflou os preços no mercado internacional.
Nesse cenário favorável, o governo Morales implementou políticas de nacionalização do setor de petróleo e gás, renegociou contratos com empresas multinacionais e direcionou parte dos novos e volumosos recursos gerados para programas sociais e subsídios. O resultado foi uma notável melhoria nas condições de vida da população boliviana, e o país passou a ser reconhecido como um exemplo de crescimento econômico na região, conforme destacou o professor Paulo Velasco. A arquitetura dessa política econômica, liderada pelo então ministro da Economia Luis Arce, combinava a soberania sobre os recursos naturais com uma abertura ao setor privado e o estímulo ao aumento da renda interna, garantindo estabilidade e prosperidade por quase uma década.
Entretanto, a paisagem econômica global começou a mudar drasticamente a partir de 2014. Com a queda abrupta dos preços das commodities no mercado internacional e a desaceleração das economias da China e do Brasil – os principais parceiros comerciais da Bolívia –, o ritmo de crescimento do país enfraqueceu. Paulo Velasco observa que o cenário econômico se tornou “bem mais adverso” do que nos anos iniciais de Morales. O país enfrentou o aumento da inflação, uma diminuição acentuada das reservas internacionais e a perda da capacidade estatal de controlar os preços de alimentos e combustíveis, afetando diretamente o cotidiano da população, que começou a sentir os efeitos do empobrecimento.
O professor de Relações Internacionais da ESPM, Leonardo Trevisan, identificou a crise cambial como o ponto mais crítico. A escassez de dólares fez com que o valor da moeda disparasse no mercado paralelo, encarecendo os produtos importados e, em especial, os insumos agrícolas, como os fertilizantes. Essa elevação dos custos exerceu uma pressão ainda maior sobre os preços dos alimentos, que já representam mais de 60% da renda das famílias bolivianas. Na véspera do primeiro turno das eleições de 2025, a inflação anualizada da Bolívia atingiu a marca de aproximadamente 25%, a mais alta em mais de 30 anos. Para um país onde grande parte do orçamento familiar é destinada à alimentação, o impacto dessa inflação foi devastador. Esse cenário de dificuldades econômicas corroeu a base de apoio popular do MAS, atingindo em cheio as camadas mais pobres que haviam sido o pilar de sustentação de Morales e seus sucessores por um longo período.
Disputa Interna: A “Autofagia” da Esquerda Bolívia Pôs Fim à Unidade
O conturbado afastamento de Evo Morales da presidência em 2019, após uma série de eventos dramáticos, abriu caminho para a eleição de Luis Arce em 2020. Naquela ocasião, Arce, ex-ministro da Economia de Morales, recebeu o apoio direto de seu antecessor, consolidando-se como o herdeiro político da linha masista. Inicialmente, Morales atuava como uma espécie de “padrinho” político, garantindo sustentação e legitimidade ao novo governo. No entanto, essa aliança logo se deteriorou, revelando uma profunda divisão interna na esquerda boliviana.
Com o tempo, a relação entre Arce e Morales azedou. Arce começou a expressar publicamente críticas às tentativas de Morales de interferir em seu mandato, indicando uma disputa clara pela liderança e direção do Movimento ao Socialismo (MAS). O professor Paulo Velasco analisou que Arce percebeu o desejo de Evo de continuar exercendo controle sobre o partido e o próprio governo, o que naturalmente gerou atritos. Essa fricção interna, segundo Velasco, foi crucial para enfraquecer a unidade do MAS, pavimentando o caminho para uma fragmentação da esquerda.

Imagem: g1.globo.com
A ruptura se tornou evidente e dolorosa nas eleições de 2025. Luis Arce, já impopular em parte devido aos desafios econômicos enfrentados, não buscou a reeleição. Em seu lugar, o MAS lançou a candidatura de Eduardo del Castillo, um ex-ministro de seu governo, que obteve um pífio percentual de 3% dos votos. De forma estratégica e polêmica, Evo Morales fez um apelo público para que seus seguidores anulassem seus votos, em um gesto que sinalizou sua desaprovação tanto à candidatura do MAS quanto ao atual governo de Arce.
Leonardo Trevisan interpretou esse movimento como uma demonstração da força política residual de Morales, evidenciada pelos 19% de votos nulos registrados nas eleições de 2025. Contudo, Trevisan avalia que a tática de Morales resultou em um “tiro no pé” para a esquerda boliviana, pois foi um fator determinante para que nenhum candidato de esquerda chegasse ao segundo turno. Somando-se os 19% de votos nulos aos 8% obtidos por Andrónico Rodríguez – outro candidato de esquerda, de seu próprio partido AP, e que chegou a presidir o Senado – o total ultrapassaria o resultado de Jorge Tuto Quiroga, que garantiu vaga no segundo turno com 26% dos votos. A matemática eleitoral revelou, portanto, que a esquerda, ao se dividir e ao incentivar o voto nulo, perdeu a chance de manter-se na disputa presidencial.
Esse cenário, de acordo com Trevisan, evidenciou um afastamento generalizado de Morales de seus antigos colaboradores mais próximos, como Luis Arce, seu ex-ministro e sucessor na presidência, e Andrónico Rodríguez, um ex-líder do Senado que também se distanciou. Na prática, a disputa interna e a consequente fragmentação eleitoral configuraram a maior derrota da esquerda boliviana em duas décadas, sublinhando a gravidade da “autofagia” política para a hegemonia que o MAS havia desfrutado por tanto tempo.
América do Sul Vira à Direita, e Bolívia Acompanha Tendência
A vitória da direita nas eleições bolivianas de 2025 não pode ser interpretada de forma isolada, mas sim como parte de um contexto mais amplo de transformações políticas na América Latina. Analistas apontam que dois principais fatores convergiram para essa mudança na Bolívia: a chamada “virada à direita” que tem redesenhado o mapa político da região, exemplificada por figuras como Javier Milei na Argentina e Daniel Noboa no Equador, e um padrão mais específico da política boliviana, caracterizado por alternâncias de poder entre esquerda e direita em ciclos de aproximadamente 20 anos.
O professor Paulo Velasco, da UERJ, enfatiza que essa alternância é uma constante na história recente da Bolívia. Ele relembra que, em 2005, Evo Morales ascendeu à presidência após um prolongado período de governos de direita que enfrentavam considerável desgaste. Velasco sugere que a Bolívia tende a seguir ciclos políticos bem definidos, nos quais um grupo governante detém o poder por cerca de duas décadas, até que o eleitorado, em busca de renovação, decide por uma mudança radical de direção. Após um longo período de hegemonia da esquerda, com o Movimento ao Socialismo (MAS) consolidando-se como a principal força política, agora é a vez da direita ser testada no comando do país.
O panorama regional corrobora essa interpretação. A chamada “onda rosa”, que impulsionou governos de esquerda em países como Bolívia, Brasil, Venezuela e Argentina nos anos 2000, perdeu significativamente sua força. Fatores como crises econômicas persistentes, inflação galopante e uma crescente insatisfação popular contribuíram para o desgaste desses governos. Esse esgotamento abriu espaço para o surgimento de novas lideranças conservadoras em diversas partes da América do Sul, um movimento que alguns especialistas já denominam de “onda azul”, contrastando com a cor que simbolizava a ascensão esquerdista.
Velasco observa que a América Latina tem experimentado essa oscilação natural entre direita e esquerda ao longo dos últimos 10 a 15 anos, sendo cada vez mais incomum a reeleição prolongada de um mesmo grupo político por muitos mandatos. Essa dinâmica, segundo o professor, é percebida como um sinal saudável de pluralismo político, que reforça a importância da alternância no poder na região, assegurando a renovação das ideias e a fiscalização mútua entre diferentes projetos de país. A Bolívia, nesse contexto, alinha-se a essa macro-tendência, demonstrando que o esgotamento dos ciclos e a busca por novas soluções para os desafios contemporâneos são elementos centrais para compreender as decisões dos eleitores.
Discurso Liberal Conquista Eleitores e Define Nova Rota Bolívia
O sucesso da direita nas eleições bolivianas de 2025 não pode ser atribuído exclusivamente ao enfraquecimento da esquerda. Analistas sublinham que esse resultado também é um reflexo da capacidade do discurso liberal em cativar um eleitorado desiludido com o governo e profundamente afetado pela crise econômica. A desilusão com as propostas e as gestões da esquerda abriu uma janela de oportunidade para a apresentação de uma alternativa política mais palpável.
Nesse vácuo, a direita soube explorar um discurso centrado na redução da carga tributária e na diminuição do tamanho do Estado, temas que ressoaram junto a uma parcela significativa de eleitores que, anteriormente, identificavam-se com o Movimento ao Socialismo (MAS). Paulo Velasco destaca que as propostas da direita foram hábeis em defender mudanças substanciais na economia e na posição internacional do país. Essa narrativa aproveitou o descontentamento generalizado com a administração do MAS e com o encerramento da chamada “onda rosa” na América Latina.
Entre as principais bandeiras levantadas pela direita boliviana estavam a promessa de aliviar a carga fiscal, a intenção de revisar a participação da Bolívia em blocos e acordos internacionais e a crítica veemente à concentração de poder que marcou os anos de governo de Evo Morales. Para Leonardo Trevisan, a estratégia da direita foi demonstrar que era possível oferecer estabilidade e segurança sem, contudo, replicar integralmente o modelo da direita tradicional, buscando um caminho mais modernizado e alinhado com as demandas atuais da sociedade.
Os dois candidatos que avançaram para o segundo turno, Rodrigo Paz Pereira e Jorge Tuto Quiroga, apresentaram perfis distintos, o que permitiu à direita alcançar diferentes segmentos do eleitorado. Jorge Tuto Quiroga, do partido Libre, com um histórico de ter presidido a Bolívia entre 2001 e 2002 – período que se seguiu à renúncia de Hugo Banzer, de quem Quiroga era vice-presidente –, defendeu com veemência uma economia mais liberal, propugnando maior abertura para acordos externos e uma intervenção estatal reduzida. Sua figura evoca experiência e solidez política.
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Por outro lado, Rodrigo Paz Pereira, do PDC e filho do ex-presidente Jaime Paz Zamora, concentrou suas propostas em pautas de inclusão social e no suporte direto às populações urbanas e rurais mais castigadas pelos efeitos da crise econômica. A diversidade desses discursos foi um fator crucial para que a direita conseguisse mobilizar públicos variados: enquanto Quiroga atraiu eleitores que buscavam experiência, segurança e estabilidade, Paz conquistou o apoio de setores diretamente impactados pelas dificuldades econômicas. Paulo Velasco salienta que Quiroga se projeta como a figura mais experiente, dotada de maior capacidade política para influenciar o sistema boliviano e respaldada por uma vasta rede de contatos políticos nacionais e internacionais. Paz Pereira, por sua vez, embora com uma estrutura política menos robusta, esforça-se para projetar uma imagem de “outsider” e promete uma abordagem mais inclusiva e social, além de prezar por uma boa relação com parceiros internacionais, notadamente o Brasil. Essa dualidade estratégica permitiu à direita capitalizar a insatisfação e consolidar seu retorno ao poder no país andino, inaugurando uma nova fase na história política da Bolívia.
Com informações de g1.globo.com
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