A discussão sobre a aplicação da inteligência artificial na saúde mental ganhou proeminência no cenário global e nacional, prometendo uma significativa expansão do acesso a diagnósticos e tratamentos essenciais. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), mais de um bilhão de indivíduos vivem com algum tipo de transtorno mental. Em 2 de setembro, o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, reforçou a imperatividade de que a saúde mental seja tratada como um direito universal, não um privilégio. Neste contexto, a IA é debatida como uma ferramenta crucial para superar as barreiras de acesso e otimizar os cuidados disponíveis.
No Brasil, o potencial da inteligência artificial para o campo da medicina em geral foi o centro de um seminário realizado em Brasília, também em 2 de setembro. Este evento, uma iniciativa conjunta da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) – que atua como braço da OMS para as Américas – e do Ministério da Saúde, explorou os complexos aspectos regulatórios do tema. Enquanto os debates avançavam no âmbito da legislação e da ética, projetos brasileiros já estão em desenvolvimento para aplicar a IA diretamente na assistência aos pacientes.
IA na Saúde Mental: Expansão do Acesso e o Debate Entre Experts
Entre as iniciativas destacadas, um projeto de pesquisa apoiado pelo Ministério da Saúde visa criar uma ferramenta para a identificação de transtornos mentais na atenção primária. O objetivo primordial é facilitar o diagnóstico, oferecer suporte contínuo ao tratamento e monitorar indicadores de saúde para os pacientes que dependem do Sistema Único de Saúde (SUS), potencialmente transformando a abordagem em saúde mental no país. A expectativa é de um impacto substancial na sobrecarga de trabalho dos especialistas e na velocidade de identificação de casos.
Um dos carros-chefes dessa pesquisa é o aplicativo “e-Saúde Mental”, que emprega a metodologia de machine learning. Essa técnica permite que os sistemas computacionais aprendam a reconhecer padrões e a tomar decisões autônomas a partir do treinamento com vastos volumes de dados. Segundo Paulo Rossi, coordenador do projeto e professor de medicina da Universidade de São Paulo (USP), essa abordagem promete uma descentralização dos atendimentos, otimizando os recursos humanos da área.
Rossi esclarece que o foco do “e-Saúde Mental” é direcionar a maior parte dos casos de saúde mental mais comuns, como depressão e ansiedade em estágios leves ou moderados, para acompanhamento nas unidades básicas de saúde. Somente as condições mais graves seriam então encaminhadas a psiquiatras e psicólogos. Essa segmentação estratégica pode desafogar o sistema de saúde, garantindo que o cuidado especializado seja reservado para aqueles que mais precisam.
Ao se cadastrar no aplicativo, o usuário é convidado a responder a uma série de questionários digitais que avaliam sintomas de ansiedade, depressão e insônia, entre outros. Os resultados dessas avaliações são automaticamente integrados a um prontuário eletrônico. A plataforma é desenhada para gerar alertas para as equipes de saúde sempre que houver a identificação de um risco iminente ou de um quadro que demande atenção. Além disso, o aplicativo se propõe a ser uma fonte de informação para os pacientes, disponibilizando conteúdos sobre transtornos mentais e técnicas de manejo de sintomas, como exercícios de respiração e meditação guiada.
Para os profissionais de atenção primária, a plataforma será equipada com algoritmos que os auxiliarão na interpretação dos resultados das avaliações dos pacientes. Essa orientação incluirá sugestões de possíveis diagnósticos e indicações de condutas terapêuticas, abrangendo desde terapias farmacológicas até a recomendação de encaminhamento para serviços especializados. Conforme pontua Paulo Rossi, essa capacidade do sistema de otimizar o diagnóstico deverá resultar em um aumento notável das taxas de identificação precoce de transtornos.
A funcionalidade do “e-Saúde Mental” estende-se ainda à esfera da gestão pública. Os dados anonimizados, respeitando rigorosamente a proteção de informações sensíveis por lei, serão utilizados para identificar tendências, padrões e particularidades em saúde mental. Essa coleta e análise de informações de forma ampla oferecerá subsídios valiosos para o desenvolvimento de políticas públicas mais assertivas e eficazes.
Ferramentas similares já estão em operação, exemplificando o potencial da IA na área. Pesquisadores da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), por exemplo, desenvolveram uma plataforma direcionada especificamente ao atendimento de crianças. Este sistema se baseia em questionários de alta precisão já empregados por psicólogos e psiquiatras em contextos clínicos tradicionais.
A tecnologia da PUC-Rio foi treinada com base nesses dados para distinguir perfis de indivíduos saudáveis de crianças com indícios de transtornos mentais variados, incluindo insônia, ansiedade, depressão, transtorno borderline e condições do espectro autista. O projeto contou com um estudo abrangente, envolvendo 30 mil crianças nos Estados Unidos e cerca de 300 mil no Brasil. Embora disponível em plataformas digitais internacionais e passível de solicitação no Brasil, esta ferramenta ainda não integra o elenco de serviços oferecidos pelo SUS.
Luis Anunciação, psicólogo e coordenador da pesquisa da PUC-Rio, enfatiza a relevância de se qualificar o emprego da inteligência artificial no campo da saúde mental. Ele questiona a atual tendência de uso não especializado da IA para tratar questões de saúde mental por parte da população, argumentando sobre a superioridade de um sistema treinado especificamente para essa finalidade. No entanto, Anunciação ressalta que, apesar da capacidade de identificar padrões, as IAs demandam supervisão médica devido à crucial honestidade do paciente ao responder aos questionários, fator determinante para a eficácia dos resultados.
Apesar das limitações reconhecidas, Paulo Rossi mantém o otimismo em relação ao aplicativo “e-Saúde Mental”. Para ele, a ferramenta contribuirá para uma significativa ampliação do acesso a cuidados, especialmente para os usuários do SUS, que frequentemente enfrentam um acesso restrito ou inexistente a este tipo de atendimento especializado. As iniciativas demonstram o compromisso em buscar soluções tecnológicas que impactem positivamente a população.

Imagem: preocupação excessiva e medo via www1.folha.uol.com.br
Contudo, Marcelo Kimati, diretor do Departamento de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas (Dmad) do Ministério da Saúde, pondera que a expectativa não é que a plataforma, por si só, solucione todos os gargalos do sistema, diminua a procura por serviços de saúde ou equalize as desigualdades sociais existentes. Segundo Kimati, o projeto não pretende diminuir o papel essencial das unidades de saúde e de seus profissionais. O grande benefício esperado reside na capacidade de mapear a incidência de transtornos mentais, o que permitirá um planejamento mais robusto de políticas públicas, uma melhor organização da oferta de serviços e um aprimoramento na qualidade da prescrição de psicotrópicos.
Um dos pontos de discórdia mais evidentes entre os especialistas reside na insubstituibilidade do contato humano. Laura Helena Andrade, coordenadora do Núcleo de Epidemiologia Psiquiátrica da Faculdade de Medicina da USP, salienta a profundidade da interação médico-paciente. Ela adverte que as sutilezas dessa relação podem ser irremediavelmente perdidas quando a avaliação e o diagnóstico são delegados a sistemas automatizados. Além disso, segundo a médica, questionários digitais e algoritmos podem não conseguir captar a complexidade do sofrimento humano. Para ela, “reconhecer apenas sintomas simples, como tristeza, não substitui a compreensão de um quadro mais amplo”.
Andrade vai além em sua análise crítica, sugerindo que a dependência excessiva de máquinas para a avaliação da saúde mental pode até mesmo produzir um efeito adverso. “As pessoas já estão isoladas e hiperconectadas. Você vai colocar uma máquina para avaliar a saúde mental delas?”, questiona, provocando uma reflexão sobre o impacto social dessa automação em um mundo cada vez mais digital. Por outro lado, o psiquiatra Afonso Baleeiro, especialista em telemedicina, manifesta um ponto de vista mais positivo sobre o assunto.
Para Baleeiro, a proposta do “e-Saúde Mental” é instrumental em fornecer aos clínicos generalistas dados adicionais e acesso a protocolos padronizados, o que os capacita a gerenciar o risco dos pacientes sem que haja a necessidade imediata de encaminhamento para um especialista. Ele sublinha que a psiquiatria, apesar de sua natureza profundamente humana, pode ser significativamente beneficiada por ferramentas simplificadas. “Não precisamos de ressonância magnética ou de um centro cirúrgico supertecnológico. Basta um Zoom ou um aplicativo que consiga visualizar um questionário do paciente, e já se pode resolver bastante coisa”, exemplifica, destacando a praticidade da telemedicina.
Marcelo Kimati, do Dmad, reforça uma nota de cautela importante: o financiamento concedido pelo Ministério da Saúde ao aplicativo não garante sua incorporação automática ao SUS. Ele esclarece que o projeto passará por uma avaliação científica rigorosa, que incluirá a análise aprofundada de resultados, dados epidemiológicos e dos impactos – positivos e negativos – gerados. Somente após esta análise criteriosa, os subsídios para eventuais futuras políticas públicas serão definidos, garantindo que a implementação seja baseada em evidências sólidas.
O cenário da inteligência artificial na saúde mental é multifacetado, com grande promessa de democratização do acesso, mas também com desafios éticos e clínicos significativos que exigem uma abordagem cautelosa e um debate contínuo. Enquanto ferramentas como o “e-Saúde Mental” se desenvolvem, o Brasil busca um equilíbrio entre inovação tecnológica e a manutenção da qualidade e humanização dos cuidados. Você pode se aprofundar em mais dados sobre o tema de saúde no portal oficial do Ministério da Saúde. Visite: Ministério da Saúde para informações adicionais e para compreender as estatísticas mais recentes relacionadas à saúde mental no país. A constante discussão entre especialistas e a avaliação de projetos são fundamentais para o futuro da saúde pública no Brasil.
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O avanço da tecnologia no setor de saúde segue em constante análise, prometendo inovações significativas ao mesmo tempo em que provoca discussões pertinentes sobre o equilíbrio entre automação e o toque humano. Continue acompanhando a cobertura detalhada sobre política, economia e inovação na editoria de Análises para se manter informado sobre esses debates e o impacto nas políticas públicas brasileiras.
Esta reportagem foi produzida durante o 10º Programa de Treinamento em Jornalismo de Saúde da Folha, patrocinado pelo Laboratório Roche e pelo Einstein Hospital Israelita.
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