No cenário global, o concreto se mantém como o segundo material mais empregado mundialmente, intrinsecamente ligado ao processo de avanço socioeconômico das cidades. Contudo, seu impacto ambiental é notavelmente elevado. Conforme dados divulgados pela Organização das Nações Unidas (ONU), a indústria cimenteira é responsável por aproximadamente 7% do total das emissões de gás carbônico na atmosfera. A cadeia produtiva do cimento, desde a extração de calcário – sua principal matéria-prima – até o transporte do produto final, resulta na emissão de uma tonelada de CO² para cada tonelada de cimento fabricada.
Diante desse desafio ambiental, pesquisadores paraenses têm direcionado seus esforços para desenvolver alternativas mais ecológicas para o setor da construção. A meta é conceber soluções que proporcionem menor impacto ambiental e diminuam as emissões de carbono durante o processo produtivo do cimento sustentável. O Instituto Federal do Pará (IFPA) tornou-se o epicentro de duas iniciativas inovadoras que exemplificam essa busca por sustentabilidade.
Pesquisadores Criam Cimento Sustentável com Resíduos Amazônicos
Uma dessas propostas envolve a criação de um cimento Portland que incorpora resíduos da indústria de celulose, e a outra é o desenvolvimento de um concreto feito com resíduos de pneus reformados, especialmente concebido para pisos táteis. Estes projetos representam um passo importante em direção a práticas construtivas que aliam crescimento a menor agressão ambiental, ao mesmo tempo em que promovem a reutilização de materiais que, de outra forma, seriam simplesmente descartados, contribuindo para a economia circular.
O desenvolvimento do cimento Portland composto, coordenado pelo professor e Doutor em Engenharia Civil, Marco Oliveira, no IFPA, tem como cerne a utilização de dois tipos de resíduos da indústria de celulose para fabricar um cimento de formulação nova. O principal intuito da pesquisa é substituir o clínquer, componente tradicional do cimento, cuja obtenção exige a queima de calcário em altas temperaturas e é o maior contribuinte para as emissões de CO² no segmento. A investigação revelou que este componente pode ser substituído, em variadas proporções, por Cinza Volante de Biomassa (CVB), subproduto gerado nos fornos de beneficiamento de celulose – alimentados por eucalipto e madeira – e por Filler Calcário de Biomassa (FCB), um resíduo advindo de processos químicos de obtenção da celulose.
Os dois materiais, que frequentemente acabavam em bacias de rejeitos, podem substituir até 50% do uso de clínquer na produção do cimento. O projeto desenvolveu e testou mais de 30 misturas distintas, validando-as para diversas aplicações na construção civil, incluindo argamassas de assentamento, reboco e até mesmo alvenaria estrutural. Em conformidade com as diretrizes da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), o material inovador demonstra a capacidade de capturar e fixar dióxido de carbono. Marco Oliveira garante que a produção do novo cimento com baixo impacto ambiental tem viabilidade técnica para larga escala no Brasil, que é um dos principais produtores de celulose, além de possuir competitividade mercadológica, com custos similares aos do cimento convencional. “Eu sempre busquei pesquisas aplicadas. Quando você inicia esses projetos, já tenta responder essas perguntas em termos de custos”, destaca Oliveira sobre a preocupação econômica e a pertinência mercadológica de suas pesquisas.
Concreto Inovador com Resíduos de Pneus
Em paralelo, outra pesquisa coordenada pelo professor e Doutor em Engenharia de Materiais, Laércio Gouvêa Gomes, também no IFPA, começou em 2013, focada na necessidade de descobrir materiais construtivos alternativos para a região amazônica. A inspiração surgiu da grande quantidade de resíduos gerados pela indústria de recapagem de pneus na Região Metropolitana de Belém. Ao chegarem ao Laboratório de Caracterização de Materiais (LCM) do IFPA, os pneus são minuciosamente separados e a borracha é granulada em frações finas, médias e grossas.
O material em grânulos é, então, combinado com outros elementos para a produção de concreto utilizado em pisos táteis. O professor Laércio Gouvêa Gomes detalha o processo de elaboração: “A gente pega uma quantidade de areia, uma quantidade de água, uma quantidade de cimento e mistura num equipamento chamado misturador pneumático. Então, esse misturador faz com que essa mistura fique homogênea e aplicamos ela nas formas que são essas formas de piso tátil”. Esta iniciativa tem como propósitos primordiais a redução da extração de areia do meio ambiente e a reutilização de pneus velhos, oferecendo a eles um novo e útil destino.
A adição de resíduos de pneus confere ao concreto propriedades mecânicas singulares. “No caso do resíduo de pneus, eles dão uma propriedade de flexibilidade nesses pisos. Então, ele gera menos impacto na pisada da pessoa com deficiência e na pisada dos transeuntes”, explica Gomes. A pesquisa já foi implementada nos pisos táteis da própria instituição, e sua resistência mecânica encontra-se em total conformidade com as exigências da ABNT. A iniciativa ressalta como a reciclagem de materiais pode não apenas otimizar produtos, mas também transformar resíduos em elementos funcionais e promotores da sustentabilidade na construção civil.
Economia Circular e Barreiras ao Desenvolvimento Sustentável
Marjorie Azevedo, Mestra em Conservação da Biodiversidade e Desenvolvimento Sustentável, ressalta a importância dos projetos dos professores Marco Oliveira e Laércio Gomes como exemplos da economia circular. Esse modelo econômico integra os resíduos novamente na cadeia produtiva, transformando-os em novos produtos, como tijolos, blocos e concretos inovadores. Azevedo enfatiza que a busca por sustentabilidade não impede o desenvolvimento, mas sim fomenta alternativas que conciliam crescimento econômico, preservação ambiental e inclusão social. “Ao contrário do que se pensa, não estamos na contramão do crescimento econômico. Muito pelo contrário, estamos buscando alternativas para esse crescimento”, aponta.
Entretanto, a engenheira ambiental aponta barreiras econômicas que dificultam a ampla adoção de práticas sustentáveis no setor da construção, sublinhando a necessidade de políticas públicas que incentivem e viabilizem tais iniciativas. Abordando o tema do custo-benefício em projetos acadêmicos, Natasha Costa, Doutora em Estruturas, pesquisadora e professora do Instituto Federal do Amapá (IFAP), afirma que os materiais concebidos são sempre projetados para serem competitivos no mercado. “A gente precisa pensar nesse material para que ele consiga concorrer com o que a gente tem no mercado, porque não adianta eu pensar soluções na academia, mas que essa solução não seja viável ou que tenha um custo muito elevado, que inviabilize a produção em massa, porque a ideia é produzir em massa esse material para que ele possa ser utilizado em obras”, argumenta.

Imagem: g1.globo.com
A pesquisadora explica que, além da competitividade, características mecânicas como resistência e durabilidade são criteriosamente avaliadas ao se propor um novo material, garantindo sua eficácia. Contudo, a escalabilidade da produção permanece um entrave, o que reforça a importância de incentivos fiscais para encorajar empresas a adotarem esses materiais mais sustentáveis. Segundo Costa, a sinergia entre empresas e instituições de ensino permitiria que estas últimas obtivessem investimento, enquanto as empresas se beneficiariam do apoio técnico-científico, criando um cenário de “via de mão dupla”.
Perspectiva Industrial e Esforços Antigos na Redução de Carbono
A visão da indústria cimenteira é fundamental para a transição para métodos de produção mais sustentáveis. Fábio Cirilo, gerente de sustentabilidade e energia da Votorantim Cimentos, delineia os critérios para integrar e escalar a produção de cimento resultante de pesquisas acadêmicas na empresa: a solução precisa ser aplicável em volumes muito grandes, compatível com as necessidades do setor. Ele destaca que, embora algumas pesquisas apresentem tecnologias inovadoras, a sua pequena escala de aplicação representa um obstáculo. A viabilidade econômica é outro fator crucial, sempre presente na avaliação da empresa, mesmo considerando os investimentos no desenvolvimento tecnológico. Para dados adicionais sobre a indústria cimenteira no Brasil, recomenda-se consultar as publicações da Associação Brasileira da Indústria de Cimento (ABCIC).
Desde 1990, a Votorantim Cimentos tem trabalhado incansavelmente para reduzir as emissões de carbono em seus processos. Para alcançar este objetivo, a empresa implementou diversas estratégias, incluindo a diminuição gradual do uso de clínquer, substituindo-o por outros aditivos com propriedades similares e mais sustentáveis. Combustíveis fósseis, empregados na queima do calcário, também estão sendo substituídos por resíduos de outras indústrias; em São Paulo, por pneus em desuso, e no Pará, na fábrica de Primavera, por caroços de açaí. No ano de 2023, a coleta de 48.000 toneladas de caroço de açaí na Região Metropolitana de Belém, transportadas para a fábrica a aproximadamente 190 quilômetros da capital paraense, resultou na impressionante marca de 44.000 toneladas de carbono que não foram lançadas na atmosfera.
Operando em nove países — nas Américas do Norte e do Sul, Europa, Ásia e África — a companhia também investe em fontes de energia renovável, otimização da eficiência energética e no desenvolvimento de novas tecnologias de captura e sequestro de carbono. Tais esforços refletem um compromisso ambiental alinhado a acordos globais, a necessidade de manter a competitividade no mercado e a consciência da urgência climática. Cirilo salienta a magnitude do desafio: “A gente sabe o tamanho do desafio que a gente tem como sociedade para enfrentar a crise climática. Talvez seja o maior desafio que a gente vai enfrentar como sociedade global e demanda um esforço coletivo coordenado.” Entre 1990 e 2024, a empresa obteve uma redução de 28% nas emissões de carbono e planeja uma redução adicional de 14% até 2030, por meio de novas tecnologias de captura e sequestro de carbono.
Amazônia, Cimento e a COP30: Um Olhar para o Futuro
Enxergar a Amazônia como a fronteira do futuro sustentável transcende um mero discurso idealizado. Trata-se de uma realidade concreta, conforme sublinhado por Rodrigo Rodrigues, PhD em Engenharia pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Ele enfatiza que a região desfruta de um “privilégio geologicamente” por possuir materiais que, quando incorporados ao cimento industrial, contribuem significativamente para a diminuição das emissões de CO₂. As pozolanas amazônicas, por exemplo, presentes no Brasil, particularmente na região Norte, são consideradas as mais reativas globalmente entre os materiais que podem ser adicionados ao cimento. Esse diferencial faz com que o cimento produzido no Brasil emita, em média, 11% menos CO₂ do que a produção média global, conferindo ao país um papel de referência em sustentabilidade na indústria cimenteira internacional.
Rodrigo Rodrigues é integrante do comitê internacional da indústria cimenteira que estará presente na COP30, sediada em Belém em novembro deste ano. O foco do grupo será debater maneiras de reduzir as emissões de CO₂ no setor da construção civil, um dos principais geradores de gases de efeito estufa globalmente. A participação brasileira neste comitê constitui uma oportunidade valiosa para apresentar as soluções já adotadas no país, com um enfoque particular na região amazônica. “Essa é a grande discussão que vamos levar à COP, como membros do Conselho Brasileiro. O futuro sustentável, o futuro ambiental e até o controle da temperatura do planeta dependem, em grande parte, da construção civil”, conclui Rodrigues.
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Os inovadores projetos de cimento sustentável, frutos do trabalho de pesquisadores paraenses em colaboração com o setor industrial, evidenciam o potencial do Brasil para liderar a transição em direção a uma construção civil mais verde e um futuro em que o progresso econômico e a conservação ambiental coexistem. A pesquisa e o desenvolvimento contínuos de soluções pioneiras, como o uso de resíduos amazônicos na fabricação de cimento, são essenciais para este propósito. Convidamos você a explorar mais análises e notícias sobre sustentabilidade e inovações que transformam nosso mundo, visitando nossa editoria de Cidades.
Crédito da imagem: Juliana Alvarez/TV Liberal; Arquivo pessoal; Divulgação
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