Uma Missa Tridentina celebrada no Vaticano neste sábado (25/10) pelo cardeal americano Raymond Burke se tornou um foco de atenção para os setores tradicionalistas da Igreja Católica, marcando um momento crucial para o pontificado do Papa Leão 14. O evento, que ocorrerá na Basílica de São Pedro, transcende uma simples cerimônia em latim, representando um rito historicamente codificado pelo Concílio de Trento, do século 16, e segue os livros litúrgicos anteriores ao Concílio Vaticano II. A celebração é observada de perto, em um cenário de crescentes divisões internas, particularmente nos Estados Unidos.
Nos últimos anos, a Missa Tradicional em Latim tornou-se um ponto de discórdia significativo entre os católicos, especialmente após o Papa Francisco (2013-2025), falecido em abril, impor severas restrições à sua celebração. A Igreja Católica americana, embora possua uma ala conservadora minoritária, exibe influência notável, sendo um dos principais núcleos de oposição ao Papa Francisco ao longo de seus 12 anos de liderança. O cardeal Burke, ex-arcebispo de St. Louis, é uma figura proeminente entre os que defendem os ensinamentos, rituais e costumes anteriores às modernizações do Concílio Vaticano II.
Missa Tridentina no Vaticano: Desafios para Papa Leão 14
Os grupos tradicionalistas intensificaram a pressão sobre o sucessor de Francisco, Papa Leão 14, para que as restrições sejam revistas e o uso mais abrangente da Missa Tridentina seja permitido. A autorização concedida por Leão 14 para a missa deste sábado, após uma audiência privada com Burke em agosto, foi interpretada por alguns como um indício de maior abertura à liturgia tradicional. Contudo, o Pontífice não fez quaisquer promessas explícitas nem sinalizou a intenção de reverter as limitações previamente estabelecidas pelo Papa Francisco. A ausência de clareza nas posições do novo Papa, em meio às expectativas tanto de progressistas quanto de tradicionalistas, amplifica a relevância do tema.
Leão 14, nascido Robert Francis Prevost em Chicago e eleito Papa em maio, é o primeiro americano a ascender ao cargo máximo da Igreja Católica. Enquanto progressistas esperam que ele mantenha a linha reformista de seu predecessor, tradicionalistas nutrem a esperança de uma postura mais conservadora. Massimo Faggioli, especialista em teologia histórica e professor de Eclesiologia no Trinity College, em Dublin, Irlanda, classificou a questão da Missa Tradicional em Latim como um “teste” para Leão 14. “No início de seu pontificado, muitos conservadores tentaram se convencer de que Leão 14 seria a vingança contra o papa Francisco. Acho que agora estão percebendo que ele não é o anti-Francisco (que esperavam)”, afirma Faggioli, ressaltando a expectativa dos tradicionalistas para ver suas próximas ações.
Características e Conflito Teológico do Rito Tridentino
Além do uso do latim, o rito tridentino é marcado por diversas particularidades da liturgia pré-Concílio Vaticano II, como os cânticos gregorianos, a posição do padre voltado para o altar e de costas para os fiéis, e a comunhão recebida de joelhos. A Missa deste sábado, comandada por Burke, é uma Missa Pontifical Solene, a forma mais elaborada da Missa Tradicional em Latim, celebrada por um bispo e caracterizada por rituais e ornamentos especiais. Essa celebração faz parte da peregrinação anual Summorum Pontificum a Roma, que desde 2012 reúne fiéis, sacerdotes e religiosos católicos de todo o mundo que são devotos da Missa em Latim e da liturgia tradicional. Nos dois últimos anos, entretanto, os participantes não haviam obtido autorização para celebrar a missa, em virtude das restrições impostas por Francisco.
Em 2021, o Papa Francisco emitiu o “motu proprio” (documento papal) “Traditionis custodes”, que estabeleceu uma série de limitações à Missa Tridentina, incluindo a exigência de autorização episcopal explícita, após consulta com o Vaticano. Por séculos, o latim foi o idioma oficial das missas católicas. O Concílio Vaticano II, na década de 1960, trouxe profundas alterações, visando aproximar os fiéis da liturgia, e permitiu o uso de línguas locais. Com isso, a Missa em Latim quase desapareceu. Uma ordem do Papa João Paulo II na década de 1980 abriu exceções, mas foi Bento XVI que, em uma carta apostólica de 2007, ampliou as possibilidades de celebração da Missa Tridentina. A decisão de Francisco de reverter esse relaxamento e endurecer as restrições foi recebida como um revés pelos setores conservadores. É nesse contexto que seu sucessor, Leão 14, se depara com uma intensa campanha de tradicionalistas e cardeais conservadores, tanto nos EUA quanto em outras nações, para atenuar as proibições. O Papa Francisco, ao justificar sua decisão, argumentou que a Missa Tradicional em Latim estava sendo utilizada de forma “ideológica”, como uma ferramenta para se opor às reformas mais amplas da Igreja, caracterizando a resistência como um retrocesso.
Divisões Ideológicas e Experiência Espiritual
Muitos defensores do rito tridentino também contestam outras transformações introduzidas pelo Concílio Vaticano II, que se estenderam para além da liturgia, impactando a função da Igreja na sociedade e as relações com outras religiões. “Especialmente nos Estados Unidos e no Reino Unido, ou seja, no mundo anglo-americano, a teologia católica se tornou muito polarizada”, explica Faggioli, sublinhando a existência de diferentes concepções sobre o papel da Igreja na sociedade, política e cultura. É fundamental compreender as diretrizes da Santa Sé em relação às liturgias para um panorama completo, como explicitado no documento papal “Traditionis custodes”.
É importante notar que nem todos os adeptos da missa tradicional se guiam por motivações ideológicas. Muitos valorizam a beleza, a solenidade e a rica experiência estética e espiritual da cerimônia, atraindo inclusive um grande número de jovens conservadores. Michael Sean Winters, pesquisador de estudos católicos e colunista do jornal National Catholic Reporter, observa que para grande parte das pessoas, a questão não é politizada, embora admita que possa ser uma agenda política para uma minoria. No entanto, Winters adverte que, nos EUA, o rito tridentino foi “sequestrado” por grupos com uma agenda política que representa uma resistência mais ampla ao Vaticano II, extrapolando a mera oposição à nova missa, e se tornando um catalisador para a oposição ao Papa Francisco.
Os Estados Unidos emergiram como o principal centro de rejeição às tentativas de reforma de Francisco, bem como à sua visão mais liberal de uma Igreja mais inclusiva, aberta a católicos divorciados, LGBTQ+ e outros grupos. Essa visão dava ênfase a questões sociais, como a compaixão por imigrantes e refugiados, o combate à pobreza e às mudanças climáticas. Críticos, por outro lado, acusavam Francisco de “semear confusão” nas doutrinas essenciais da Igreja, em tópicos como homossexualidade, aborto e a indissolubilidade do matrimônio, temendo que a abertura ao engajamento secular pudesse comprometer a religião. Faggioli destaca que, nos EUA, um número expressivo de católicos eleitos pelo Partido Republicano, alguns dos quais integraram o governo de Donald Trump, manifesta “uma certa visão da Igreja, que não é a do Vaticano 2º, que não é adaptável à modernidade”. J.D. Vance, o vice-presidente americano, convertido ao catolicismo em 2019, é admirado por tradicionalistas e é um exemplo da intersecção entre o tradicionalismo litúrgico e agendas políticas no país.
Estilo Ponderado vs. Visão de Leão 14
Leão 14 iniciou seu pontificado enfatizando a importância de construir pontes e de promover a unidade na Igreja. Seus primeiros meses foram discretos, sem grandes declarações, o que levou a que qualquer gesto fosse interpretado como um indicativo de seus futuros rumos. A escolha por vestimentas mais tradicionais do que as usadas por seu predecessor jesuíta, além de sua mudança para o Palácio Apostólico, rompendo uma tradição estabelecida por Francisco, que preferia a Casa de Hóspedes Santa Marta, agradou aos conservadores. O novo Papa, membro da Ordem Agostiniana, tem se mostrado mais reservado e evitado provocações, realizando gestos conciliatórios com críticos de Francisco, como o próprio Burke.
No entanto, declarações recentes de Leão 14 sugerem que as distinções entre ele e Francisco podem residir mais no estilo do que na visão teológica ou pastoral. Nas últimas semanas, o Pontífice criticou o tratamento “desumano” de imigrantes nos EUA, a desigualdade e o uso da fome como arma de guerra. Ele também ressaltou a defesa dos pobres e a atenção aos riscos das mudanças climáticas, pontos que remetem à linha do antecessor. Faggioli observa que é prematuro determinar o que a autorização para a missa do Cardeal Burke significa. “Não sabemos se este é o início de uma revisão da política do papa Francisco sobre o tema”, pondera Faggioli, concluindo que Leão 14 talvez pretenda lidar com os setores conservadores “de maneira mais diplomática” do que seu predecessor. Winters concorda, sugerindo que, em um gesto de reconciliação, Leão 14 pode tentar “trazer todos de volta”, estendendo a mão aos críticos de Francisco. “Mas eles (os críticos) terão de embarcar em um barco que está sendo guiado pelo novo papa, que foi eleito precisamente como alguém que continuaria as reformas iniciadas por Francisco”, afirmou o analista. Winters especula que, no tocante à Missa Tradicional em Latim, “não é inconcebível que Leão 14 pense que Francisco puxou o Band-Aid muito rápido, e talvez relaxe algumas das restrições”, mas conclui que a inércia também não seria surpreendente.
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Em suma, a celebração da Missa Tridentina no Vaticano representa um ponto de inflexão na Igreja Católica, com os olhos do mundo voltados para as ações e declarações do Papa Leão 14. O equilíbrio entre as expectativas de conservadores e progressistas testará a habilidade do novo pontífice em guiar a Igreja. Para aprofundar a compreensão das complexidades e desafios do papado, continue acompanhando as análises e notícias da editoria de Política.
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