O vício em comida, frequentemente abordado de forma jocosa, tem emergido como uma preocupação séria no campo da saúde, com crescentes evidências científicas sugerindo que certas relações com alimentos podem mimetizar dependências de substâncias. A ideia de que um lanche favorito ou o chocolate possa provocar uma dependência comparável àquela causada por álcool ou nicotina está deixando de ser uma mera analogia para se tornar um tema de estudo profundo. Especialistas na área de psiquiatria de dependências e pesquisadores com vasta experiência em transtornos alimentares e obesidade observam essa área há décadas, documentando descobertas em publicações e livros.
Embora persista um debate contínuo entre psicólogos e cientistas, um consenso notável começa a se formar: o vício em comida constitui um fenômeno legítimo. Inúmeros estudos conduzidos ao longo de anos têm demonstrado que determinados tipos de alimentos – notavelmente aqueles com alto teor de açúcar e os ultraprocessados – interagem com o cérebro e o comportamento de certos indivíduos de maneira muito similar à de outras substâncias aditivas já reconhecidas, como a nicotina. Apesar dessa crescente compreensão, muitas questões ainda carecem de respostas, incluindo quais alimentos específicos são mais aditivos, quais indivíduos possuem maior suscetibilidade e quais mecanismos biológicos e ambientais influenciam essa predisposição.
Especialistas Confirmam Vício em Comida como Fenômeno Real
Além disso, ainda se discute intensamente como essa condição se equipara a outras dependências de substâncias, e se as abordagens terapêuticas eficazes para outras formas de vício poderiam ser adaptadas com sucesso para pacientes que lutam com uma relação aditiva com a alimentação. A busca por respostas para essas perguntas move uma comunidade científica global que visa desmistificar e oferecer suporte efetivo a quem sofre com esses padrões alimentares.
A Complexa Formação do Vício Alimentar no Cérebro
O funcionamento da dependência, de maneira geral, tem sido meticulosamente desvendado por décadas de investigação laboratorial, utilizando técnicas de neuroimagem e abordagens da neurociência cognitiva. Essas pesquisas indicam que a suscetibilidade a desenvolver um vício é influenciada tanto por fatores genéticos quanto por condições ambientais preexistentes. A exposição contínua e regular a uma substância aditiva culmina na remodelação de redes cerebrais vitais, impulsionando um desejo progressivo por aquela substância específica.
Essa reconfiguração cerebral afeta três redes cruciais, cada uma correspondendo a domínios funcionais fundamentais: o sistema de recompensa, a rede de resposta ao estresse e o sistema responsável pelo controle executivo. Inicialmente, o consumo de uma substância com potencial aditivo estimula a liberação de dopamina – um neurotransmissor – na rede de recompensa, gerando uma sensação de bem-estar. Essa liberação de dopamina também é essencial para um processo neurobiológico chamado condicionamento. Essencialmente, é um tipo de aprendizado neural que estabelece e reforça hábitos. Como resultado do condicionamento, elementos sensoriais (como visão, cheiro ou sabor) associados à substância adquirem uma influência crescente sobre a tomada de decisão e o comportamento do indivíduo, frequentemente resultando em desejos intensos e irresistíveis.
Adicionalmente, a continuidade no consumo de uma substância aditiva, ao longo do tempo, compromete a rede emocional do cérebro, responsável pela resposta ao estresse. Nesse estágio, corpo e mente desenvolvem tolerância, o que implica a necessidade de quantidades cada vez maiores da substância para obter o efeito desejado. Os neuroquímicos envolvidos neste processo, distintos daqueles que mediam a formação de hábitos, incluem a noradrenalina e opioides endógenos, como as endorfinas. Em caso de interrupção abrupta do uso, manifestam-se sintomas de abstinência, cuja gravidade pode variar de irritabilidade e náuseas até paranoia e convulsões, estabelecendo um ciclo de reforço negativo. Por fim, o uso excessivo e prolongado da maioria das substâncias aditivas degrada progressivamente a rede de controle executivo do cérebro, comprometendo a capacidade de planejamento, inibição de impulsos e tomada de decisões racionais.
Evidências Concretas da Adicção por Alimentos Ultraprocessados
Nas últimas duas décadas e meia, inúmeros estudos científicos revelaram que alimentos ricos em açúcar e outros itens altamente gratificantes — frequentemente categorizados como ultraprocessados — interagem com essas redes cerebrais de forma análoga a outras substâncias viciantes. As alterações cerebrais subsequentes alimentam um ciclo de desejo intenso e consumo excessivo desses alimentos, validando a ideia de que a comida pode ser, para alguns, uma substância aditiva. Pesquisas clínicas têm demonstrado que indivíduos que exibem uma relação aditiva com a comida manifestam os sinais distintivos de um transtorno por uso de substâncias.
Os estudos também apontam que, para certas pessoas, a intensidade dos desejos por alimentos altamente palatáveis transcende a simples preferência ou “vontade de beliscar”. A pesquisa também descobriu que a interrupção súbita de dietas ricas em açúcar pode provocar sintomas de abstinência, fenômeno observado de forma similar na cessação de opioides ou nicotina. Adicionalmente, a exposição exagerada a alimentos açucarados tem sido correlacionada com uma redução das funções cognitivas e danos a regiões cerebrais críticas, como o córtex pré-frontal e o hipocampo. Em outro contexto investigativo, observou-se que pessoas com obesidade, quando expostas a alimentos e orientadas a resistir aos desejos, enfrentavam dificuldades significativas, sugerindo um descontrole sobre os impulsos alimentares que vai além da simples força de vontade.

Imagem: açúcar via g1.globo.com
Desafios e Novas Abordagens no Tratamento
A recuperação de uma dependência geralmente se fundamenta na premissa de que a via mais eficaz para a melhora é a abstenção completa da substância-problema. Contudo, essa estratégia é complexa no contexto da dependência alimentar. Diferentemente da nicotina ou de substâncias narcóticas, a comida é um componente essencial para a sobrevivência humana, o que inviabiliza a abstenção total. Soma-se a isso o fato de que transtornos alimentares como bulimia nervosa e transtorno da compulsão alimentar frequentemente coexistem com a alimentação aditiva. Essa intersecção leva muitos profissionais que atuam no tratamento de transtornos alimentares a resistir à rotulagem de certos alimentos como aditivos.
Entretanto, outra perspectiva sustenta que, com a devida cautela, a integração de princípios de tratamento de vício em comida nas abordagens de transtornos alimentares é viável e pode ser salvadora em diversos casos. O crescente reconhecimento da conexão entre comida e dependência tem impulsionado pesquisadores e clínicos na área de transtornos alimentares a considerar o vício em comida em seus modelos terapêuticos. A Dra. Kim Dennis, psiquiatra especializada em dependências e transtornos alimentares, descreveu à autora uma abordagem que exemplifica essa integração. Alinhando-se aos protocolos tradicionais para transtornos alimentares, os nutricionistas em sua clínica residencial desencorajam fortemente a restrição calórica severa. Simultaneamente, inspirando-se nos métodos tradicionais de tratamento de dependências, auxiliam os pacientes a considerar a redução significativa ou mesmo a abstinência completa de alimentos específicos que geraram uma relação aditiva.
Pesquisas clínicas adicionais estão em andamento para aprofundar essa compreensão e testar a eficácia de novas intervenções. Contudo, um maior volume de investigações futuras será fundamental para guiar os clínicos na identificação dos tratamentos mais eficientes para indivíduos com uma relação aditiva com a comida. Existe um movimento significativo entre grupos de psicólogos, psiquiatras, neurocientistas e profissionais de saúde mental para incluir formalmente o transtorno por uso de alimentos ultraprocessados – frequentemente referido como vício em comida – em futuras edições de manuais diagnósticos. Estes incluem o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) e a Classificação Internacional de Doenças (CID) da Organização Mundial da Saúde (OMS), cujas diretrizes globais para uma alimentação saudável podem ser consultadas em páginas oficiais da OMS.
Essa oficialização diagnóstica não apenas validaria o que os profissionais já observam em suas práticas clínicas, mas também abriria caminho para a obtenção de financiamento crucial para novas investigações sobre o tratamento do vício em comida. Com um maior arsenal de informações sobre quais tratamentos são mais eficazes e para quais perfis de pacientes, aqueles que enfrentam esses problemas deixarão de sofrer em silêncio, e os profissionais de saúde estarão mais preparados e capacitados para oferecer o apoio necessário.
Confira também: crédito imobiliário
A discussão sobre o vício em comida continua a evoluir, reforçando a importância de abordagens baseadas em evidências para um problema de saúde pública cada vez mais evidente. Compreender os mecanismos por trás dessa dependência é o primeiro passo para desenvolver estratégias eficazes de prevenção e tratamento. Para aprofundar a compreensão sobre bem-estar e saúde em suas diversas facetas, explore outros artigos e análises disponíveis em nossa seção de Análises.
Foto: Reprodução/ TV Sergipe
🔗 Links Úteis
Recursos externos recomendados