A saúde mental em favelas no Rio de Janeiro é severamente impactada por operações policiais e pela atuação de facções, criando um cenário de traumas duradouros para seus habitantes. Especialistas caracterizam as sequelas psicológicas e físicas como uma “bomba invisível”, com efeitos que perduram muito após a cessação dos confrontos diretos.
Professor José Claudio Sousa Alves, do departamento de ciências sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e renomado estudioso de violência urbana, descreve essas intervenções como detonadoras de consequências catastróficas. Um exemplo recente é a Operação Contenção, classificada como uma das mais letais dos últimos anos no Rio. Ela ocorreu na última terça-feira (28), impactando gravemente comunidades com a morte de dezenas de pessoas e a instauração do caos.
Operações policiais e facções: o trauma de favelas no Rio
Conduzida na última terça-feira (28), a Operação Contenção, que teve como alvo os Complexos do Alemão e da Penha, na Zona Norte carioca, deixou um rastro de pelo menos 121 mortos. A intervenção causou pânico generalizado com intensos tiroteios, provocou o fechamento de comércio, escolas e unidades de saúde, além de interditar importantes vias urbanas e alterar rotas de transporte público, resultando também em ônibus incendiados. Cenas de corpos estendidos em praça pública, rodeados por familiares e moradores em luto, agravaram o horror. O professor Alves adverte que as consequências dessa violência continuarão a ser sentidas pela comunidade, que já sofre com históricos de outras intervenções de alto impacto.
Consequências Graves para a Saúde e Bem-Estar em Comunidades Vulneráveis
A violência persistente em favelas expõe seus moradores a uma série de problemas de saúde, que se manifestam tanto física quanto mentalmente. José Claudio Sousa Alves detalha que é comum observar nesses locais um aumento na incidência de diabetes, hipertensão e distúrbios neurológicos, como acidentes vasculares cerebrais (AVCs). Complicações oculares, incluindo glaucoma, e uma variedade de distúrbios emocionais e de sono, como a insônia crônica, são outras manifestações comuns do estresse prolongado.
Para investigar a profundidade desses problemas, o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec) realizou uma pesquisa que comparou o estado de saúde de residentes de favelas com alta incidência de tiroteios com agentes estatais com o de moradores de comunidades mais pacíficas. O estudo buscou mapear os impactos diretos da exposição constante à violência armada na qualidade de vida.
Os resultados da pesquisa do Cesec foram alarmantes. Residentes de favelas mais expostas a tiroteios demonstraram um risco mais de duas vezes superior de desenvolver quadros de depressão e ansiedade em comparação com os de áreas menos conflagradas. A probabilidade de enfrentar insônia foi 73% maior e a de hipertensão arterial, 42%. Um terço dos participantes dessas comunidades também relatou sintomas físicos durante os tiroteios, como sudorese excessiva, tremores e falta de ar, destacando a íntima ligação entre o ambiente de violência e a deterioração da saúde da população das favelas.
O Grito Contra a Discriminação e Pela Vida nas Periferias Cariocas
As reações da sociedade civil à Operação Contenção foram imediatas, culminando em manifestações organizadas. A dirigente sindical Raimunda de Jesus participou de um desses atos, realizado no Complexo da Penha na última sexta-feira (31), onde manifestou forte crítica à maneira como as operações policiais são conduzidas nas periferias em contraste com áreas mais nobres da cidade.
“A forma que aconteceu aqui não acontece na Zona Sul, nas áreas mais ricas, mas lá também tem bandidos”, afirmou Raimunda, denunciando a discriminação. Ela reforçou a mensagem de que o Estado não deve encarar os moradores das favelas como adversários, mas como cidadãos que merecem proteção e cuidado. Essa demanda por uma postura mais humanitária e equitativa por parte das forças de segurança reflete o clamor de muitos por uma abordagem menos repressiva e mais focada na resolução de problemas sociais, especialmente em um ambiente já vulnerável pela presença de facções.
Liliane Santos Rodrigues, moradora do Complexo do Alemão, também presente no protesto, trouxe consigo a dor de uma perda pessoal recente. Há seis meses, seu filho Gabriel Santos Vieira, de 17 anos, foi fatalmente atingido por cinco tiros durante uma perseguição policial, enquanto se deslocava para o trabalho em uma motocicleta de aplicativo. Seu desabafo evidenciou a universalidade da dor dessas famílias: “Eu estou sentindo a dor dessas mães. Foi um baque muito grande ver que um rapaz foi morto no mesmo lugar em que o meu filho morreu. Tem três dias que eu não sei o que é dormir direito”, desabafou Liliane, expressando o impacto direto e devastador da violência armada em sua vida.
No rastro do confronto, dezenas de corpos foram levados por moradores à Praça São Lucas, na Penha, evidenciando o desespero e a urgência por assistência e justiça para as famílias. A atuação da organização criminosa em tais complexos e a resposta do Estado são temas recorrentes de debates, buscando soluções que considerem a dignidade humana acima de tudo.
Favela Cariocas: Quartéis-Generais e Lar de Milhares
Os complexos do Alemão e da Penha são, segundo a Secretaria de Segurança do Rio de Janeiro, considerados quartéis-generais do Comando Vermelho, abrigando importantes lideranças da organização criminosa vindas de diversos estados. Carolina Grillo, coordenadora do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni/UFF), aponta que muitos chefes do tráfico, tanto os poucos que ainda estão em liberdade quanto aqueles que lideram de dentro de prisões, mantêm residências nessas comunidades devido à alta resistência armada que elas oferecem. Essa resistência proporciona mais tempo para fugas e esconderijos durante operações policiais.
Entretanto, esses locais são mais do que meros redutos criminosos; são o lar de mais de 110 mil pessoas, que se tornam as principais vítimas de operações como a Operação Contenção. Grillo ressalta a ineficácia dessas intervenções violentas. Apesar de 113 prisões, inúmeras mortes e apreensões, a estrutura fundamental do Comando Vermelho permanece intacta, enquanto as famílias dos moradores das favelas são as que realmente sofrem, ficando traumatizadas por toda a vida. Estudos e relatórios de segurança pública nacional frequentemente destacam os danos colaterais dessas ações, evidenciando a importância de um olhar mais amplo sobre o impacto social das políticas de segurança.
Evolução e Expansão do Comando Vermelho no Cenário Fluminense
O Comando Vermelho, a facção no cerne da Operação Contenção, teve suas origens no final da década de 1970 no sistema prisional do Rio de Janeiro. Segundo José Claudio Sousa Alves, seu surgimento em ambientes hostis como o presídio do Caldeirão do Diabo, em Ilha Grande, marcou a capacidade organizativa que migrou o foco do crime do roubo a bancos para o amplo universo do tráfico de drogas, resultando em um crescimento constante e uma forte consolidação.
Uma nota técnica do Fórum Brasileiro de Segurança Pública aponta que o Comando Vermelho figura como a segunda maior organização criminosa do país, com atuação confirmada em 24 estados e no Distrito Federal, além de manter elos internacionais para o comércio de drogas e outras atividades ilícitas. Sua capilaridade nacional é um indicativo do desafio que representa para a segurança pública.
Uma pesquisa conjunta do Geni e do Instituto Fogo Cruzado demonstrou que o Comando Vermelho foi a única organização a expandir seu domínio territorial na Grande Rio entre 2022 e 2023. Com um crescimento de 8,4%, a facção superou as milícias e agora detém o controle de 51,9% das áreas sob controle criminoso na região metropolitana. Em contraste, as milícias viram suas áreas diminuírem em 19,3%, passando a controlar 38,9% do território.
O estudo também revelou que o Comando Vermelho recuperou cerca de 242 km² de territórios que haviam sido perdidos para as milícias em 2021. Naquele período, as milícias dominavam 46,5% e o Comando Vermelho 42,9% das áreas sob jugo do crime. A maior expansão da facção foi observada na Baixada Fluminense e no Leste Metropolitano, enquanto as milícias registraram perdas mais significativas na Baixada e na Zona Oeste do Rio. Esse crescimento é alimentado, segundo especialistas, pela disponibilidade de mão de obra em áreas desfavorecidas.
“Não à toa, o crime organizado se instala e prospera em territórios de população vulnerável”, analisa Carolina Grillo. A pesquisadora sublinha que as precárias oportunidades de trabalho para jovens e as profundas desigualdades sociais no Brasil fornecem uma “oferta quase inesgotável de mão de obra para o trabalho criminoso”, impulsionando o recrutamento e o fortalecimento de facções nas periferias do Rio de Janeiro.
O modelo de negócios do Comando Vermelho também se transformou ao longo do tempo, expandindo-se para além do tráfico de drogas. José Claudio Sousa Alves explica que a facção, ao assimilar o modus operandi das milícias do Rio de Janeiro, passou a explorar diretamente os moradores dos territórios que controla, impondo cobranças por serviços essenciais e diversas taxas, evidenciando uma diversificação de suas fontes de receita.
Embora a Operação Contenção tenha culminado na apreensão de diversas toneladas de drogas, o secretário de Polícia Civil, Felipe Curi, reconheceu que a venda de entorpecentes já não representa a principal fonte de financiamento do crime organizado. Segundo ele, “a droga hoje é cerca de 10% a 15% do faturamento das facções. Ela enxergou que o território é sinônimo de receita, de dinheiro, exploração econômica”, detalhou Curi. Essa exploração territorial envolve a cobrança por serviços como internet, gás, energia elétrica e água, a construção de moradias irregulares e a extorsão de comerciantes e residentes das comunidades, reforçando a estratégia econômica do Comando Vermelho em relação aos territórios dominados.
Alternativas ao Combate Convencional ao Crime Organizado
Tanto José Claudio Sousa Alves quanto Carolina Grillo defendem que o foco em operações policiais violentas não constitui a forma mais eficaz para combater o crime organizado. A contínua manutenção do controle territorial por facções ao longo dos anos, apesar de sucessivas operações, serve como forte evidência para essa conclusão. A saúde mental em favelas continua a ser comprometida por este modelo de segurança.
Dados de um estudo do Geni e Fogo Cruzado ilustram a complexa distribuição de poder no Rio de Janeiro: 3.603.440 moradores da região metropolitana vivem sob o domínio de milícias (29,2%); 2.981.982 sob o Comando Vermelho (24,2%); 445.626 sob o Terceiro Comando (3,6%); e 48.232 sob o Amigo dos Amigos (0,4%). Cerca de 4,4 milhões de fluminenses habitam bairros em constante disputa (36,2%).
Grillo sugere a existência de “outros elos estratégicos, cujo combate se dá de uma forma não violenta”, mencionando a Operação Carbono Oculto, que desmantelou estruturas financeiras do PCC sem disparar um tiro. Outro exemplo citado foi uma operação da Polícia Federal que, no Rio de Janeiro, desarticulou uma rede criminosa especializada na fabricação e venda ilegal de armas de fogo restritas, demonstrando um impacto muito maior no desarmamento do crime organizado do que as abordagens confrontacionais.
A pesquisadora enfatiza o gigantesco impacto negativo das ações violentas sobre a sociedade, em particular sobre crianças e famílias. Estes grupos são submetidos a traumas irreparáveis, com interrupção da vida cotidiana – impedidos de trabalhar, de levar os filhos à escola – sem que tais operações resultem em qualquer avanço efetivo na libertação dessas comunidades. Professor Alves aprofunda a discussão questionando: “Para onde vai essa grana toda do tráfico? Quem tá operando? É o pé de chinelo lá do Alemão? É o pobre vendedor no varejo? Para onde vai essa grana toda? Tá com ele mesmo? Não tá. É óbvio que não. Você tem estruturas muito mais amplas.” Ele reforça que a existência de estruturas criminosas internacionais demanda investigações complexas, como a Operação Carbono Oculto demonstrou ser possível.
Uma linha de atuação fundamental e defendida pelos especialistas é a criação e oferta de oportunidades tangíveis para as populações das favelas e áreas vulneráveis, com foco especial nos jovens. O objetivo é evitar que sejam cooptados pelo crime organizado, fortalecendo, assim, as facções. Alves lamenta a falta de propostas governamentais concretas para esse vasto contingente de pessoas: “Não há propostas nem do atual governo, muito menos dos anteriores, em relação a essa massa de pessoas que não conseguem acessar mercado de trabalho, estão cada vez mais precarizados, há uma população que vive sem salário”. Por outro lado, Carolina Grillo elogia o Pronasci Juventude, iniciativa do Ministério da Justiça e Segurança Pública que visa à prevenção da violência associada a mercados ilegais, através de apoio à educação, capacitação e inserção de jovens no mercado de trabalho.
*Colaborou Tâmara Freire. Edição: Vinicius Lisboa
Confira também: Imoveis em Rio das Ostras
Este artigo buscou detalhar as complexas e dramáticas consequências das operações policiais e da consolidação de facções na saúde mental em favelas no Rio de Janeiro. É fundamental que a sociedade e as autoridades compreendam a profundidade dos traumas e das doenças que afligem essas comunidades. Para continuar acompanhando análises aprofundadas sobre os desafios urbanos e as políticas públicas no Brasil, siga a nossa editoria de Cidades e mantenha-se informado sobre os temas mais relevantes.
Crédito da imagem: Tânia Rêgo/Agência Brasil


