Um esforço inédito em Mato Grosso resultou na identificação de pessoas que estavam há anos sepultadas como indigentes. Mais de 40 indivíduos, cuja identidade permaneceu um mistério por até duas décadas após suas mortes, foram oficialmente reconhecidos por meio de tecnologia avançada de biometria. Esta importante conquista é fruto de uma colaboração estratégica entre a Perícia Oficial e Identificação Técnica de Mato Grosso (Politec-MT) e a empresa Griaule, no âmbito do projeto “Lembre de mim”.
A iniciativa pioneira reexaminou 122 registros de falecidos registrados entre os anos de 2009 e 2025 que não possuíam identificação. Os resultados foram significativos, revelando desde janeiro que aproximadamente 34% dessas vítimas que estavam em Cuiabá sem nome há 16 anos foram devidamente reconhecidas. Esse avanço representa um passo fundamental para oferecer encerramento e resposta a muitas famílias que há tempos buscavam por seus entes desaparecidos.
Pessoas Indigentes: Mais de 40 Corpos Identificados em Cuiabá
O sucesso do projeto “Lembre de mim” fundamenta-se na utilização de um robusto Sistema Automatizado de Identificação Biométrica (ABIS). Essa ferramenta é crucial para o processo de identificação, permitindo o cruzamento de impressões digitais coletadas de corpos não identificados com vasta bases de dados digitalizadas, que contêm milhões de registros civis. Entre os órgãos que contribuem para essa base está a Secretaria de Segurança Pública de Mato Grosso, que, desde 2024, tem realizado um intenso trabalho de digitalização do acervo civil do estado, convertendo informações de impressões digitais e faces de cidadãos para o formato digital. Esse trabalho tem se mostrado essencial, especialmente considerando que muitos dos casos antigos de falta de identificação decorriam da ausência de tecnologias biométricas na época das ocorrências.
Thiago Ribeiro, diretor de negócios da Griaule, explicou em entrevista que o sistema biométrico possui um registro impressionante de cerca de 4 milhões de pessoas, sendo um resultado direto do meticuloso trabalho de digitalização do acervo estadual. Este sistema foi concebido para endereçar diretamente casos de desaparecimento e também auxiliar na identificação de vítimas em acidentes. Ele detalha que tanto as impressões digitais quanto as faces são transformadas em “templates biométricos” e posteriormente pesquisadas nesse extenso banco de dados, possibilitando a determinação precisa da identidade de cada pessoa. “Isso permitiu que pessoas desaparecidas há mais de 20 anos fossem identificadas”, enfatizou Ribeiro, destacando o potencial revolucionário da tecnologia.
O diretor da Griaule ressaltou a sofisticação da tecnologia empregada, mencionando o uso de criptografia avançada, inteligência artificial e algoritmos capazes de processar informações em meros milissegundos durante a fase de checagem. Como resultado dessa eficiência tecnológica, o tempo médio para a identificação de uma vítima foi reduzido para um período de até 13 dias. Atualmente, os dados do projeto indicam a existência de cerca de 400 mil vítimas sem identificação apenas no Instituto Médico Legal (IML) de Cuiabá, o que sublinha a magnitude e a relevância contínua da iniciativa.
Para a dona de casa Tereza de Andrade, de 72 anos, a descoberta da identidade de seu neto, Thiago Carlos Neto, 12 anos após seu desaparecimento em agosto de 2012, trouxe uma mistura complexa de sentimentos. A família, que durante anos espalhou cartazes pela cidade em busca de Thiago, recebeu a notícia da identificação do corpo em 2024. Sua reação inicial, marcada por uma tristeza profunda, reflete a dura realidade de anos de espera. “Mas que corpo? Não tem mais corpo. Porque faz tanto tempo, tantos anos, então não tem mais corpo”, desabafou Tereza. Ela lamentou a dor de saber que a esperança de um reencontro foi desfeita, substituída por um desfecho que, embora necessário, a impede de nutrir a fantasia da volta do neto para o portão de casa.
A coordenadora do projeto “Lembre de mim” e papiloscopista do IML, Simone Delgado, detalha o rigoroso processo de identificação. A primeira fase envolve a análise de corpos recém-chegados ao IML ou já presentes no sistema como não identificados. Segundo Delgado, mesmo em situações desafiadoras, como corpos em estado avançado de decomposição ou carbonizados, a equipe é capaz de recuperar tecidos para a coleta de impressões digitais. Essas impressões são então processadas no sistema automatizado, permitindo a pesquisa e comparação com a base de dados.
A base biométrica utilizada para a identificação dos corpos e, subsequentemente, das famílias é constantemente atualizada através dos documentos emitidos no estado. Ao realizar a atualização de documentos como o Registro Geral (RG), é solicitada uma nova fotografia. Similarmente, na primeira emissão do RG, as impressões digitais dos dez dedos são coletadas. Estes dados (fotografia e digitais) são fontes vitais para identificar os corpos que chegam ao IML.

Imagem: g1.globo.com
“Cada indivíduo possui uma digital única. Devido a essa individualização, o sistema realiza uma pesquisa e nos aponta os candidatos com impressões digitais semelhantes”, explica Simone Delgado. É através desse processo de comparação que se torna possível rastrear e identificar as famílias dos indivíduos encontrados. Esta etapa é fundamental, não apenas para o reconhecimento do falecido, mas para garantir que as informações corretas cheguem aos familiares.
Outro caso comovente elucidado pelo projeto é o de Rafael de Oliveira Flores, que havia perdido contato com a família após uma visita de um irmão em 2014. A meia-irmã de Rafael, Franciele Paula Flores, iniciou uma busca incessante após o falecimento do pai em 2016, com o objetivo de avisar Rafael. Sem sucesso, Franciele presumiu que ele estaria trabalhando em alguma fazenda, distante e sem querer contato. Apenas em 2025, uma década após o desaparecimento, Paula recebeu a notícia de que Rafael havia falecido em fevereiro de 2015, um ano antes mesmo de seu pai.
Paula relatou sua emoção ao g1: “Sonhava muito com ele e tinha a esperança de encontrar, mas não desse jeito. Sempre achei que seria eu a encontrar o meu irmão, e de certa forma foi”. Sua experiência destaca a importância da manutenção de dados atualizados no sistema. Como doadora de medula, Paula sempre se preocupou em manter suas informações, como telefone e endereço, corretas. Essa atitude se mostrou decisiva, pois possibilitou o contato com a família.
Franciele detalhou como a tecnologia viabilizou a localização da família: “Eles fizeram um cruzamento de dados, começando pela mãe dele. Não conseguiram encontrar, pois os dados estavam desatualizados, então eles foram procurar pelo nome do nosso pai, que não é tão comum, o que pode ter ajudado. Buscando pela filiação, eles chegaram até mim, cruzando os dados genéticos e da digital. Foram de pessoa a pessoa da família até encontrarem algum contato válido”. A metodologia mostra a resiliência do sistema em conectar as lacunas da informação através de dados genéticos e biométricos.
Projetos como o “Lembre de mim” são cruciais para oferecer dignidade aos mortos sem identificação e trazer alento a famílias em luto, promovendo um impacto social profundo através da tecnologia e da persistência da investigação criminal e pericial, como o sistema de identificação federal. Para mais detalhes sobre iniciativas governamentais de localização de desaparecidos, acesse informações sobre a consulta de desaparecidos no portal do governo.
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Esta conquista em Cuiabá representa um avanço significativo na aplicação de biometria para resolver casos antigos e dolorosos de desaparecimento. A capacidade de unir a ciência forense à tecnologia de ponta traz uma nova esperança para milhares de famílias que aguardam por respostas. Fique por dentro de mais notícias e análises sobre temas importantes que afetam a vida das cidades e do país em nossa editoria de Cidades.
Crédito da imagem: Arquivo pessoal


