A prestigiada Mostra Internacional de Cinema de São Paulo apresenta, entre seus mais aguardados destaques, a obra O Desaparecimento de Josef Mengele, um filme instigante dirigido pelo aclamado cineasta russo Kirill Serebrennikov. Esta produção cinematográfica mergulha em uma das mais sombrias lendas do século XX: a vida de criminosos de guerra nazistas que encontraram refúgio em recantos distantes da América do Sul após a derrota do Terceiro Reich, com uma particular atenção à enigmática trajetória do notório médico alemão Josef Mengele. O “Anjo da Morte” de Auschwitz, infame por seus experimentos desumanos, é o ponto central desta narrativa que questiona o remorso e a memória histórica.
O longa, que já fez sua estreia em caráter especial no Festival de Cannes cinco meses antes, promete ser uma das sessões mais concorridas da Mostra de São Paulo, devido à ausência de uma data de lançamento definida para o circuito comercial brasileiro. Com exibições agendadas para terça-feira (21) e quinta-feira (23), o filme convida o público a confrontar um período perturbador e suas implicações. Este não é apenas um retrato histórico, mas uma exploração profunda da natureza do mal e das complexas ramificações de regimes autoritários, ressoando com os debates contemporâneos sobre memória e responsabilidade.
O Desaparecimento de Josef Mengele: Serebrennikov na Mostra
Durante sua passagem pelo Festival de Cannes, um evento do qual Serebrennikov já é um nome conhecido, o diretor concedeu entrevistas a jornalistas, expressando sua motivação para abordar o tema dos nazistas no Brasil. “Eu não tenho fascínio por essa história nem nada, mas tenho minha própria experiência com o mal”, declarou Serebrennikov, estabelecendo um paralelo direto entre as atrocidades nazistas e as opressões vivenciadas na própria Rússia. Ele mencionou os gulags e o stalinismo como exemplos de outras formas de maldade, destacando a necessidade de relembrar esses eventos terríveis para que não se repitam. Segundo o cineasta, as pessoas tendem a se esquecer do passado, especialmente de séculos “terrivelmente tóxicos”, optando por “fechar os olhos e recomeçar”, uma postura que ele veementemente discorda, enfatizando a importância da memória histórica.
Superando a relutância inicial de parte do público de festivais em acolher cineastas russos, especialmente no contexto da guerra entre Rússia e Ucrânia – que inclusive já foi motivo de protestos envolvendo o próprio Serebrennikov –, o diretor se posiciona como um notório opositor de Vladimir Putin. Em “O Desaparecimento de Josef Mengele”, ele traça diversas analogias impactantes entre os abusos perpetrados pela Alemanha nazista e as ações do Estado russo durante o período da União Soviética. Além disso, o filme sugere paralelos entre o atual governo de seu país e o regime que levou a Alemanha à Segunda Guerra Mundial.
As críticas de Serebrennikov ao regime russo são notórias e se manifestam de diversas formas. Pouco antes de sua apresentação em Cannes, o cineasta já havia levantado a questão crucial para artistas russos de hoje: escolher entre ser como Leni Riefenstahl, a cineasta que glorificou o governo de Hitler com suas lentes grandiosas, ou como Marlene Dietrich, que ousou abandonar a Alemanha quando o nazismo ascendeu ao poder. Serebrennikov descreve seu país como um Estado violento e militarizado, uma realidade que ele conhece de perto. Em 2017, foi preso sob a acusação de desviar dinheiro público destinado a uma produção teatral. Após vinte meses em prisão domiciliar e mais um ano em processos judiciais, o julgamento foi suspenso, e o diretor buscou asilo político na Alemanha.
Desde então, Serebrennikov tem utilizado a visibilidade de festivais e seu espaço na mídia para denunciar as ações do governo de Putin e se defender das acusações que, segundo ele, foram perseguição política. Seus trabalhos subsequentes continuam a mexer em temas delicados e controversos, como evidenciado por “A Esposa de Tchaikóvski”, uma obra que expôs abertamente a homossexualidade do renomado compositor em um país que adota políticas explicitamente homofóbicas. A trajetória e as obras do cineasta, portanto, são intrinsecamente ligadas a sua luta por liberdade de expressão e sua crítica aos regimes autoritários.
Embora “O Desaparecimento de Josef Mengele” se apresente como uma reflexão profunda sobre a origem do mal e a natureza dos regimes autoritários, o filme também marca um significativo distanciamento do diretor de sua terra natal, representando uma tentativa de Serebrennikov de se conectar com o passado da nação que agora o acolhe. Na trama, o espectador é levado por breves, mas chocantes, vislumbres das atrocidades cometidas pelo médico nazista em Auschwitz. No entanto, o foco principal do longa reside em seus anos de fuga, traçando seu percurso pela Argentina, Paraguai e, finalmente, Brasil, onde morreria anonimamente aos 67 anos, vítima de uma parada cardíaca durante um afogamento em Bertioga. As cenas ambientadas na América Latina foram gravadas no Uruguai, inclusive as sequências em que se utiliza o português. A busca pela história real do “Anjo da Morte” ainda hoje fascina e amedronta, conforme reportado por veículos como a Deutsche Welle, que detalha os fatos relacionados à sua morte e a exumação de seu corpo.
O filme retrata Josef Mengele não como um homem atormentado pelo remorso de seus terríveis experimentos com prisioneiros judeus, homossexuais e pessoas com deficiência, mas sim como alguém profundamente perturbado pelo ostracismo que enfrenta após a queda do Terceiro Reich. A ausência de culpa é um elemento que permeia tanto as partes ficcionais da obra quanto a seção mais documental, que se inspira no livro homônimo de Olivier Guez. Esta abordagem sublinha a percepção do diretor sobre como, em certos regimes, a violência pode ser erroneamente associada a poder e feitos grandiosos, um fenômeno que ele compara ao período pós-stalinismo na Rússia, onde muitos trabalhadores do regime não sentiam remorso e, ainda hoje, há uma certa nostalgia pela “mão firme” e a violência do Estado.
As escolhas estéticas de Serebrennikov para o filme são igualmente simbólicas. “O Desaparecimento de Josef Mengele” é filmado em preto e branco, com a notável exceção dos flashbacks que transportam o público de volta aos campos de concentração. Essas cenas específicas são excessivamente coloridas, desenrolando-se sob um filtro quase infantil, mesmo ao representar monstruosidades indescritíveis. Este contraste visual não apenas intensifica a dimensão perturbadora das atrocidades, mas também levanta questões sobre como a memória e a percepção do mal são construídas e processadas ao longo do tempo. O filme é uma potente recordação de que o passado, por mais tóxico que seja, jamais deve ser ignorado.
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Em suma, “O Desaparecimento de Josef Mengele”, dirigido por Kirill Serebrennikov, é mais do que um drama sobre a fuga de nazistas; é uma crítica contundente sobre a memória histórica, o poder do esquecimento e a perpetuação do mal em diferentes regimes. Ao unir a história do médico de Auschwitz com suas próprias experiências e análises sobre o Estado russo, Serebrennikov oferece uma obra de arte que é tanto um documento histórico quanto uma denúncia política. Convidamos nossos leitores a explorar mais conteúdos em nossa editoria de Política para aprofundar a compreensão sobre os temas abordados.
Crédito da imagem: Cena do filme “O Desaparecimento de Josef Mengele”, de Kirill Serebrennikov – Divulgação

