O Supremo Tribunal Federal (STF) prepara-se para sediar um dos julgamentos mais marcantes e complexos de sua história. Pela primeira vez, um ex-presidente brasileiro enfrenta um processo que pode resultar em condenação e encarceramento sob a acusação de tentativa de golpe de Estado. O rito processual que envolve Jair Bolsonaro e outros sete réus na mais alta corte do país se apresenta singular em diversos aspectos, projetando-o para a posteridade dos anais jurídicos nacionais.
A natureza das imputações criminais em debate, que tratam diretamente de atentados contra o Estado Democrático de Direito, e a condução peculiar e célere imposta pelo relator do caso, Ministro Alexandre de Moraes, são fatores que sublinham o caráter histórico deste julgamento. Além disso, a magnitude do material probatório reunido – que alcança impressionantes 80 terabytes de dados digitais – e as elaboradas medidas de segurança planejadas para as sessões da corte, superam a complexidade de outros processos rumorosos já enfrentados pelo tribunal.
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Este processo histórico, que se iniciará na Primeira Turma do STF na próxima terça-feira, 2 de agosto de 2025, concentrará a análise das acusações contra Jair Bolsonaro, filiado ao Partido Liberal (PL), e os demais sete indiciados. A expectativa dos operadores do direito e da própria corte é que uma decisão conclusiva seja proferida até o dia 12 de agosto, dada a urgência e relevância do tema. A atenção está voltada para como os fatos, as evidências e os argumentos serão ponderados neste que promete ser um divisor de águas na jurisprudência brasileira.
Os Pilares do Processo: Ministros e Procedimentos
A Primeira Turma do Supremo, composta por cinco ministros, terá a responsabilidade de examinar as acusações. Embora haja um potencial de divergência na figura do ministro Luiz Fux, que em alguns momentos demonstrou posições contrárias ao relator, as projeções internas no tribunal indicam uma remota chance de interrupção do julgamento por um pedido de vista. Um pedido de vista é uma solicitação de mais tempo para analisar o processo, o que atrasaria sua continuidade. Caso ocorra, o regimento interno prevê um prazo máximo de 90 dias para que o processo retorne para deliberação, permitindo que a retomada ocorra ainda no ano em curso, garantindo assim que a marcha da justiça não seja indefinidamente postergada.
A estrutura do julgamento foi cuidadosamente planejada para abarcar a vasta gama de evidências e testemunhos. A etapa inaugural, que deverá ter duração aproximada de uma hora e meia, será integralmente dedicada à leitura do relatório elaborado pelo ministro Alexandre de Moraes. Neste documento, serão minuciosamente apresentados os fatos apurados, os crimes imputados aos réus e um conciso resumo de todo o percurso processual, desde as fases preliminares da investigação até o momento do julgamento.
Após a apresentação do relatório, o procurador-geral da República, Paulo Gonet, terá a oportunidade de defender, por um período de duas horas, as teses que fundamentam a condenação dos réus, apresentando as razões pelas quais a Procuradoria-Geral da República considera que as provas sustentam a imputação dos crimes. Subsequentemente, o advogado do delator, Mauro Cid, apresentará sua defesa, seguindo-se então os advogados dos demais réus, que terão uma hora cada um para expor seus argumentos em favor de seus clientes. Essa sequência de intervenções da acusação e das defesas dos oito réus está programada para estender-se por mais de dez horas de debate, consumindo integralmente as sessões da primeira semana do julgamento. A extensão da pauta demonstra o comprometimento da corte em garantir o amplo direito de defesa e um exame exaustivo de todas as nuances do caso.
A partir de 9 de setembro, as sessões do STF darão lugar à fase crucial de votação. O ministro Alexandre de Moraes, na qualidade de relator, proferirá seu voto detalhado, que abordará não apenas a questão da condenação ou absolvição dos acusados, mas também outras importantes questões processuais, como a validade do acordo de delação premiada de Mauro Cid. Esta etapa específica do julgamento está projetada para ocupar uma sessão inteira, dada a complexidade e a extensão das análises necessárias. O voto de Moraes servirá como um roteiro inicial para as manifestações dos demais ministros.
Os ministros restantes da Primeira Turma procederão com suas votações, dividindo-as em duas etapas distintas. Inicialmente, suas manifestações se concentrarão nas questões de ordem processual levantadas no processo. Somente em uma segunda rodada de votos é que eles se pronunciarão diretamente sobre o mérito das acusações, ou seja, sobre a culpabilidade dos envolvidos. É relevante observar que, quando da recepção da denúncia pelo núcleo central das acusações da Procuradoria-Geral da República em março, o ministro relator discursou por quase duas horas. Naquela ocasião, a tarefa dos magistrados era apenas determinar se a acusação apresentava indícios suficientes para converter o grupo em réus e dar início formal à ação penal. Agora, contudo, a responsabilidade é muito maior, pois esta será a primeira vez que os ministros se posicionarão formalmente e em definitivo sobre a culpabilidade dos réus, o que naturalmente se espera que resulte em votos mais extensos e detalhados, refletindo a seriedade da decisão a ser tomada.
Questões Em Aberto e o Futuro dos Réus
Interlocutores do tribunal, que incluem tanto ministros quanto advogados envolvidos no processo, indicam que há três pontos críticos que permanecem sem definição clara e que podem moldar significativamente o desfecho do julgamento. A resolução destas questões pode influenciar diretamente a interpretação das provas, as deliberações sobre as culpas individuais e as eventuais penas a serem aplicadas.
A primeira questão central diz respeito à manutenção e aos termos da delação premiada firmada pelo ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, Mauro Cid. Cid prestou múltiplos depoimentos ao longo da investigação, e as estratégias de defesa de diversos réus, com destaque para Jair Bolsonaro e Braga Netto, têm se concentrado em questionar veementemente a credibilidade de suas declarações e a própria legalidade do instrumento jurídico utilizado. O tenente-coronel Cid gravou seu nome na história do país ao se tornar o primeiro militar a atuar como delator em um processo penal. No entanto, o “vaivém” de versões apresentadas por ele em diferentes momentos levantou dúvidas e colocou seu acordo de colaboração em risco. Apesar das controvérsias, a expectativa geral é de que sua colaboração seja validada, em grande parte devido ao peso e à relevância das informações fornecidas para a condução da investigação. Contudo, existe a possibilidade real de que ele perca alguns dos benefícios originalmente negociados com a Polícia Federal, como consequência da instabilidade em suas narrativas.

Imagem: www1.folha.uol.com.br
A segunda questão importante versa sobre a possibilidade de absolvições em um julgamento onde a condenação da maioria dos réus considerados centrais é vista como um desfecho quase certo. Apesar dessa perspectiva geral, não se descarta que haja absolvições de alguns dos acusados. Essa ponderação entre o robusto conjunto de provas apresentadas pela acusação e os argumentos elaborados pelas defesas abrirá espaço para análises individualizadas. A absolvição de algum dos envolvidos, mesmo em meio a um cenário de condenações amplas, poderia ser estrategicamente interpretada como um gesto do tribunal para enviar um “sinal” às Forças Armadas, reafirmando o compromisso com a impessoalidade e a técnica jurídica, e servindo como uma demonstração da garantia de um julgamento equilibrado e imparcial, onde cada caso é examinado por seus próprios méritos.
O terceiro ponto em aberto e de suma importância refere-se à dosimetria das penas. Após as possíveis condenações, a discussão se voltará para a determinação do tamanho e da gravidade das sentenças que serão impostas. Essa etapa é crucial, pois as penas definidas servirão como base para a eventual concessão de benefícios aos condenados no futuro, como a liberdade condicional, a substituição da pena privativa de liberdade por medidas restritivas de direitos, ou a fixação de um regime inicial de cumprimento de pena mais brando, como o semiaberto ou o aberto. A meticulosidade na aplicação da dosimetria refletirá a proporcionalidade entre o crime cometido e a sanção imposta, influenciando diretamente a vida dos que forem condenados.
Os Limites dos Recursos e o Esgotamento das Vias Jurídicas
Para os réus eventualmente condenados neste processo no STF, o campo para revisões da sentença é consideravelmente estreito. Diferentemente de outros casos de grande repercussão, como os da Operação Lava Jato, que se iniciaram nas instâncias inferiores do Poder Judiciário, este julgamento ocorre diretamente na Suprema Corte, o que implica um número reduzido de recursos jurídicos possíveis no sistema nacional. A expectativa é de que, após o encerramento do processo no STF, as defesas dos condenados já articulam a possibilidade de levar o caso a cortes internacionais, explorando as últimas vias jurídicas possíveis em busca de alguma revisão ou mitigação das sentenças impostas no Brasil. No entanto, tal caminho representa uma jornada longa e com desfechos incertos, mas que é aventado dada a limitada capacidade de recorrer internamente.
A execução das penas impostas pelo STF, que poderia levar à prisão dos réus, somente ocorrerá após o trânsito em julgado do processo, ou seja, quando todos os recursos cabíveis forem esgotados e a decisão judicial se tornar definitiva e imutável. Esta é uma jurisprudência consolidada do próprio Supremo Tribunal Federal. A corte, geralmente, tem aceitado que as defesas apresentem até duas tentativas de recursos no âmbito nacional antes de considerar o caso por encerrado e a sentença passível de execução. Apenas após esta etapa que os réus estariam sujeitos à prisão.
Vale ressaltar a situação de Carlos Bolsonaro, conhecido como Braga Netto, que está preso preventivamente desde 14 de dezembro de 2024. No caso de sua condenação, o tempo já cumprido em prisão preventiva será integralmente contabilizado no cálculo da pena final. A situação de Jair Bolsonaro é diferente, uma vez que ele permanece em sua residência, não estando sob custódia prisional. Esse contraste entre a situação dos acusados reforça as peculiaridades de cada caso, embora todos estejam sob a mesma égide processual neste julgamento.
Por fim, com o julgamento realizado diretamente na Turma do STF, existe uma possibilidade adicional de recurso: os chamados embargos infringentes. Este tipo de recurso, menos comum, é cabível especificamente quando dois dos cinco ministros que compõem a Turma manifestam votos divergentes da maioria, ou seja, ficam vencidos na decisão. Os embargos infringentes poderiam, em tese, levar a análise do caso para o Plenário do Supremo Tribunal Federal, composto por todos os 11 ministros, o que representaria uma nova rodada de julgamento com um colegiado mais amplo. Contudo, essa perspectiva não está no horizonte atual, conforme as projeções dos analistas internos e advogados envolvidos no caso. Apesar de eventuais divergências pontuais do ministro Luiz Fux, o ministro relator, Alexandre de Moraes, tem demonstrado um apoio consistente e amplo dos demais membros da Primeira Turma, notadamente dos ministros Flávio Dino, Cármen Lúcia e Cristiano Zanin, o que enfraquece a chance de formação de uma minoria significativa para o cabimento dos embargos infringentes e reforça a provável solidez da decisão que for tomada pela Turma.
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Em síntese, este processo se desenrola como um marco indelével na trajetória do Judiciário brasileiro. Desde os inéditos crimes em debate até as nuances de seus aspectos práticos e procedimentais, cada etapa sublinha a singularidade do momento. A responsabilidade dos ministros em garantir um julgamento justo, equilibrado e rigoroso é imensa, reverberando nas próximas décadas na política e na jurisprudência do país.
Com informações de Folha de S.Paulo
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