A história de Amira, uma mulher grávida de sete meses, lança luz sobre os perigos e a desesperança de milhares de civis que tentam escapar da brutal guerra civil no Sudão. Em maio de 2025, diante do avanço das Forças de Apoio Rápido (RSF), um grupo paramilitar em conflito com o Exército sudanês, Amira tomou a decisão drástica de fugir de En Nahud, sua cidade natal no Estado de Kordofan Ocidental. Sua jornada foi marcada por uma sucessão de obstáculos e pela constante ameaça imposta pelo controle das RSF.
Enquanto hospitais e farmácias fechavam e a escassez de recursos básicos se tornava alarmante, Amira sentiu que não restava outra alternativa. A decisão de partir era crucial, apesar dos custos exorbitantes e da dificuldade de encontrar transporte. O deslocamento na região, um cenário de intensa batalha por mais de dois anos, transformou-se em uma tarefa quase impossível para a população civil, que tem sofrido gravemente com o prolongamento do conflito. Amira, cuja identidade verdadeira é preservada pela BBC, documentou sua experiência em diários de áudio compartilhados com a organização internacional Avaaz e posteriormente complementados por uma entrevista por telefone realizada em Kampala, Uganda, seu atual refúgio.
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O início da fuga, desde En Nahud, já prenunciava as adversidades que viriam. A hegemonia das RSF estendia-se também sobre o sistema de transportes. Ao tentar embarcar em um caminhão para deixar a cidade, Amira e seu marido presenciaram um tenso embate. O jovem que havia contratado o veículo para a família se desentendeu com o motorista, um indivíduo ligado às RSF, que tentava acomodar mais passageiros do que o combinado. Em um momento de pânico, o motorista sacou uma arma e ameaçou o jovem. Gritos e súplicas ecoaram no caminhão, com a avó e a mãe do rapaz agarradas aos pés do motorista, implorando por clemência. A cena, paralisante para os passageiros, revelou o alto risco da viagem. Amira relatou o temor generalizado, lembrando que o motorista estava sob efeito de álcool e maconha, o que elevava a imprevisibilidade de suas ações. Apesar do perigo, a arma foi guardada, mas o jovem responsável pelo aluguel do veículo acabou ficando em En Nahud. O caminhão, sobrecarregado com cerca de 70 a 80 pessoas e suas bagagens, seguiu por estradas precárias e intransitáveis, enquanto Amira, em constante oração, pedia para que o bebê não nascesse prematuramente e para que todos chegassem em segurança.
Obstáculos Iniciais e o Agravamento da Crise Humanitária
As primeiras etapas da travessia não foram menos desafiadoras. Os veículos apresentaram defeitos repetidamente, quebrando diversas vezes e testando a resiliência dos viajantes. A meta era alcançar el-Fula, a capital de Kordofan Ocidental, um objetivo que foi finalmente atingido. No entanto, a crescente escalada da violência na cidade, impulsionada pelo avanço do Exército sudanês, inviabilizou a permanência de Amira. As tropas governamentais, juntamente com milícias aliadas, passaram a perseguir indivíduos de certas etnias, como os baggara e os rizeigat, suspeitos de ligação com as RSF, ignorando suas ocupações ou histórico. O marido de Amira, que é funcionário público e formado em Direito, mas pertencente a um desses grupos étnicos, tornou-se alvo em potencial, forçando a família a seguir adiante. A ONU tem recebido relatos críveis de execuções extrajudiciais e acusações de violações de direitos humanos, embora as Forças Armadas sudanesas tenham prometido investigar tais atos através de um comitê estabelecido no início de 2025 pelo general Abdel Fattah al-Burhan, chefe das Forças Armadas.
Kordofan, região estrategicamente vital devido à sua concentração de campos de petróleo e rotas de transporte, transformou-se no epicentro do conflito. O envolvimento de outras milícias, como o SPLM-N ao lado das RSF, exacerbou a situação humanitária. O fluxo de suprimentos vitais, distribuídos por grupos humanitários, tornou-se praticamente nulo. Deixando el-Fula, Amira e seu marido enfrentaram uma jornada de três dias, com múltiplas trocas de veículos, até a fronteira com o Sudão do Sul. Durante este período, a arbitrariedade das RSF sobre a população era evidente. Os motoristas do grupo paramilitar definiam as regras, controlando quem embarcava, onde sentava e quanto pagava, sem qualquer tabela de preços fixos. A violência e a imprevisibilidade eram constantes, características intrínsecas à atuação desses homens armados. A cada vinte minutos, em média, os viajantes eram detidos em postos de controle da RSF e obrigados a pagar taxas aos soldados, um custo adicional imposto mesmo quando escoltados por aliados da própria RSF, que também cobravam seus próprios pagamentos. A fome e a sede eram persistentes, com a comida caríssima e a água em falta.
Desesperança em Meio à Travessia
Em el-Hujairta, uma pequena vila no percurso, os fugitivos conseguiram, por meio de um aparelho Starlink controlado pelas RSF, o que era igualmente arriscado. Amira descreveu a tensão: conectar-se à internet exigia extremo cuidado. Qualquer vídeo do Exército sudanês, som ou música associado, ou até mesmo uma menção casual às RSF em conversas, poderia levar à prisão imediata. A má conservação das estradas fez com que os veículos quebrassem mais três vezes. O momento mais desesperador de Amira ocorreu quando um pneu estourou no meio de uma densa floresta de acácias, deixando-os sem água e sem opções. Outros motoristas que passavam recusavam-se a dar carona, alegando falta de espaço. Amira lembra de sentir que seria o seu fim: “Juro por Deus que achei que nunca mais chegaria a outro lugar, que morreria ali mesmo”. Em um ato de completa exaustão, ela se deitou com o único cobertor que possuía e adormeceu, resignada.
Apesar da profunda desesperança, a jornada não se encerrou ali. No dia seguinte, eles alcançaram Abyei, na fronteira, mas o caminho foi dificultado por chuvas torrenciais e inundações. Nesta etapa, viajaram em um veículo abarrotado de barris de combustível, que constantemente atolava na lama. As condições eram desoladoras: roupas molhadas, bolsas danificadas pela poeira e calor agora encharcadas, um frio intenso, e a constante prece por segurança. Finalmente, o casal chegou a Juba, capital do Sudão do Sul, após uma viagem de aproximadamente 1.300 km ao sul de En Nahud, e de lá seguiram de ônibus para Kampala, a capital de Uganda.
Chegada e a Amargura da Incerteza
A segurança em Kampala trouxe um alívio misturado com uma profunda sensação de amargura. Embora fisicamente protegida, Amira continua atormentada por preocupações com os familiares que permaneceram no Sudão. A gravidez, que deveria ser um momento de pura alegria, está carregada de ansiedade, especialmente pela iminente chegada de seu primeiro filho sem o apoio de sua mãe. O desafio de dar à luz em um país estrangeiro, apenas com a companhia do marido e de uma amiga, agrava sua apreensão sobre o parto, que ela descreve como algo incrivelmente desorganizado e devastador.
Ativista dos direitos das mulheres e defensora da democracia, Amira teve uma atuação marcante em trabalhos de assistência durante a guerra civil por meio das “Salas de Resposta Emergencial”. Contudo, sua dedicação foi vista com desconfiança pelos militares, e alguns de seus colegas chegaram a ser detidos. Amira expressou seu medo em relação ao Exército e à inteligência militar, que prendiam e detinham jovens. Ela pondera, porém, que a chegada das RSF não representou uma melhoria; os paramilitares se engajavam em saques, estupros, e sua brutalidade não era menor do que a das Forças Armadas, afirmando que “São todos iguais.” As RSF, por sua vez, negam as acusações de limpeza étnica e crimes de guerra, caracterizando a violência como conflitos tribais e afirmando não ter civis como alvo, apesar das amplas evidências de saques e denúncias de estupros. Ambos os lados negam as acusações de crimes de guerra.
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O presente de Amira agora é moldado pela iminente maternidade, uma fonte de alegria, mas também de incerteza. A questão de poder retornar um dia ao Sudão com seu filho permanece em aberto. Amira espera uma melhora na situação do país, embora reconheça que, mesmo que a guerra cesse, o Sudão jamais será o mesmo. A segurança anterior será um passado distante, as pessoas e os lugares mudarão drasticamente, mas ela nutre a esperança de que, pelo menos, “as pessoas não morrerão aleatoriamente, como agora.”
Com informações de G1

Imagem: g1.globo.com
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