A Cidadania Benin está no foco de muitos brasileiros em busca de uma reconexão profunda com suas origens africanas. Esse movimento é impulsionado por um processo que vai além da burocracia, tocando em questões de identidade e reparação histórica. Um exemplo marcante é o consultor de vendas Clayton Muniz Filho, de 29 anos, residente em São Paulo, que, motivado pelo desejo de desvendar a linhagem de sua avó baiana, se viu diante da comum escassez de registros ancestrais que afeta descendentes de escravizados no Brasil.
Diante da dificuldade de acessar documentos históricos, Clayton recorreu a um teste de DNA, ferramenta que revelou que aproximadamente 30% de sua ancestralidade provém da região do atual Benin. Este país, situado na costa ocidental da África, foi um ponto crucial de partida para incontáveis africanos forçosamente trazidos ao Brasil durante o período colonial. Clayton expressa a frustração sentida por muitos: “Enquanto descendentes de italianos podem rastrear a origem de seus antepassados produtores de vinho, os negros no Brasil são privados desse privilégio, devido ao apagamento sistemático desses registros ao longo da história.”
Cidadania Benin: Brasileiros Buscam Raízes Africanas
Muniz Filho, de posse de sua análise genética, viu uma oportunidade singular na proposta do governo do Benin de conceder a nacionalidade a afrodescendentes globais cujas raízes remontam a essa região. Atualmente, ele aguarda o desfecho de seu pedido, percebendo-o como um elo que completará o complexo “quebra-cabeça” de sua jornada familiar. Seu objetivo é, futuramente, visitar o Benin e se conectar ainda mais com essa herança.
Uma Iniciativa de Reconciliação e Desenvolvimento
Em 2024, o governo do Benin instituiu a legislação que facilita a obtenção da cidadania para afrodescendentes, um ato significativo de reparação frente à injustiça histórica imposta pelo tráfico transatlântico de pessoas escravizadas. Essa medida, contudo, também integra uma estratégia mais ampla do país, que visa a fomentar o turismo e atrair talentos e investimentos, potencializando o desenvolvimento de sua população de cerca de 14 milhões de habitantes.
Para alavancar a iniciativa, o Benin tem convidado personalidades de projeção internacional. Em 2024, a filósofa e ativista brasileira Sueli Carneiro foi agraciada com a nacionalidade beninense. No ano seguinte, em julho de 2025, a cantora americana Ciara recebeu sua cidadania. Outros nomes, como a cantora Lauryn Hill e o cineasta Spike Lee, juntamente com sua esposa Tonya Lee (nomeados embaixadores da diáspora afro-americana no Benin), também viajaram ao país africano, evidenciando o apelo cultural da ação.
Requisitos e Desafios da Conquista da Cidadania
De acordo com a nova lei do Benin, podem solicitar a cidadania pessoas com idade mínima de 18 anos, que não possuam nacionalidade de outro país africano e que comprovem ter um ascendente subsaariano deportado do continente africano devido ao tráfico negreiro. A ligação ancestral não precisa ser especificamente com o Benin, bastando a comprovação de laços com qualquer território da África Subsaariana.
O processo pode ser realizado de forma digital através da plataforma “My Afro Origins”, com uma taxa de US$ 100. O tempo estimado para a conclusão é de três meses a partir da solicitação. A ancestralidade pode ser comprovada por meio de documentos oficiais ou, mais comumente, por testes de DNA. A dificuldade em obter registros históricos, exacerbada por eventos como a queima de documentos por Rui Barbosa no Brasil em 1890 (após a abolição da escravatura), torna o teste genético uma alternativa viável, mas com custos adicionais.
Os exames de DNA, que custam em média R$ 300 no Brasil, são conduzidos por laboratórios especializados. A partir de uma amostra contendo o DNA do indivíduo, o laboratório compara marcadores genéticos com um extenso banco de dados de frequências genéticas globais. Conforme explicado pelo geneticista Salmo Raskin, diretor do Laboratório Genetika, a precisão do resultado depende da robustez do banco de referência do laboratório. Ele observa que, por muito tempo, as populações africanas foram negligenciadas nesses bancos de dados.
O advogado Alessandro Vieira Braga, que auxiliou seis brasileiros antes do lançamento da plataforma online, confirma que todos eles recorreram ao teste genético. Segundo ele, os poucos documentos antigos restantes são rudimentares, mencionando apenas portos de partida e chegada, além do primeiro nome dos antepassados. Braga ressalta que as motivações para buscar a cidadania do Benin são, frequentemente, mais “filosóficas do que práticas”, representando um movimento de retorno às origens, de orgulho cultural e identificação com o pan-africanismo.
Embora a cidadania beninense confira o direito de residência e o acesso ao passaporte, ela não inclui o direito a voto ou participação em eleições, que exige a cidadania plena obtida após cinco anos de residência no país. Comparado ao passaporte brasileiro, que figura na 11ª posição global em liberdade de viagem (Passport Index), o documento do Benin está em 71º lugar em uma lista de 199.
O Benin: Uma Nação de História, Cultura e Economia
Historicamente, o Brasil foi o principal destino de africanos escravizados entre os séculos XVI e XIX, recebendo cerca de 4,9 milhões de pessoas, que foram desembarcadas e submetidas ao trabalho forçado em diversas regiões. O território que hoje corresponde ao Benin foi, na época colonial, conhecido como Reino de Daomé, colonizado pela França no final do século XIX e, posteriormente, independente em 1960. Trinta anos depois, o país foi pioneiro na África ao estabelecer uma democracia multipartidária.
O Benin é um país relativamente pequeno, com aproximadamente 112 mil km² e uma população que ultrapassa os 14 milhões de habitantes. Possui um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0,515, ficando abaixo da média da África subsaariana (0,568) e ocupando a 173ª posição entre 193 nações. Com economia predominantemente agrária, focada na exportação de algodão, o Benin tem experimentado um crescimento notável, com um aumento de 14% na paridade do poder de compra entre 2022 e 2024 e uma taxa real de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) de 7,5% em 2024. O Global Peace Index 2024 classifica o Benin como o 22º país mais pacífico entre 44 na África Subsaariana.
O atual presidente, Patrice Talon, reeleito e no cargo desde 2016, é um fervoroso defensor do pan-africanismo. O movimento promove a unidade e a reconexão dos povos afetados pela diáspora africana como um caminho para combater o racismo, os efeitos do colonialismo e as desigualdades. Talon, que nasceu em Ouidah, um antigo porto de tráfico de escravizados, onde se encontra a simbólica “Porta do Não Retorno”, não buscará um terceiro mandato nas eleições de 2026. A cidade de Ouidah também é lar dos agudás, descendentes de afro-brasileiros que regressaram ao continente africano no século XIX, identificáveis por sobrenomes como Medeiros e Martins.

Imagem: g1.globo.com
Marcelo Sacramento de Araújo, cônsul honorário do Benin em Salvador desde 2010, enfatiza a visão do presidente Talon. Segundo Sacramento, que é advogado, empresário e vice-presidente do jornal Tribuna da Bahia, uma das principais metas de Talon é aproximar a África das Américas, incentivando afrodescendentes a “voltarem para o Benin”. A capital baiana, Salvador, com 83% de sua população identificada como preta ou parda no Censo do IBGE de 2022, tem uma relação cultural profunda com o Benin, exemplificada pela Casa do Benin, inaugurada em 1988 e que o governo beninense planeja reestruturar.
Conexões Diplomáticas e Comerciais Brasil-Benin
O presidente Patrice Talon visitou o Brasil em 2024 e 2025, reforçando o interesse mútuo na aproximação entre as nações. O governo beninense tem focado na atração de turistas afrodescendentes, explorando aspectos culturais, religiosos, gastronômicos e a própria história da escravidão. Sacramento descreve a aprovação da lei de cidadania como a “cereja do bolo” para essa estratégia, destacando o grande potencial econômico, financeiro, cultural e turístico que ainda está por ser explorado entre Brasil e Benin, mercados que, atualmente, comercializam relativamente pouco.
Dados do Ministério das Relações Exteriores do Brasil revelam um crescimento de 11,4% nas trocas comerciais entre os dois países em 2024 em comparação ao ano anterior. As exportações brasileiras para o Benin incluem principalmente açúcares, melaços e carnes de aves. Por outro lado, o Brasil importou do Benin sobretudo frutas e nozes, peças automotivas e vidro. Mais informações sobre as relações diplomáticas e comerciais entre os dois países podem ser encontradas em fontes oficiais, como o Ministério das Relações Exteriores do Brasil: gov.br/mre/benin.
O sociólogo Alex Vargem, pesquisador da migração africana e membro de movimentos negros, analisa que a oferta de cidadania pelo Benin toca em “feridas abertas” da escravidão que moldam a identidade de grande parte da população brasileira, onde 56% se autodeclaram negros, conforme o Censo IBGE. Vargem aponta que o desconhecimento sobre a origem específica na África — um continente de vasta diversidade étnica — gera um vazio para os afro-brasileiros. A rebatização com nomes cristãos e a atribuição de sobrenomes de senhores escravagistas foram práticas que obliteraram as pistas para a genealogia.
Ele observa que existe uma demanda reprimida por essa busca de identidade, especialmente entre aqueles engajados em movimentos negros, mas reconhece que os custos e a burocracia para obtenção da nacionalidade beninense “já criam um primeiro funil”. Apesar de contatos com a Embaixada do Benin no Brasil e representantes governamentais beninenses, não foi possível obter o número de brasileiros que já solicitaram a cidadania.
Rota Aérea Direta: Unindo os Continentes
Parte dos esforços de aproximação entre Brasil e Benin contempla a criação de um voo direto que encurte a distância entre os países. Atualmente, viagens entre os dois países exigem múltiplas escalas, resultando em mais de 20 horas de percurso. Contudo, estimativas não oficiais indicam que uma ligação direta entre Salvador e Cotonou, capital executiva do Benin, poderia ser concluída em apenas 6 horas.
Acordos e protocolos para viabilizar essa nova rota foram celebrados nos últimos anos pelos governos. A Secretaria de Turismo da Bahia (Setur-BA) trabalha para que Salvador seja o ponto de conexão no Brasil, mas o cônsul honorário Marcelo Sacramento considera a possibilidade de São Paulo ser escolhida devido ao seu papel de centro de maior demanda e movimentação. Órgãos como o Ministério de Portos e Aeroportos (MPor), a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) e o Ministério das Relações Exteriores (MRE) estão envolvidos nas negociações. Em nota, o MPor reiterou que a decisão final para iniciar a rota pertence às companhias aéreas, enquanto a Anac destacou a assinatura de um memorando em 2016 que autoriza voos mútuos regulares, indicando seu compromisso em fortalecer os laços aéreos do Brasil com o mundo.
Gastronomia: O Elo Saboroso entre Culturas
Em maio do ano passado, o chef de cozinha João Diamante, nascido em Salvador e radicado no Rio de Janeiro, teve a honra de preparar um almoço no Palácio da Alvorada em homenagem ao presidente Patrice Talon, anfitriões Luiz Inácio Lula da Silva e Janja. Conhecido por seu trabalho em renomados restaurantes, como o Le Jules Verne, em Paris, e por sua atuação em conteúdo de gastronomia afrodescendente, João embarcou em 2023 para gravar um documentário no Benin.
Apesar de sua primeira viagem ao continente africano, João descreve uma sensação imediata de familiaridade em Cotonou: “O cheiro, os sons, o ambiente, a música, a dança, as pessoas: eu me senti muito familiarizado. Era como se eu já tivesse estado lá, só não sabia quando”, relatou. Ao caminhar pelas ruas da cidade, o chef identificou as barracas que preparavam um bolinho de feijão frito, o akará, versão original do conhecido acarajé baiano. Consumido no Benin de forma mais simples, apenas com alho ou pimenta, ele guarda o mesmo simbolismo sagrado e uso em rituais religiosos que o acarajé na Bahia, onde é enriquecido com recheios como vatapá e camarão.
O teste de ancestralidade de João Diamante revelou que a maior parte de seu DNA tem origem na Costa da Mina, área que abrange Benin, Togo, Gana e parte da Nigéria. Embora o tempo seja um fator limitante, ele manifesta o desejo de solicitar a cidadania beninense, reiterando a importância desse reconhecimento para si e suas filhas: “Só conseguimos evoluir quando sabemos de onde viemos. E hoje eu tenho clareza sobre quem eu sou, de onde vim, e aonde eu quero chegar.”
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A busca pela cidadania do Benin reflete um movimento crescente de brasileiros em direção à valorização de suas raízes africanas. Mais do que um mero documento, ela simboliza um reencontro com a história e a identidade, além de fortalecer laços diplomáticos e culturais entre o Brasil e o continente africano. Continue acompanhando em nossa editoria de Política outras análises e notícias sobre relações internacionais e os impactos globais dessas reconexões.
Crédito da Imagem: Arquivo pessoal via BBC


