Um episódio notável marcou a participação de Luis Fernando Verissimo em um evento literário em 3 de outubro de 2015. Na Feira do Livro de Caxias do Sul, o renomado cronista, sua esposa Lúcia e a jornalista Cláudia Laitano foram recebidos por manifestantes que imitavam latidos de cães. Este incidente, envolvendo “homens e mulheres de certa idade”, alguns portando cartazes com a onomatopeia “Au, au, au” escrita em letras maiúsculas, foi um prenúncio do que se tornaria a “direita performática” nos anos seguintes, marcando uma escalada de polarização na vida pública brasileira.
O protesto não era isolado; refletia um clima de agitação que se espalhava pelo país. Naquele ano, o Brasil vivenciava um período de intensa efervescência política, antecedendo eventos cruciais como a entrega do pedido de impeachment da então presidente Dilma Rousseff, que aconteceria ao final de outubro, protocolado por parlamentares de oposição na Câmara dos Deputados. O episódio ocorrido na Praça Dante Alighieri, em Caxias do Sul, local que parecia apropriado para “almas penadas” na visão da narradora, destacou a virulência do discurso público. LFV, então com 88 anos e sempre reconhecido por sua postura reservada, permaneceu sereno. Sua esposa, Lúcia, com sua inabalável compostura, discretamente explicou à jornalista acompanhante o contexto da situação, garantindo que o grupo mantivesse o ritmo, nem tão lento a ponto de parecer provocação, nem tão rápido que pudesse ser interpretado como fuga, uma tática comparável à prudência do senador Pinheiro Machado diante de uma emboscada histórica. A atitude do cronista gaúcho reiterou sua característica notória de não externar emoções fortes em público.
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A tensão na feira tinha raízes em um artigo recente de Verissimo. Em agosto de 2015, ele havia publicado uma crônica intitulada “O vácuo”, na qual traçava um paralelo entre os manifestantes que clamavam pela derrubada do governo de Dilma, de Lula e do PT, e cachorros correndo atrás de carros – uma raiva intensa, porém “sem planejamento”, sem uma clareza sobre o que fariam caso alcançassem seu objetivo. Essa metáfora canina forneceu a inspiração para o “show” na praça. A época, ainda incipiente em termos de nomenclaturas políticas contemporâneas, não conhecia o termo “bolsonarismo”, mas já presenciava os “músculos” de uma nova forma de ativismo de direita, preparando o terreno para “o show de horrores dos anos seguintes”. Incidentes como a declaração de Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputados, que afirmou não estuprar uma colega porque ela não “merecia”, e o lançamento do canal de Olavo de Carvalho no YouTube, foram marcos que já sinalizavam a profunda inquietação nacional que LFV observava e criticava.
Para a jornalista Cláudia Laitano, que havia sido editora das colunas de Verissimo no jornal Zero Hora e possuía uma convivência próxima com a família, a cena era ao mesmo tempo familiar em sua essência hostil, mas inusitada na sua manifestação pública e coordenada. Verissimo já havia recebido “reações epistolares em tom pouco amigável” durante o governo Collor, incluindo ameaças a sua família. Anos mais tarde, em 2012, quando uma gripe severa o colocou em risco de morte, houve até mensagens que lamentavam sua recuperação. A grande diferença naquele momento, segundo Laitano, era o “teatro”, a “presepada em praça pública” e, crucialmente, a organização por meio de ferramentas como o WhatsApp, indicando uma nova era de articulação de manifestações. O episódio da Feira do Livro de Caxias do Sul, para ela, tornou-se um “marco zero particular”, a primeira expressão presencial (um termo ainda não corriqueiro, como observou) dessa nova dinâmica política, destacando o ataque coordenado e coreografado contra um escritor.
A escolha de Luis Fernando Verissimo como alvo desse tipo de agressão era, para muitos gaúchos, ainda mais surpreendente. Seu sobrenome, herdado do pai Erico Verissimo, representava uma tradição de orgulho e respeito no estado, motivo de admiração que se estendia mesmo a adversários políticos. No Rio Grande do Sul, um estado que historicamente valoriza suas “glórias reais e imaginárias”, os Verissimo eram tidos como figuras intocáveis, até aquele dia. O talento inegável de LFV para a crônica o tornara uma figura pública de imensa popularidade. Desde os anos 1970, quando Cláudia Laitano começou a ler jornais, Luis Fernando Verissimo, já radicado em Porto Alegre, era um cronista diário lido por várias gerações de sua própria família: avós, pais e irmãos. Suas crônicas eram compreendidas e apreciadas por leitores de todas as idades e repertórios, demonstrando uma habilidade comunicativa inigualável. Ninguém dizia que não havia entendido ou que ele “estava sem assunto”, o que atesta a sua profunda conexão com o público.
Contudo, a vocação de escritor, que mais tarde se tornou tão evidente, levou um tempo para desabrochar. Antes de se tornar o ícone da literatura e do jornalismo que o Brasil conheceria, LFV, aos 30 anos de idade, vivia um momento de incerteza e poucas perspectivas profissionais. Casado e com uma filha pequena, e com outra a caminho, ele não tinha um emprego fixo, subsistindo com “bicos” em agências de publicidade e realizando traduções, enquanto morava na casa dos pais. Essa situação o colocou à beira da depressão, revelando uma fase de vulnerabilidade para a personalidade que se tornaria uma das vozes mais sagazes do país. A mudança de rumo ocorreu por meio de um convite inesperado.
Foi Paulo Amorim, à época diretor de redação do jornal Zero Hora, quem vislumbrou o potencial de Luis Fernando Verissimo para o jornalismo. Amorim percebeu que o jovem poderia encontrar ali uma “vocação definitiva” ou, no mínimo, uma nova forma de ganhar a vida com um salário fixo ao final do mês. Fundado em 1964, o jornal Zero Hora ainda não possuía o mesmo prestígio de concorrentes tradicionais do Rio Grande do Sul, como o Correio do Povo e a Folha da Tarde. Dessa forma, as expectativas em relação a novos colaboradores não eram particularmente elevadas, o que talvez tenha facilitado a oportunidade. Verissimo, no entanto, demonstrou hesitação, argumentando que não possuía habilidades para a escrita e que seria “um vexame para todo mundo” se falhasse. Amorim, persistente, sugeriu que ele fizesse um teste. O argumento era simples: se funcionasse, seria ótimo; se não, ele poderia retomar as atividades que exercia antes, que eram “praticamente nada”.
No início de 1967, LFV ingressou na redação da Zero Hora, primeiramente na função de copidesque. Rapidamente, contudo, ele demonstrou uma versatilidade extraordinária, assumindo múltiplas tarefas no jornal. Sua capacidade de atuar em diversas frentes o transformou em um “coringa” da redação, sendo capaz de escrever o horóscopo em um dia e, em outro, assinar artigos de opinião sob pseudônimos. Foi editor das áreas de variedades, internacional e nacional. Adicionalmente, redigiu matérias para a seção “Programinha”, um guia que oferecia informações sobre cultura e entretenimento. Verissimo encontrava nesses textos anônimos uma liberdade criativa que lhe permitia transcender sua famosa timidez, inventando com despojamento “lugares que não existiam”, como o fictício “Centro de Tradições Gaúchas Ai Bota Aqui”, e figuras “da alta sociedade” que ostentavam fortunas imaginárias nas colunas sociais. A única função jornalística em que Verissimo não se arriscou foi a de repórter – ironicamente, aquela que exigia mais interação verbal com desconhecidos, um desafio para alguém com sua aversão a falar em público.
A oportunidade de se tornar cronista surgiu em 1969. Quando Sérgio Jockymann, um dos cronistas mais lidos de Porto Alegre, transferiu-se da Zero Hora para um veículo de maior alcance, Paulo Amorim não hesitou em escalar Luis Fernando Verissimo para a posição, confiando em sua versatilidade e experiência em cobrir as férias dos colegas. A sua primeira coluna, intitulada “Entrando em campo”, foi publicada em 19 de abril de 1969, quando LFV tinha 32 anos. O título carregava um duplo sentido: não apenas marcava sua estreia no prestigiado espaço de jornal, mas também remetia à expectativa em torno de um Gre-Nal, o clássico futebolístico gaúcho, que se aproximava. Naquela crônica inaugural, Verissimo apresentava-se com humildade e uma pitada de sua futura marca registrada de ironia, declarando suas “muito poucas” credenciais: “Luis com esse Fernando dos Verissimo de Portugal e Cruz Alta. Admirador do Internacional em geral e do Ivo Corrêa Pires¹ em particular, pró-Bráulio² no time, mas aberto ao diálogo. Credenciais, muito poucas. Sei que estou entrando em campo para substituir um astro mas vamos suar a camiseta, tentarei corresponder, futebol é assim mesmo e, no fim das contas, que diabo, são onze contra onze.”

Imagem: piaui.folha.uol.com.br
Em 1970, sua trajetória deu mais uma guinada quando Paulo Amorim foi demitido. Em um gesto de solidariedade ao seu mentor, Luis Fernando Verissimo decidiu deixar o jornal junto com ele. Àquela altura, Verissimo já era um “jovem cronista em ascensão”, tendo seu talento reconhecido por Breno Caldas, então o influente proprietário da Caldas Júnior, a maior empresa de comunicação do Rio Grande do Sul naquele período. Convidado por Caldas, LFV integrou a equipe de redação da Folha da Manhã, um tabloide lançado no final de 1969 com o propósito de competir diretamente com a Zero Hora. Em sua coluna de estreia no novo veículo, novamente intitulada “Credenciais”, publicada em 1970, ele mantinha sua verve peculiar ao apresentar-se aos leitores de maneira descontraída e desafiadora: “Como eu ia dizendo Para quem chegou atrasado, um breve resumo da odisseia do cronista. As credenciais: branco, brasileiro, colorado. Sexo: sim. Estado civil: satisfatório. Sinais particulares: dois. Públicos: quatro. Convicções políticas: você deve estar brincando.”
Ainda naquele período, o país estava sob o regime militar, e “driblar a censura” e lidar com “ameaças, mais ou menos veladas”, fazia parte da rotina de todo jornalista brasileiro. Contudo, veículos menores, conhecidos como alternativos, frequentemente tinham maior liberdade para ousar na forma e no conteúdo, por vezes escapando do rigoroso monitoramento dos censores. Inspirados no modelo do sucesso de “O Pasquim”, o jornal carioca lançado em 1969 que combinava humor e crítica política, Luis Fernando Verissimo e um grupo de amigos em Porto Alegre, incluindo o escritor Moacyr Scliar, idealizaram e criaram o jornal semanal “Pato Macho”. As reuniões para o planejamento editorial, caracterizadas por uma informalidade que fugia da rigidez de uma redação fixa, aconteciam em locais diversos, como a boate Encouraçado Butikin ou nas residências do próprio LFV e de Scliar. Publicado entre abril e julho de 1971, as quinze edições do “Pato Macho” tornaram-se um marco significativo na história da imprensa gaúcha, evidenciando a criatividade e a resistência cultural em tempos de repressão.
Em 1975, mais uma vez por lealdade profissional, Luis Fernando Verissimo deixou seu emprego na Folha da Manhã, em um movimento solidário ao diretor Ruy Carlos Ostermann, que, junto com quase um terço da redação, havia pedido demissão. A separação durou pouco tempo; LFV foi prontamente recontratado pela Zero Hora, o jornal que o havia projetado. Nessa altura, o escritor já havia consolidado seu prestígio para além das fronteiras gaúchas: tinha dois livros publicados pela respeitada editora José Olympio e colaborava com duas crônicas semanais para o influente Jornal do Brasil, no Rio de Janeiro. Era evidente que Verissimo estava se estabelecendo como um nome de relevância nacional, ampliando seu alcance e reconhecimento em todo o país.
Sua prolífica carreira estendeu-se de 1967 a 2021, ano em que decidiu parar de escrever. Durante esse período, LFV publicou suas obras em “dezenas de veículos do país”, abrangendo desde grandes jornais até publicações menores, e até em algumas estrangeiras. Além de sua vasta produção jornalística e literária, Verissimo demonstrou uma versatilidade artística impressionante. Nos intervalos da escrita, ele colaborou com renomados programas de humor da televisão Globo, como “O Planeta dos Homens” e “TV Pirata”, criando esquetes e diálogos que divertiram milhões. Também se aventurou na escrita de relatos de viagem, contos e romances. Sua criatividade não se limitava às palavras: ele desenhou e deu vida a personagens icônicos, como a “Velhinha de Taubaté” e o “Analista de Bagé”, que se tornaram parte do imaginário popular. Com mais de cinco milhões de livros vendidos, LFV consolidou-se como um dos autores mais queridos do Brasil. Para além de suas atividades artísticas e literárias, era também músico, tocava saxofone, e um torcedor fervoroso do Sport Club Internacional, manifestando sua paixão pelo futebol gaúcho.
Ao longo de sua extensa vida e carreira, Luis Fernando Verissimo testemunhou e interpretou grandes momentos da história política e social brasileira. Ele “atravessou uma ditadura, dois impeachments e o fanatismo futebolístico gaúcho”, mantendo-se sempre fiel às suas convicções e nunca hesitando em expor seu posicionamento, sem “esconder de que lado estava”. Seu legado transcendeu barreiras ideológicas e sociais: era lido e apreciado por uma gama diversificada de pessoas, desde “metalúrgicos” a “sociólogos”, e até mesmo por “gremistas”, os torcedores do time arquirrival do Internacional. Em um tempo em que as “unanimidades nacionais” eram possíveis e de certa forma esperadas, Luis Fernando Verissimo emergiu como uma das figuras mais consistentes, influentes e “duradouras” da cultura brasileira. Sua capacidade de comunicar-se e ser aceito por públicos tão díspares reflete um respeito e admiração profundos que ele conquistou. Seu percurso e sua obra foram marcantes, independentemente das oscilações da política ou da polarização que o país experimentou ao longo dos anos, ou que se manifestam ainda hoje com os persistentes “latidos”.
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A relevância de sua obra e seu impacto cultural permaneceram inalterados, cimentando seu lugar na memória coletiva brasileira. Apesar de eventuais “cães [que] ainda insistam em ladrar” nos caminhos da história e da vida pública, a “caravana” de Luis Fernando Verissimo e sua contribuição já garantiram um lugar imutável nos anais do jornalismo e da literatura.
Com informações de revista piauí
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